Depois de andar mais do que imaginava que alguém fosse capaz de andar, Edmundo parou; parou por ordem da feiticeira, num vale escuro. Deixou-se cair sem forças e ficou imóvel, cara no chão, nem se importando com o que pudesse acontecer, contanto que o deixassem ali deitado. Tão cansado estava que não sentia nem fome nem sede.
— Agora, Majestade, não adianta. Já devem estar na Mesa de Pedra — disse o anão desanimado.
— Talvez o lobo fareje onde estamos e nos traga notícias.
— Boas não podem ser.
— Quatro tronos em Cair Paravel. E se só três forem ocupados? A profecia não se cumprirá.
— Que importância tem isso, agora que Ele chegou? — O anão não tinha coragem de pronunciar o nome de Aslam na presença de sua senhora.
— Pode ser que não fique aqui muito tempo. E então... cairíamos em cima dos três em Cair Paravel.
— Seria melhor conservar este como refém — disse o anão, chutando Edmundo.
— Para que os outros venham salvá-lo? — replicou a feiticeira, com ar desdenhoso.
— Então o melhor é fazer logo o que se tem a fazer.
— Gostaria que fosse na Mesa de Pedra e não aqui. É o lugar adequado. Essas coisas sempre foram feitas lá.
— Longe ainda está o dia em que a Mesa de Pedra voltará a servir para o fim que lhe convém — disse o anão.
— É verdade — concordou a feiticeira. — Assim sendo, vamos à coisa...
Nesse momento, um lobo precipitou-se ao encontro deles, rosnando:
— Estão na Mesa de Pedra com Ele. Mataram o capitão Maugrim. Vi tudo, escondido. Foi um Filho de Adão. Fuja! Fuja!
— Fugir, isso nunca! Convoque todo o meu povo aqui. Chame os gigantes, os velhos lobos e os espíritos das árvores que estão ao nosso lado. Reúna os vampiros, os duendes, os ogros, os minotauros. Chame os vulpinos, as bruxas, os espectros, as almas dos cogumelos bravos. Vamos lutar. Ah! Não tenho ainda a minha vara? Com ela não transformei as hostes deles em estátuas de pedra? Agora vá. Tenho um trabalhinho a fazer na sua ausência.
O bruto fez um sinal com a cabeça, deu meia-volta e se foi.
— Ora, mesa não temos... Espere aí... O mais prático é atá-lo ao tronco de uma árvore.
Edmundo sentiu-se agarrado brutalmente e forçado a manter-se de pé. O anão amarrou-o fortemente a uma árvore. A vista de Edmundo, a feiticeira abriu o manto, deixando aparecer dois braços nus, aflitivamente brancos. E só os viu porque eram mesmo muito brancos, mas não distinguiu quase mais nada, tal era a escuridão que reinava.
— Prepare a vítima.
O anão desabotoou a camisa de Edmundo. Pegando o menino pelos cabelos, puxou-lhe a cabeça para trás, forçando-o a levantar o queixo. Edmundo ouviu um ruído esquisito...zzz...zzz...zzz... A princípio não conseguiu perceber o que era, mas depois compreendeu que alguém estava afiando uma faca.
E ouviu gritos que vinham de todas as direções... um repicar de cascos, um tatalar de asas... e um grito agudo da feiticeira... Reinava em torno a maior confusão. Alguém o desatava da árvore. Vozes vibrantes e bondosas falavam com ele...
— Deitem-no... Deem-lhe um pouco de vinho... Beba isso... Coragem!... Não é
nada...
E havia outras vozes: “Quem agarrou a feiticeira?” “Pensei que você a tivesse agarrado”... “Sumiu depois que soltou o facão”... “Corri, mas foi atrás do anão”... “Quer dizer que ela fugiu?”... “Ei, o que é aquilo? Ah, não é nada, apenas um tronco caído”. Foi quando Edmundo perdeu os sentidos.
Os centauros, os unicórnios, os veados e os pássaros (que formavam o batalhão enviado por Aslam no capítulo anterior) puseram-se a caminho, de regresso à Mesa de Pedra, levando consigo o menino. Mas teriam ficado se pudessem ter visto o que aconteceu em seguida naquele vale.
O silêncio era absoluto. A lua começava a brilhar. Se você estivesse lá, teria visto o luar banhar um velho tronco de árvore e uma rocha arredondada. E, se continuasse a olhar, teria pouco a pouco notado qualquer coisa de estranho no tronco e na rocha. O tronco era parecidíssimo com um homem baixo e gordo, agachado no chão. Veria o tronco caminhar ao encontro da pedra e a pedra sentar-se e começar a conversar com o tronco. Porque eram, muito simplesmente, a feiticeira e o anão. Fazia parte dos poderes da feiticeira dar às coisas a aparência daquilo que não eram. Tivera bastante presença de espírito para fazer uso desse dom no instante em que o facão lhe saltou das mãos.
Quando as crianças acordaram na manhã seguinte, tendo dormido na barraca sobre boas almofadas, ouviram a Sra. Castor dizer que Edmundo estava salvo e fora trazido ao acampamento altas horas da noite. Conversava agora com Aslam.
Tomaram café e saíram todos, e viram Aslam e Edmundo passeando, lado a lado, sobre a relva úmida. Não é preciso dizer para você (e o fato é que ninguém ouviu) o que Aslam dizia. Fique sabendo que foi uma conversa da qual Edmundo jamais se esqueceu. Quando os outros se aproximaram, Aslam voltou-se e, acompanhado por Edmundo, foi ao encontro deles.
— Aqui está o quarto Filho de Adão. E... bem... não vale a pena falar do que aconteceu. O que passou, passou.
Edmundo apertou a mão de todos, repetindo:
— Desculpe...
E cada um respondia:
— Deixe isso pra lá!
Todos queriam dizer alguma coisa, para que não ficasse a menor dúvida de que tudo estava bem outra vez – alguma coisa muito natural e trivial – mas ninguém conseguiu lembrar-se de nada para dizer. Mas não tiveram tempo de se sentir embaraçados, um dos leopardos chegou e disse para Aslam:
— Senhor, está aí um emissário inimigo que implora audiência.
— Mande-o aqui.
Daí a pouco o leopardo voltou com o anão da feiticeira.
— A que vens, Filho da Terra? — perguntou Aslam.
— A Rainha de Nárnia e Imperatriz das Ilhas Desertas deseja salvo-conduto para vos falar sobre um assunto que tanto interessa a vós como a ela — disse o anão, na ponta da língua.
— Ah! Rainha de Nárnia! — comentou o Sr. Castor. — Mas é muito cara-de-pau!...
— Calma, Castor — disse Aslam. — Todos os títulos serão restituídos a quem de direito. Não vale a pena discutir por enquanto. — E, voltando-se para o anão: — Diga a sua senhora que o salvo-conduto está concedido, sob a condição de ela deixar a vara mágica debaixo daquele grande carvalho.
Aceita a condição, dois leopardos acompanharam o anão, para ver se tudo seria feito conforme o combinado.
— E se ela transformar os leopardos em estátua de pedra? — murmurou Lúcia para Pedro.
Acho que os leopardos tiveram a mesma ideia. Estavam completamente arrepiados, de rabo em pé, como um gato na presença de um cão estranho.
— Não tenha medo — cochichou Pedro. — Ele sabe o que faz.
Pouco depois, era a própria feiticeira que aparecia no alto da colina, dirigindo-se sem hesitar para junto de Aslam. Os três, que nunca a tinham visto, sentiram um frio na barriga quando a olharam de frente. Alguns animais começaram a rosnar. Embora fizesse um sol magnífico, todos se sentiram gelados de repente. As únicas pessoas que pareciam estar absolutamente à vontade eram Aslam e a própria feiticeira. Estranho espetáculo: um rosto dourado e um rosto nevado... tão perto um do outro. Não que a feiticeira olhasse Aslam bem de frente. A Sra. Castor não deixou de reparar nisso.
— Há um traidor aqui, Aslam! — declarou a feiticeira.
Todos os presentes entenderam. Mas Edmundo, depois da conversa pela manhã e de tudo o mais, não deu bola. Continuou simplesmente a olhar para Aslam. Estava esnobando a feiticeira, e com razão.
— Não foi bem a você que ele ofendeu — disse Aslam.
— Já se esqueceu da Magia Profunda? — perguntou a feiticeira.
— Digamos que sim — replicou Aslam, solenemente. — Fale-nos da Magia Profunda.
— Falar-lhe da Magia Profunda?! Eu?! — disse a feiticeira, numa voz ainda mais aguda. — Falar-lhe do que está escrito nessa Mesa de Pedra aí ao lado? Falar-lhe do que está escrito em letras do tamanho de uma espada, cravadas nas pedras de fogo da Montanha Secreta? Falar-lhe do que está gravado no cetro do Imperador de Além-Mar? Se alguém conhece tão bem quanto eu o poder mágico a que o Imperador sujeitou Nárnia desde o princípio dos tempos, esse alguém é você. Sabe que todo traidor, pela lei, é presa minha, e que tenho direito de matá-lo!
— Ah! — disse o Sr. Castor. — Já estou entendendo por que foi que você se arvorou em rainha... Você era o carrasco-mor do Imperador!
— Calma, Castor, calma — disse Aslam, em voz baixa e arrastada.
— Portanto — continuou a feiticeira — essa criatura humana me pertence. A vida dela me pertence. Tenho direito ao seu sangue.
— Então venha bebê-lo, se for capaz — disse o touro que tinha cabeça de homem.
— Débil mental! — disse a feiticeira, com um riso de fúria que era quase um grunhido. — Está tão convencido assim de que o seu senhor me pode privar dos meus direitos pela força? Ele conhece bem demais a Magia Profunda para atrever-se a isso. Sabe que, a não ser que eu receba o sangue a que a lei me dá direito, toda a terra de Nárnia será subvertida e perecerá em água e fogo.
— É verdade! — disse Aslam. — Não posso negá-lo.
— Oh! Aslam! — sussurrou Susana, ao ouvido do Leão. — Não podemos nós... quer dizer, isto é, não vai acontecer nada, não é? Não se pode dar um jeito nessa Magia Profunda?
— Enfrentar o poder mágico do Imperador?
Aslam voltou-se para ela, com o rosto ligeiramente carregado. E ninguém mais tocou naquele assunto.
Edmundo fitou Aslam o tempo todo. Sentia-se sufocado e perguntava a si mesmo se devia dizer alguma coisa: compreendeu que não devia dizer coisa nenhuma, só esperar e cumprir o que lhe fosse ordenado.
— Afastem-se — disse Aslam. — Preciso falar a sós com a feiticeira.
Foram momentos terríveis de longa espera. Que estaria o Leão a combinar? Lúcia disse apenas “Oh, Edmundo!”, e começou a chorar. Pedro, de costas para os outros, olhava o mar distante. Cabisbaixos, os castores davam a mão um ao outro. Os centauros, nervosos, batiam com os cascos no chão. Por fim todos se acalmaram e foi um silêncio daqueles de ouvir zumbido de abelha, esvoaçar de passarinho e sussurrar de brisa na folhagem. E a conversa continuava.
Finalmente ouviu-se a voz de Aslam.
— Venham todos. Tudo resolvido. Ela renunciou ao direito que tinha ao sangue de Edmundo.
Pela encosta, ouviu-se um ruído, como se todos tivessem começado a respirar ao mesmo tempo. Foi um pipocar de opiniões.
A feiticeira, com uma expressão de feroz alegria, já estava se afastando quando parou e disse:
— Mas quem me garante que a promessa será cumprida?
— Raaaa-a-aarrgh! — rugiu Aslam, erguendo-se do trono.
E suas faces ficaram escancaradas. O rugido rimbombou. A feiticeira, atônita, agarrou a saia e fugiu como se tivesse a vida em perigo.
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