segunda-feira, 12 de maio de 2014

Capítulo 4



As palavras CLASSE ECONÔMICA escritas na passagem deixavam claro a Natalie que ela não deveria esperar por bancos de couro e tratamento VIP. Mas ela também não imaginava que poderiam significar “assentos minúsculos e duros, na companhia de uma porca”.
Não era tanto pela atitude da babá, que, por sinal, era detestável. Nem pelas tatuagens e piercings, que algum dia ainda lhe trariam graves problemas no emprego. Quer dizer, isso caso algum dia ela conseguisse arranjar um emprego de verdade. Não foi nem pela grosseria da moça ao avistar Natalie e o irmão. Certamente, naquelas circunstâncias, não eram esperadas saudações acolhedoras e abraços fortes, mas a enxurrada de xingamentos animalescos foi um pouco, digamos, deselegante. Para dizer o mínimo.
No entanto, tudo aquilo era esperado de uma pessoa da classe social de Nellie. E Natalie e lan eram capazes de tolerar as grosserias. Alguns sacrifícios eram necessários para conseguir as informações de que precisavam.
Na verdade, a pior parte foi a sujeira. Os papéis de bala e as migalhas de batata frita espalhados por todos os lados, a mochila jogada no chão entre os pés dela, em vez de acomodada embaixo do assento da frente. O hábito irritante de enfiar punhados de salgadinhos na boca e falar enquanto mastigava. Terrível. Hábitos desleixados formam uma mente desleixada, dizia o velho ditado da família Kabra. Ou talvez fosse de algum livro de citações. Natalie não tinha muita certeza.
Ela contraiu o rosto enquanto a repugnante babá falava com a boca cheia de comida.
— Choiman... chodchalar ufififer, ochech nhanvan fe fafar defa! — disse Nellie, cuspindo pedacinhos de amendoim e biscoito pelos cantos da boca.
O irmão de Natalie, lan, retirou uma migalha de seus impecáveis cabelos negros.
— Engula, por favor, e repita.
Nellie engoliu com esforço.
— Foi mal... Podem falar o que quiserem, vocês não vão se safar dessa!
— Oh! — lan passou os olhos pelo avião lotado. — Por acaso estou vendo alguém com pena de você? Hum... não. O que você acha, Natalie? Será que vamos nos safar dessa?
— Você pode fazer do jeito fácil, ou seja, respondendo a uma simples pergunta — pressionou Natalie.
Eles já tinham perguntado a mesma coisa para Nellie umas dez vezes, e as respostas foram ficando cada vez mais agressivas. Mas ela ia aprender. Ia entender o que era melhor para ela. E, se não entendesse, bem, os Kabra dispunham de outros métodos.
— Vou perguntar pela última vez: por que estamos indo para o Japão?
Nellie tirou uma revista da bolsa do assento à sua frente, derrubando em lan um par de fones de ouvido e vários lenços de papel usados. Ele deu um pulo e mal conseguiu disfarçar um argh de nojo.
— Porque eu amo sudoku. E os melhores sudokus estão sempre nos voos para o Japão, obviamente. Vocês não entendem nada.
— Café, chá, um salgadinho, ou alguma outra coisa que eu possa fazer para tornar este o melhor voo da sua vida? — trinou uma aeromoça, que se aproximava devagar pelo corredor.
— Um refrigerante e um mandado de polícia, por favor — pediu Nellie. — Porque esses dois não têm direito de estarem sentados aqui, e estão me incomodando.
lan soltou uma risada calorosa.
— Hahá! Ah, prima Nell, você sempre me mata de rir com suas piadas e diabruras. Não é mesmo... Amy?
— Pois é, Daniel — respondeu Natalie. — É sempre assim lá na nossa cidade. Em... Homedale.
— Oh, que convincente. Tem algum policial a bordo? Porque, se não tiver, quero ordenar uma prisão civil. Dá pra fazer isso na Itália, ou seja lá onde estivermos?
Com um sorriso desconfortável, a comissária se curvou e colocou um refrigerante na bandeja de Nellie. Quando se levantou, Natalie virou para a funcionária confusa e fez círculos com o dedo em volta da orelha, num gesto sutil de ela é doida.
Do lado de fora, relâmpagos se alastravam no céu. O avião de repente começou a sacudir.
— Senhoras e senhores, estamos enfrentando uma pequena turbulência — informou o piloto pelo alto-falante.
A aeromoça empurrava o carrinho de volta pelo corredor, pedindo em voz alta aos passageiros:
— Por favor, retornem seus assentos à posição vertical.
lan deu um gemido.
— Eu... não estou me sentindo muito bem...
Quando ele se debruçou para a frente, com o rosto meio esverdeado, foi a vez de Nellie se assustar.
Natalie sorriu. Ela e lan tinham planejado aquilo. Certos sinais para certas situações. Os Kabra eram mestres em planejamentos minuciosos. A farsa de lan só podia significar uma coisa, e Natalie sabia exatamente o que fazer naquele caso.
Mesmo assim, ela não conseguia deixar de sentir pena da garota. Por baixo daquela vulgaridade havia uma faísca de atitude e espírito. Em outras circunstâncias em outra ocasião, ela daria uma boa funcionária para os Kabra.
— Ah, você não vai vomitar, vai? — perguntou Nellie. — Porque eu odeio ver vômito.
Ela se debruçou vasculhando entre os detritos no chão, à procura de um saquinho para enjoo.
Pronto.
Quando Nellie estava olhando para o outro lado, Natalie colocou a mão no bolso e tirou um pequeno vidro com um líquido escuro dentro. Com um movimento ágil, levou o frasco lentamente até o refrigerante de Nellie. Duas gotas eram suficientes.
A nave sacolejou outra vez, assustando Natalie, que derrubou todo o conteúdo do frasco dentro do refrigerante.
Ops.

***

O toque de um telefone despertou Dan de um sono profundo.
A primeira coisa que ele notou foi a mão de Amy, pálida, agarrando com força o descanso de braço.
— Não sei como você consegue dormir numa hora dessas... — ela disse entredentes.
O pequeno jato se inclinou para a esquerda, fazendo Amy deixar escapar um grito.
— Legal! Faz isso de novo, Serge! — pediu Dan.
O piloto deu risada.
— Você gojtar?
— Não! — gritou Amy.
Alistair estava penando para ouvir o telefone.
— Quem é? — Ele fez um gesto para que todos ficassem quietos. — Irina?
Amy soltou um resmungo.
— Sim, eles escaparam — Alistair disse em voz alta.
— Estão comigo, sãos e salvos... O quê? Você disse Japão? — Alistair deu uma gargalhada. — Oh, minha querida. Você acreditou... você realmente acreditou que não foi de propósito que Dan e Amy deixaram os irmãos Kabra pegar as passagens deles? Que eles não instruíram a babá de propósito para embarcar no avião como isca... Puxa vida. Oh, que pândega... não, não, não, Irina... O quê? A ligação está cortada. Talvez você tenha me entendido mal. Sim, É CLARO QUE OS IRMÃOS CAHILL ESTÃO INDO PARA O JAPÃO. É EXATAMENTE ISSO. Adeus, querida.
— Hã... O que foi essa conversa? — perguntou Dan.
Alistair sorriu.
— Eu conheço Irina muito bem. Agora ela está convencida de que vocês é que enganaram os Kabra, e não o contrário. E acreditem: depois do que eu acabei de dizer, o Japão é o último lugar do mundo onde ela procuraria vocês...
— Espere. Você acha que a convenceu? — perguntou Dan. — É... não se ofenda, mas sua mentira me pareceu bem fraquinha.
— Posso ter fracassado em alguns pontos da minha vida, mas sou muito sagaz como observador de pessoas. Sei exatamente o que funciona com Irina Spasky.
Amy virou a cabeça na direção de Alistair, com o rosto quase sem cor. Ele era inteligente em diversos aspectos, mas era um pouco antiquado. E tinha deixado passar despercebida uma coisa incrivelmente óbvia.
— Não... não tenha tanta certeza... — Amy disse

***

A voz do piloto, em russo, pediu a liberação da pista, que logo foi concedida.
Inclinando-se para a direita, o jato foi lentamente perdendo altitude em direção a um pequeno aeroporto na periferia de Moscou. Naquela paisagem seca, árida, a faixa de aterrissagem era uma mancha cinzenta, fantasmagórica.
Os dedos da única passageira seguraram o descanso de braço enquanto as rodas do avião batiam com força no chão. A aterrissagem era sempre mais brusca do que ela esperava.
Quando o jato desacelerou, taxiando na pista, ela olhou para uma aeronave prateada, brilhante, que estava sendo reabastecida. Impressionante.
— Pare aqui — ordenou Irina.
Ela podia ver o velho, mancando com sua bengala. Estava todo aprumado e alinhado, como sempre. O chapéu-coco e os óculos de sol davam um toque sutil de elegância. Irina gostava de homens tradicionais, que não eram escravos da moda. Naquele dia, as roupas dele pareciam um pouco apertadas, mas, com todo aquele estresse da busca às pistas, quem não tinha ganhado alguns quilinhos?
Um minuto depois, os diabretes apareceram, embrulhados em sobretudos e chapéus. Protegidos, como sempre. Primeiro por Grace Cahill, agora pelo tio. Ela nunca conseguira entender por que Alistair vendera a alma para aqueles dois. Algum dia ele ia aprender.
Eles vão trair você, Alistair, ela pensou, a não ser que você os traia primeiro.
Irina sorriu. Pensar nas fraquezas humanas sempre levantava seu ânimo após uma longa viagem. Nos seus bons tempos de KGB, havia aprendido sobre tantas variedades interessantes de traição: chantagem, manipulação, sedução, dupla espionagem.
Equipes... bah!, ela pensou. Era inútil formar equipes para descobrir as 39 pistas. Com um segredo tão poderoso em jogo, a inveja é inevitável e nenhuma aliança sobreviverá. Ela encontraria as pistas sozinha. Sem a ajuda de riquinhos preguiçosos, magnatas decadentes da indústria alimentícia ou de órfãos choramingões. Para eles, os amadores, aquele jogo era um mistério. Mas não para Irina. Ela sabia que o prêmio merecia ficar com a pessoa que mais perdera na vida. Com a loba solitária em busca de justiça. E vingança.
O trio atravessou a pista e embarcou no jato. Irina se recostou no assento, olhando de relance para o celular, que ainda mostrava as coordenadas de GPS e o nome da última pessoa para quem ela tinha ligado: OH, ALISTAIR.
— Oh, Alistair... pois é — ela murmurou. — Você está facilitando demais essa perseguição...
— Chto? — perguntou em russo o piloto, pedindo orientações.
— Siga-os, Alexander.
Ele acionou a alavanca e o motor do avião despertou com um ruído. À frente deles, a nave prateada estava começando a se posicionar para a decolagem.
Finalmente ela ia descobrir se Alistair tinha falado a verdade sobre o destino dos irmãos Cahill.
Ela sorriu. Ninguém jamais fazia Irina Spasky de boba.

Nenhum comentário:

Postar um comentário