quinta-feira, 8 de maio de 2014

Capítulo 9 - Na casa da feiticeira

E agora você, naturalmente, quer saber o que aconteceu a Edmundo. Jantou como os outros, mas sem gosto, pensando o tempo todo no manjar turco... E não há nada que tire tanto o gosto da boa comida caseira do que a lembrança de um mau alimento enfeitiçado.
Ouviu a conversa dos outros, também sem satisfação, pois continuava pensando que não lhe davam a devida importância e que o estavam colocando à margem. Ninguém pensava assim, só ele.
Desse modo, ouvira tudo o que o Sr. Castor contara acerca de Aslam, até o momento em que tinham combinado encontrar-se com ele na Mesa de Pedra. Foi aí que, muito sorrateiramente, começou a esgueirar-se por debaixo do reposteiro que cobria a porta. Bastava o nome de Aslam para dar-lhe uma sensação misteriosa e horrível, assim como aos outros dava uma misteriosa sensação de encantamento.
No momento exato em que o Sr. Castor dizia o poema sobre a “carne de Adão e o osso de Adão”, Edmundo saiu de mansinho, fazendo girar mais de mansinho ainda a maçaneta da porta. Antes que o Sr. Castor dissesse que a Feiticeira Branca não era de fato humana, mas da raça dos gênios e dos gigantes, Edmundo estava lá fora.
Não pense que Edmundo era tão ruim a ponto de desejar ver o irmão e as irmãs transformados em estátuas de pedra. O que ele queria simplesmente era comer manjar turco, ser príncipe (e mais tarde rei) e vingar-se de Pedro, que o chamara de “cavalo”.
Quanto ao que a feiticeira pudesse fazer aos irmãos, não queria que fosse coisa muito boa (sobretudo que ela não os colocasse no mesmo nível dele). Mas estava convencido (ou tentava convencer-se) de que ela não poderia ser tão má como diziam. “Porque”, pensava ele, “os que falam mal dela são os inimigos, e é provável que metade do que dizem não seja verdade. Aliás, comigo foi bastante amável, muito mais do que qualquer um deles. Que bom se ela for a verdadeira rainha! É melhor do que aquele pavoroso Aslam!” Foi essa, pelo menos, a desculpa que Edmundo arranjou para justificar o próprio comportamento. Mas a desculpa não era lá essas coisas, pois no fundo sabia que a feiticeira era cruel.
Lá fora, a primeira coisa que percebeu quando viu a neve foi que havia esquecido o casaco na casa dos castores. Mas nem podia pensar em voltar. Viu também que o dia estava no fim. Eram três horas quando começaram a comer, e os dias de inverno são muito curtos. Não contava com isso: agora tinha de aproveitar a pouca luz que restava.
Levantou a gola e lá se foi, arrastando-se sobre o dique na direção da outra margem (felizmente o dique estava muito menos escorregadio).
A coisa estava feia. Escurecia depressa e a neve dançava em flocos em torno dele. Não via um palmo adiante do nariz. Ainda por cima, não havia estrada. Afundava-se a todo instante em enormes fendas abertas na neve, patinhava em charcos gelados, tropeçava em troncos caídos, escorregando por encostas íngremes, esfolando as pernas nas pedras, até que ficou encharcado até os ossos, morto de frio e cheio de arranhões.
Tinha medo do silêncio e da solidão. Estou certo de que teria abandonado o projeto e voltado para contar tudo e fazer as pazes com os outros, se, a certa altura, não dissesse com seus botões: “Quando eu for o rei, minha primeira medida vai ser mandar construir estradas decentes!” Daí, passou naturalmente a imaginar-se rei, a pensar nas mil e uma coisas que haveria de fazer. Sentiu-se até mais animado. Escolheu o tipo de palácio que mandaria construir; decidiu de quantos carros precisava; imaginou todos os pormenores de seu cinema particular; estabeleceu por onde deviam passar as principais linhas de estrada de ferro; pensou nas leis que enviaria ao Parlamento contra os castores e as drogas de seus diques...
Dava os últimos retoques a algumas medidas indispensáveis para enquadrar Pedro, quando, de súbito, o tempo mudou. Primeiro, foi a neve que deixou de cair. Em seguida, veio um vento forte, acompanhado de intenso frio. Finalmente, as nuvens se afastaram, mostrando uma lua cheia, redondíssima, que, brilhando sobre a neve, deixou tudo tão claro como se fosse dia. Só as sombras faziam certa confusão.
Edmundo nunca teria dado com o caminho se a lua não tivesse surgido no momento em que ele chegou ao outro rio – você se lembra que ele viu (quando chegaram à casa dos castores pela primeira vez) um rio menor, afluente do rio grande mais abaixo. Agora, tendo chegado ao rio menor, virou-se decidido a segui-lo.
Mas o vale ao qual levava o rio era muito mais íngreme e escarpado que o primeiro, e todo coberto de arbustos. Às escuras, era difícil orientar-se nele. Mesmo assim, Edmundo ficou encharcado até os ossos, pois a todo instante tinha de abaixar-se e esgueirar-se sob os ramos, caindo-lhe sobre as costas montões de neve. Cada vez que isso acontecia, sentia redobrar nele o ódio a Pedro, como se o irmão fosse o culpado de tudo.
Ao fim de muito tempo, conseguiu chegar a um lugar mais plano, onde o vale se alargava. Do outro lado do rio, bem perto, no meio de uma planície, entre duas colinas, viu o que devia ser a casa da feiticeira.
O luar estava mais belo do que nunca. A casa era de fato um pequeno castelo e parecia ser toda feita de torres de longas espirais pontiagudas, afiadas como agulhas. Faziam lembrar aqueles chapéus bicudos dos feiticeiros ou os gorros que os meninos usavam de castigo na escola. E as torres brilhavam ao luar, alongando sombras sinistras sobre a neve. Edmundo começou a sentir medo.
Mas era tarde demais para voltar. Atravessou o rio gelado, em direção ao castelo.
Tudo imóvel, um silêncio absoluto. O som de seus passos morria na neve funda. Foi andando, andando, rodeou o castelo, passando por várias torres até dar com uma porta. Foi preciso dar uma volta inteira. A entrada era um arco enorme, mas os pesados portões de ferro estavam abertos.
Aproximou-se cautelosamente e olhou o pátio, onde um espetáculo inesperado quase lhe fez parar o coração. Junto dos portões, batido de luar, viu um leão imenso, agachado como se fosse pular. Com os joelhos trêmulos, Edmundo permaneceu na sombra, sem poder avançar ou recuar. Ficou tanto tempo imóvel, que seus dentes teriam começado a bater de frio, se já não batessem de medo. Não sei dizer realmente quanto tempo passou; para Edmundo pareceram horas.
A certa altura, começou a imaginar por que motivo o leão estaria tão quieto: não se mexera um centímetro desde que o vira. Chegou um pouco mais perto, tendo o cuidado, tanto quanto possível, de conservar-se na sombra. Foi aí que, pela posição do leão, concluiu que não podia ter sido visto. “E se ele virar a cabeça?”, pensou. Na realidade, o leão olhava atento para outra pessoa, nada mais, nada menos que um anãozinho, de costas, a pouca distância.
— Ah! Quando se lançar para cima do anãozinho, eu saio correndo!
Mas o tempo passava, e o leão e o anãozinho continuavam imóveis. Até que, finalmente, Edmundo se lembrou do que ouvira dizer sobre a Feiticeira Branca, que transformava os seres vivos em estátuas de pedra. Aquele leão talvez fosse de pedra...
Reparou também que o dorso e a cabeça do leão estavam cobertos de neve. Sem dúvida: era uma estátua. Nenhum ser vivo deixaria que a neve o cobrisse daquela maneira. Muito devagar, com o coração a saltar do peito, encaminhou-se para o leão, mas não ousou tocá-lo. Só depois de muito tempo, num movimento rápido, estendeu a mão e viu que era pedra fria. Tinha sentido medo de uma estátua!
Foi um alívio imenso, tanto que, apesar do frio, se sentiu envolvido por uma onda de calor, ao mesmo tempo que teve uma ideia que lhe pareceu maravilhosa: “Provavelmente... é o grande Aslam, de quem todos falam. Já foi apanhado e virou pedra. Aqui está o fim de todos os belos sonhos daqueles lá. Bacana! E ainda há quem tenha medo de Aslam!”
Ficou gozando do leão de pedra, até que fez uma grande criancice: tirou do bolso um toco de lápis, cobrindo com um bigodão preto o beiço superior do leão e desenhando-lhe um par de óculos.
— Taí, Aslam, seu grande boboca! Está gostando de ser estátua? Pensava que era muito esperto, hein?
Apesar dos rabiscos, a expressão do gigantesco animal era ainda tão terrível, tão triste, tão digna, com os olhos perdidos no luar, que Edmundo não conseguiu divertir-se com a brincadeira. Passou pelo leão e foi andando pelo pátio.
Ao chegar ao centro, viu que havia dezenas de estátuas espalhadas por todos os lados, como peças num tabuleiro de xadrez, durante a partida. Havia sátiros de pedra, lobos, raposas, gatos selvagens. Havia também lindas figuras, que pareciam mulheres e que eram na verdade os espíritos que vivem nas árvores. Havia ainda a estátua enorme de um centauro, um cavalo alado e uma figura, alongada e frágil, que tomou por um dragão.
Tinham todos um ar tão estranho de coisas vivas, mas imóveis, no luar branco e frio, que ele atravessou o pátio com a sensação de quem vive um conto de fadas. Exatamente no centro, elevava-se a figura de um homem da altura de uma árvore, de expressão severa, barba em profusão, com um varapau enorme na mão direita. Mesmo sabendo que se tratava apenas de um gigante de pedra, e não de carne e osso, Edmundo estremeceu ao passar por ele.
Depois reparou na luz mortiça que vinha de uma porta, no lado mais afastado do pátio. Dirigiu-se para lá e encontrou uma escada que conduzia a uma porta aberta. Subiu.
Deitado, à entrada, estava um lobo enorme.
— Não há perigo! Não há perigo! — repetia, tentando tranquilizar-se. — É um lobo de pedra. Não pode fazer nada.
Levantou a perna para passar por cima do lobo. A criatura, monstruosamente grande, levantou-se, de pelo eriçado, escancarou a boca rubra e rosnou:
— Quem está aí? Pare, intruso. Quem é você?
— Com licença, Sr. Lobo — começou Edmundo, tremendo tanto, que mal podia falar. — Meu nome é Edmundo, e sou o Filho de Adão que Sua Majestade a Rainha encontrou há poucos dias no bosque. Venho para contar que meu irmão e minhas irmãs estão neste momento em Nárnia... aqui pertinho, na casa dos castores. Ela... ela quer vê-los.
— Vou informar Sua Majestade — falou o lobo. — Espere aqui e não se mexa, se gosta de viver.
Desapareceu dentro da casa. Edmundo esperou em pé. Os dedos gelados doíam-lhe, o coração batia descompassadamente. Por fim, o lobo cinzento, Maugrim, chefe da polícia secreta, voltou aos saltos:
— Entre, entre, ditoso favorito da Rainha. Ditoso ou desditoso, quem sabe?
Entrou, tendo o cuidado de não pisar nas patas do chefe da polícia secreta. Viu-se logo num saguão comprido e sombrio, com muitos pilares e, como o pátio, cheio de estátuas. A que estava mais perto da porta era a de um pequeno fauno, com uma expressão muito triste. Seria o amigo de Lúcia? A pouca claridade que havia chegava de um único lampião, junto do qual estava sentada a Feiticeira Branca.
— Aqui estou, Majestade — disse Edmundo, avançando, aflito.
— Como se atreve a vir sozinho? — perguntou a feiticeira em tom de ameaça. — Não dei ordem para que trouxesse seus irmãos?
— Perdão, Majestade. Fiz o que pude. Eles estão aqui perto... na casinha que fica sobre o dique, no rio, onde vive o casal de castores.
Um sorriso cruel desenhou-se lentamente no rosto da feiticeira.
— É tudo quanto tem a dizer?
— Não, Majestade — respondeu Edmundo, apressando-se a contar tudo o que ouvira na casa dos castores.
— O quê!? Aslam! Aslam! Será possível? Se descubro que é mentira sua...
— Perdão. Estou só repetindo o que ouvi — gaguejou Edmundo.
Mas a rainha já deixara de preocupar-se com ele e batia palmas. E logo apareceu o anão que antes a acompanhava na floresta.
— Prepare o trenó — ordenou a Feiticeira Branca. — E tire os guizos dos arreios.

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