quinta-feira, 8 de maio de 2014

Capítulo 14 - O triunfo da feiticeira

Logo que a feiticeira desapareceu, Aslam disse:
— Temos de abandonar este lugar imediatamente, porque vai ser utilizado para outra coisa. Acamparemos esta noite na margem do Beruna.
Todos estavam ansiosos, é claro, para conhecer os termos do acordo. Mas a expressão de Aslam era tão severa, e o rugido que soltara ressoava ainda de tal modo nos ouvidos de todos, que ninguém teve coragem de interrogá-lo.
Depois de uma refeição ao ar livre, no cimo da encosta, ajudaram a desarmar a barraca real e a arrumar as coisas. Antes de duas horas estavam a caminho, rumo ao nordeste, avançando a passo moderado, pois o lugar para onde iam não era longe.
Aslam explicou a Pedro seu plano de campanha:
— Logo que termine suas tarefas por aqui, a feiticeira deve voltar para o seu castelo e preparar-se para resistir a um cerco. Talvez você possa cortar-lhe o caminho, impedindo que ela chegue lá, mas também pode ser que não.
Aslam continuou a expor dois planos diferentes de batalha: um para atacar a feiticeira e sua gente no bosque; outro para assaltar o castelo. Aconselhou Pedro sobre a melhor maneira de conduzir as operações, dizendo coisas assim: “Deve colocar os centauros em tal parte”, ou “Não esqueça suas sentinelas”.
Por fim, Pedro falou:
— Mas você ficará comigo, Aslam.
— Nada posso prometer — retrucou Aslam, e continuou a dar suas instruções.
Na segunda etapa da viagem, foram Susana e Lúcia que lhe fizeram companhia. Aslam, entretanto, quase nada falou, dando-lhes a impressão de estar muito triste.
Chegaram a um ponto onde o vale se alargava e o rio corria num leito amplo e pouco fundo. Era o Passo do Beruna. Aslam deu ordem para que acampassem do lado de cá. Pedro observou:
— Não seria melhor o lado de lá? Ela pode atacar-nos à noite.
Aslam, que parecia preocupado com outra coisa, levantou a cabeça, sacudiu a juba soberba e disse:
— Hum! Que foi?
Pedro repetiu a pergunta.
— Não! — disse Aslam, com voz indiferente, como se aquilo não tivesse a mínima importância. — Ela não ataca esta noite.
E soltou um profundo suspiro, acrescentando em seguida:
— De qualquer modo, foi bem pensado. Só que não vale a pena. E continuaram a armar as tendas.
Nessa noite, a tristeza de Aslam projetou-se em todos os outros. Pedro não se sentia bem ao lembrar que ia assumir sozinho a responsabilidade da batalha. Fora um grande choque o fato de Aslam não prometer estar presente. A ceia foi silenciosa, muito diferente da refeição da noite passada ou daquela mesma manhã. Era como se os dias felizes, que mal tinham começado, já chegassem ao fim.
Susana nem conseguiu dormir, inquieta. Depois de muito tempo acordada, virou-se e ouviu Lúcia suspirar.
— Você também não consegue dormir, Lu?
— Não. Achei que você estava dormindo. Tenho um pressentimento horrível, Susana, como se qualquer coisa estivesse para acontecer com a gente.
— É mesmo? Eu também.
— É alguma coisa com Aslam. Ou algo pavoroso está para acontecer com ele, ou é ele que vai fazer algo assim.
— Esteve preocupado o dia inteiro, Lúcia! Ele disse que não poderá estar conosco na batalha. Será que está pensando em ir embora esta noite?
— Onde ele está agora? Na barraca?
— Acho que não.
— Susana! Vamos procurá-lo.
— Está bem, vamos. É melhor do que ficar acordada.
Muito de mansinho, as duas meninas foram abrindo caminho entre os que dormiam e saíram da tenda. O luar estava claro e reinava silêncio. Susana agarrou-se ao braço de Lúcia de repente:
— Lá!
No extremo oposto do acampamento, onde começavam as primeiras árvores, o Leão dirigia-se lentamente para o bosque. Sem trocar palavra, elas foram atrás.
Aslam afastou-se do vale e continuou a andar. Parecia seguir o mesmo caminho que tinham percorrido durante o dia, quando vieram da Mesa de Pedra. Foi seguindo sempre, levando-as ora para lugares escuros, ora para outros banhados de luar. Os pés das meninas estavam úmidos de orvalho. Aslam tinha uma aparência diferente. Cabeça baixa, cauda caída, caminhava devagar, como se estivesse muito cansado. Ao atravessarem uma clareira, onde não havia sombras nas quais pudessem esconder-se, as meninas viram-no parar e olhar em volta. Não adiantava fugir, então elas foram ao seu encontro.
— Crianças, por que estão me seguindo?
— Não conseguimos dormir — respondeu Lúcia, sentindo que não era preciso dizer mais nada.
— Por favor, deixe-nos ir com você, a qualquer lugar... — implorou Susana.
— Bem... — Aslam pareceu refletir. — Vou gostar de ter amigos esta noite. Podem vir... desde que me prometam parar quando eu lhes disser, e me deixem depois continuar sozinho.
— Obrigada, muito... Prometemos!
A marcha prosseguiu: o Leão entre as duas meninas. Como andava devagar! A grande cabeça real ia tão baixa que o nariz quase roçava a relva. A certa altura tropeçou e deixou escapar um gemido.
— Aslam! Aslam querido! — disse Lúcia. — O que há? Por que não nos diz o que tem?
— Está doente, Aslam querido? — perguntou Susana.
— Não. Estou triste. Estou só. Ponham as mãos na minha juba, para que eu sinta que vocês estão aqui, e caminhemos assim.
Foi assim que as meninas fizeram o que, sem licença dele, jamais teriam tido a coragem de fazer; ainda que o desejassem ardentemente, desde o primeiro instante em que o viram... Enfiaram as mãos frias na juba farta, acariciando-a, e foram andando ao lado dele.
Repararam que subiam a encosta do monte sobre o qual estava a Mesa de Pedra. Chegaram à última árvore antes da clareira. Aslam parou e disse:
— Crianças, vocês ficam aqui. Aconteça o que acontecer, fiquem bem escondidas. Adeus!
As duas meninas choraram copiosamente (embora mal soubessem o motivo), agarraram-se ao Leão, deram-lhe beijos na juba, no nariz, nas patas, nos grandes olhos tristes. Depois, ele se afastou e foi sozinho para o alto da colina. Escondidas nas últimas moitas, Susana e Lúcia ficaram espiando.
Vou lhe contar o que elas viram.
Uma imensa multidão estava reunida em torno da Mesa de Pedra. Embora o luar clareasse tudo, muitos traziam tochas, que ardiam com sinistras chamas vermelhas e fumo negro.
Que bicharada! Ogros de dentes monstruosos! Lobos! Homens com cabeça de touro! Espíritos de árvores más e de plantas venenosas! Não falo de outros seres porque, se fizesse isso, as pessoas adultas não o deixariam ler este livro: vulpinos, bruxas, íncubos, fúrias, horrores, espectros, sátiros, lobisomens... Estavam ali todos os que eram do partido da feiticeira, convocados pelo lobo. No centro, em pé junto da mesa, estava a própria feiticeira.
No momento em que viram o enorme Leão dirigir-se para elas, aquelas criaturas soltaram uivos e grunhidos de terror. Até a feiticeira pareceu por um instante paralisada de medo. Mas dominou-se e deu uma selvagem gargalhada.
— O louco! O louco está chegando! Amarrem bem o louco!
Lúcia e Susana pararam de respirar, aguardando o rugido de Aslam e o ataque ao inimigo. Mas nada! Quatro bruxas, rindo zombeteiras (a princípio, a uma certa distância, receosas de cumprir sua missão), aproximaram-se dele.
— Amarrem o louco, já disse!
As bruxas correram para ele com um uivo de triunfo, ao verem que não oferecia resistência. Anões e macacos malignos chegaram de todos os lados para ajudá-las.
Deitaram o Leão de costas. Amarraram-lhe as quatro patas, gritando e dando vivas, como se tivessem cometido um ato de bravura. Claro que, se o Leão quisesse, uma patada seria a morte para eles. Mas ficou quieto, mesmo quando os inimigos rasgaram a sua carne de tanto esticarem as cordas. Depois, começaram a arrastá-lo para o centro da mesa.
— Alto! — disse a feiticeira. — Primeiro, cortem-lhe a juba!
Uma gargalhada mesquinha ressoou quando um ogro, de tesoura na mão, avançou e se pôs de cócoras junto da cabeça do leão. Zip, zip, zip – a tesoura rangia, e montes de caracóis dourados tombavam ao chão. O ogro afastou-se, e, do esconderijo, as meninas puderam ver o rosto de Aslam, pequenino e tão diferente sem a juba! Os inimigos também notaram isso:
— Vejam: não passa de um gatão!
— E é disso que a gente tinha medo?
Rodearam Aslam, zombando dele a valer:
— Miau! Miau! Coitadinho do bichano! Quantos camundongos você papou hoje? Quer um pires de leite, bichinho?
— Que audácia! — disse Lúcia, com lágrimas correndo pelo rosto. — Perversos! Malvados!
Passada a primeira impressão, a cara tosquiada de Aslam parecia-lhe ainda mais valente, mais bela e mais resignada do que nunca.
— Amordacem-no! — gritou a feiticeira.
Mesmo agora, quando lhe punham a focinheira, uma dentada dele bastaria para decepar, pelo menos, as mãos de dois ou três.
Ao vê-lo amordaçado e amarrado, os mais covardes ganharam ânimo. Por instantes, as meninas nem sequer conseguiram vê-lo, rodeado como estava por aquela horda infernal, que lhe batia, dava pontapés, cuspia-lhe em cima, insultava-o.
Por fim, a turba ficou cansada. E o Leão, amarrado e amordaçado, foi arrastado para a Mesa de Pedra, puxado por uns, empurrado por outros. Era tão grande que, mesmo depois de o terem arrastado até lá, só com o esforço de todos foi possível içá-lo e colocá-lo em cima da mesa. Depois, amarraram-no e apertaram-lhe outra vez as cordas.
— Covardes! Covardões! — soluçava Susana. — Será possível que ainda tenham medo dele?
Logo que acabaram de amarrar Aslam à Mesa de Pedra (mas tão amarrado que mais parecia um novelo), fez-se silêncio. Quatro bruxas, aos quatro cantos da mesa, erguiam seus fachos. A feiticeira desnudou os braços, como fizera na noite anterior com Edmundo. Depois, começou a afiar o facão. Quando o brilho do facho caiu sobre ele, Susana e Lúcia acharam que o facão era de pedra e não de aço, e tinha uma forma esquisita e nada agradável.
Por fim a feiticeira aproximou-se. Parou junto da cabeça do Leão. Seu rosto vibrava e contorcia-se de ódio. O dele, sempre calmo, olhava para o céu, com uma expressão que não era nem de ira, nem de medo, um pouco triste apenas. Um momento antes de desferir o golpe, a feiticeira inclinou-se e disse, vibrando com a voz:
— Quem venceu, afinal? Louco! Pensava com isso poder redimir a traição da criatura humana?! Vou matá-lo, no lugar do humano, como combinamos, para sossegar a Magia Profunda. Mas, quando estiver morto, poderei matá-lo também. Quem me impedirá? Quem poderá arrancá-lo de minhas mãos? Compreenda que você me entregou Nárnia para sempre, que perdeu a própria vida sem ter salvo a vida da criatura humana. Consciente disso, desespere e morra.
As meninas não chegaram a ver exatamente este último momento. Tinham tapado os olhos.

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