sexta-feira, 9 de maio de 2014

Capítulo 3

O pai de Alistair costumava dizer que todo membro da família Oh em algum momento da vida revelava uma surpresa.
Não que Alistair de fato se lembrasse do pai dizendo isso, considerando que era apenas uma criança quando ele morreu. Porém, era um traço da família Oh enfeitar a realidade dando a ela um toque de lenda.
O silêncio hostil dos irmãos Cahill deixou Alistair perplexo. Ele tinha imaginado que os dois iam gostar daquela surpresa.
Vrom... Vrom... iééé
Conforme Serge esterçava o volante, forçando o carro a entrar em espaços nos quais nenhum ser humano normal ousaria tentar, as crianças eram jogadas de um lado para o outro. Elas pareciam ter nojo de encostar em Alistair ou até mesmo de olhar para ele, como se fosse aspargo cozido ou alguma outra coisa desagradável. Como se ele não tivesse acabado de arrancá-las das garras do caos para colocá-las de volta no caminho que tinham escolhido. Alistair tentou lançar-lhes um sorriso reconfortante. Tinha pena dos irmãos Cahill. Pareciam tão pequenos, tão assustados, tão sozinhos.
Ele entendia aquela sensação. Mais do que Amy e Dan poderiam imaginar.
— Sabem uma coija? — gritou Serge por cima da algazarra de buzinas furiosas. — Eu também ter filhaj... garota de catchorze e meninio de onze! Pois é! Verdade. Elej moram na Moscou!
Alistair ficou de olho em Dan, que parecia bastante enjoado. O menino tentou abrir a porta umas vinte vezes em dois minutos. Por sorte, Alistair tomara a precaução de ativar as travas de segurança.
— Não insista, por favor. Você só vai conseguir uma tendinite se continuar tentando. Além disso, estou ficando tenso, preocupado com a sua segurança.
— Então você estava por trás disso tudo, não é? — perguntou Dan. — Com os Kabra e Irina. E a ameaça de bomba. Você está colaborando com eles agora.
Alistair franziu o rosto. Ele sabia que seria difícil conquistar a confiança dos dois. Era de se esperar que fizessem acusações infundadas. Sabia que as crianças haviam guardado rancor, o que era compreensível. Abandoná-los numa casa em chamas no dia da leitura do testamento fora uma infeliz necessidade... mas também um erro pessoal e estratégico. Um erro do qual ele se arrependia profundamente.
— Acredite, meu caro sobrinho, não faço a mínima ideia...
— Acreditar em você? — respondeu Dan, virando o rosto para encará-lo. — Vejamos. Você nos abandonou quando a casa de Grace estava desmoronando à nossa volta. Você plantou um rastreador no Saladin...
— Rastreador? Isto? — Alistair pôs a mão no bolso e tirou um aparelho eletrônico do tamanho de um alfinete de lapela. — Acredito que foram vocês que plantaram isto em mim. No museu em Salzburgo, enquanto eu estava cochilando.
— Você m-m-mereceu, tio Alistair — gaguejou Amy, nervosa. — Foi você que escondeu isso na coleira do Saladin af-f-flnal.
—Também não, minha querida — Alistair respondeu com um sorriso caloroso, tentando acalmar os nervos da menina. — Alguma outra pessoa estava rastreando vocês. Não eu. Lembrem-se de que muitos outros membros da família estão competindo pelas pistas. Eu estou do lado de vocês. Como vocês sabem, acredito na cooperação.
— Ah, sim! — Dan retrucou. — Você deveria contar essa em um concurso de piadas.
Paciência. Sempre paciência. Alistair repousou no colo suas mãos com luvas brancas.
— Pensem em quem justamente salvou vocês hoje. E quem, em muito pouco tempo, conseguiu, além de encontrá-los, conceber uma estratégia de fuga. Considerem ainda que, de brinde, estou prestes a levá-los para onde precisam ir, seja onde for. Em umavião particular. Tudo isso, e só peço uma coisa em troca: que vocês me digam para onde estão indo. O que, na presente circunstância, chega a ser mais uma necessidade que uma opção.
—Você tem seu próprio av-vião? — perguntou Amy.
Alistair deu um sorriso modesto.
— Bem, não é meu. Mas ainda tenho contatos comerciais, favores que posso cobrar em situações de emergência. Ser o inventor dos burritos para micro-ondas traz algumas vantagens financeiras.
— Nój ter um eshtoque de burritoj no aviom! — disse Serge. — Carne, franga, quiejo...
O bom e velho Serge. A experiência ensinara aos dois homens a importância do lemada empresa Oh: “O melhor jeito de conquistar o coração de um jovem é oferecendo comida de micro-ondas”.
Amy soltou um suspiro.
— Ok. Se entrarmos nesse avião... se nós concordarmos, que garantia teremos de que...
— Amy! — explodiu Dan. — Nem sonhando! Só tem um jeito de a gente fazer isso, e é sozinhos.
Amy olhou feio para o irmão.
— Ah, então nós vamos para o Japão a nado? Deixa a gente num shopping, tio Alistair. Preciso comprar um pé de pato. Daqueles bem grandes. Com repelente contra tubarões famintos.
Dan rosnou.
— Você disse a palavra que começa com J, Amy! Você contou pra ele!
— Que escolha nós temos, Dan? Eles estão com Nellie e Saladin e nossas...
Amy parou no meio da frase. Alistair lançou-lhe um olhar de incentivo. A coitadinha até que estava progredindo rápido no esforço para superar a timidez.
— Suas...? — ele indagou.
— Nossas... malas — ela respondeu.
Alistair assentiu com a cabeça. Japão. Excelente. Então era lá que estaria a próxima pista. Uma feliz reviravolta. Ele se inclinou para falar com o motorista.
— Temos condições de ir para o Japão, Serge?
O motorista deu de ombros.
— Bom, ser um longo viashem. Precisia parar pra abajtecer no meio do caminio. Na Moscou. Vou avisar. Quando nój pararmoj lá, vocêj podem coniecer meuj filhov: Kolya e Tinatchka!
— Ora, Serge, por favor — disse Alistair. — O motivo da viagem não é a socialização.
Serge soltou uma risada gutural.
— Kolya e Tinatchka não ser socialistas.

***

Dan olhou feio para a irmã. Espadas, ela estivera prestes a dizer. Eles estão com Nellie e Saladin e nossas espadas. Pelo menos ela conseguira fechar o bico daquela vez. Falar para a velha raposa aonde eles estavam indo era uma coisa. Entregar a pista de bandeja era outra. Algumas coisas precisavam permanecer em segredo. Até a burronilda da Amy sabia disso.
Então ele reconheceu o olhar no rosto de Amy. Era mais que o desprezo normal, mais que as variações costumeiras de idiota e não, não é hora de comer. Aquele olhar dizia: Se você estragar tudo, eu te mato.
Que era exatamente o modo como ele estava se sentindo naquele momento.
Alistair pôs a mão no bolso e tirou dois pequenos aparelhos eletrônicos, que entregou para Dan e Amy com falsa jovialidade, como um mordomo demente fingindo ser o Papai Noel.
— São aparelhos de GPS de última tecnologia. Conectem nos seus celulares, como eu fiz com o meu. Ainda não descobri como criptografar o sinal em 128 bits, mas acriptografia-padrão já deve bastar. O que importa é que, quando chegarmos ao Japão, não poderemos nos perder uns dos outros.
Enquanto isso, Serge mostrava a carteira de identificação para um guarda num portão. A limusine pegou uma rua estreita que levava a um minúsculo aeroporto. Eles passaram por vários aviões pequenos e pararam perto de um hangar comprido, aberto.
Serge saiu do carro depressa e abriu a porta do passageiro. Com um sorriso radiante, fez um gesto grandioso na direção do hangar.
— Digam oi pra meu querida Ludmila.
— “Outro” filha? — perguntou Dan. — Quantos você tem?
O menino olhou para os dois lados. O lugar parecia vazio, a não ser por uns poucos jatos pequenos e pela presença de alguns tripulantes parrudos, de barba por fazer. Nenhum deles parecia se chamar Ludmila.
— Não estou vendo ela — Amy falou numa voz tímida.
Mas Dan não ouviu, distraído por um clarão prateado. Um jato absurdamente brilhante surgiu no hangar. Tinha janelas escuras, um formato que parecia uma faca e um cockpit aberto que parecia dizer: Entre e dê o passeio mais emocionante da sua vida.
— Esta... — disse Serge, quando o jato parou na frente deles — ... ser Ludmila.

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