quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo cinquenta e um

Tobias


Evelyn enxuga as lágrimas dos olhos com o polegar. Estamos de pé perto das janelas, ombro a ombro, observando a neve redemoinhar. Alguns dos flocos juntam-se no peitoril da janela do lado de fora, acumulando no cantos.
A sensação voltou para as minhas mãos. Enquanto olho para o mundo, polvilhado de branco, sinto como se tudo começasse de novo, e que será melhor desta vez.
— Acho que posso entrar em contato com Marcus no rádio para negociar umacordo de paz — diz Evelyn. — Ele vai ouvir, seria estúpido não fazer isso.
— Antes de fazer isso, tem uma promessa que tenho que cumprir — eu digo.
Toco o ombro de Evelyn. Eu esperava ver tensão nas bordas do seu sorriso, mas não vejo.
Sinto uma pontada de culpa. Eu não vim aqui para pedir-lhe para estender os braços para mim em troca de tudo pelo o que ela trabalhou só para me ter de volta. Mas, novamente, eu não vim aqui para lhe dar qualquer escolha. Acho Tris estava certa, quando você tem que escolher entre duas opções ruins, você escolhe a que salva as pessoas que você ama. Eu não teria salvado Evelyn dando-lhe o soro. Eu a teria destruído.
Peter está sentado de costas para a parede no corredor. Ele olha para mim quando inclino-me sobre ele, seu cabelo escuro grudado à testa pela neve derretida.
— Reinicializou sua mãe?
— Não — respondo.
— Não acho que você teria coragem.
— Não se trata de coragem. Sabe o quê? Tanto faz — balanço minha cabeça e ergo o frasco do soro da memória. — Você ainda tem certeza sobre isso?
Ele confirma com a cabeça.
— Você poderia simplesmente trabalhar nisso, sabe — lembro. — Você podetomar decisões melhores, fazer uma vida melhor.
— Sim, eu poderia. Mas eu não vou. Nós dois sabemos disso.
Eu sei disso. Sei que a mudança é difícil, vem lentamente, e que é o trabalho de muitos dias seguidos em uma longa fila da qual a origem está esquecida. Ele tem medo de que não será capaz de se colocar ao trabalho, que ele vai desperdiçar esses dias, e que eles vão deixá-lo pior do que está agora. E eu entendo esse sentimento – entendo ter medo de si mesmo.
Então, sento-o em um dos sofás e pergunto o que ele quer que eu diga a ele sobre si mesmo depois que suas memórias desaparecerem como fumaça. Ele apenas balança a cabeça. Nada. Ele não quer lembrar-se de nada.
Peter pega o frasco com uma mão trêmula e torce a tampa. O líquido treme em seu interior, está quase derramando sobre seu lábio. Ele o aproxima do nariz para sentir o cheiro.
— Quanto devo beber? — pergunta, e eu acho que ouvi seus dentes tremerem.
— Não acho que isso faça diferença.
— Tudo bem. Então... aqui vai — ele levanta o frasco contra a luz, como se estivesse me convidando a brindar.
Quando o frasco toca a sua boca, eu digo:
— Seja corajoso.
Então ele engole.
E eu vejo Peter desaparecer.

+ + +

ar exterior tem gosto de gelo.
— Ei! Peter! — Eu grito, minha respiração se condensando no ar.
Peter está próximo da porta da sede da Erudição, parecendo confuso. Ao som de seu nome – que eu lhe disse pelo menos dez vezes desde que ele bebeu o soro – ele levanta as sobrancelhas, apontando para seu peito. Matthew nos disse que as pessoas ficariam desorientadas por um tempo depois de beber o soro da memória, mas não pensava que “desorientado” significava “estúpido” até agora.
Eu suspiro.
— Sim, é você! Pela décima primeira vez! Vamos, vamos lá.
Pensei que quando olhasse para ele depois de ter bebido o soro, eu ainda veria o iniciado que enfiou uma faca de manteiga no olho de Edward, o rapaz que tentou matar a minha namorada e todas as outras coisas que ele fez, puxando do fundo da minha mente desde que o conheço. Mas é mais fácil do que eu pensei ver que ele não tem mais ideia de quem é. Seu olhar ainda é arregalado e inocente, mas dessa vez eu acredito.
Evelyn e eu andamos lado a lado, com Peter trotando atrás de nós. A neve parou de cair, mas uma quantidade suficiente se acumulou no chão, que chia debaixo dos meus pés. Nós andamos para o Parque Millennium, onde a grande escultura de metalreflete a luz da lua, e depois descemos um lance de escadas. À medida que descemos, Evelyn envolve a mão em volta do meu cotovelo para manter o equilíbrio, e trocamos um olhar. Eu me pergunto se ela está nervosa em ver meu pai novamente. Me pergunto se ela está cada vez mais nervosa.
Na parte inferior dos degraus está um pavilhão com dois blocos de vidro em cada ponta, cada um com pelo menos três vezes a minha altura. Este é o lugar onde dissemos que iríamos encontrar Marcus e Johanna – ambas as partes armadas para ser realista, mas ainda assim.
Eles já estão lá. Johanna não está segurando uma arma, mas Marcus sim, e ele a tem apontada para Evelyn. Aponto a arma que Evelyn me deu para ele, só em caso de segurança. Noto a superfície lisa de seu crânio, à mostra por seu cabelo raspado, e o caminho irregular que seu nariz torto esculpe no rosto.
— Tobias! — Johanna diz. Ela está vestindo um casaco vermelho da Amizade salpicado de flocos de neve. — O que você está fazendo aqui?
— Tentando impedi-los de matar uns aos outros — eu digo. — Estou surpreso que você esteja carregando uma arma.
Aceno para uma protuberância no bolso de seu casaco, o contorno inconfundível de uma arma.
— Às vezes você tem que tomar medidas difíceis para assegurar a paz — Johanna responde. — Acredito que você concorda com isto, como um princípio.
— Não estamos aqui para bater papo — Marcus interrompe, olhando para Evelyn. — Você disse que queria fazer um acordo.
Nas últimas semanas tem acontecido alguma coisa com ele. Posso ver isso nos cantos curvados de sua boca, na pele roxa debaixo dos olhos. Percebo os meus olhos fixados em sua cabeça e penso em meu reflexo na paisagem do medo, quando eu estava apavorado, sentindo o medo propagando-se pela minha pele como se fosse uma erupção cutânea. Ainda temo que eu me torne igual a ele, mesmo agora, de pé em desacordo com ele com minha mãe a meu lado, como sempre sonhei que seria quando era criança. Mas não acho que eu ainda esteja com medo.
— Sim — Evelyn responde. — Tenho alguns termos para nós dois concordarmos. Acho que você irá achá-los justos. Se concordar com eles, vou depor todas as armas que meu povo não está usando para proteção pessoal. Vou deixar a cidade e não retornar.
Marcus ri. Não tenho certeza se é uma risada zombeteira ou incrédula. Ele é capaz de qualquer um desses sentimentos, um homem arrogante e profundamente desconfiado.
— Deixe-a terminar — Johanna diz calmamente, colocando as mãos dentro das mangas.
— E em troca — Evelyn continua — você não vai atacar ou tentar tomar o controle da cidade. Vai permitir que aqueles que optem por ficar possam votar em novos líderes e em um novo sistema social. E o mais importante, você, Marcus, não será elegível para dominá-los.
É o único termo puramente egoísta do acordo de paz. Ela me disse que não podia suportar a ideia de Marcus enganando as pessoas para segui-lo, e eu não queria discutir com ela.
Johanna levanta as sobrancelhas. Percebo que ela tem o cabelo puxado para trás de ambos os lados, revelando a cicatriz em sua totalidade. Ela parece melhor assim – forte, quando não está se escondendo atrás de uma cortina de cabelo, escondendo quem ela é.
— Sem acordo — Marcus responde. — Eu sou o líder dessas pessoas.
— Marcus — Johanna alerta.
Ele a ignora.
— Você não pode decidir se eu vou liderá-los ou não porque você tem rancor de mim, Evelyn!
— Desculpe-me — Johanna diz em voz alta. — Marcus, o que ela está oferecendo é bom demais para ser verdade, obtemos tudo o que queremos, sem violência! Como você pode dizer não?
— Eu sou o líder legítimo destas pessoas! Sou o líder dos Convergentes! Eu...
— Não você não é — Johanna fala calmamente. — Eu sou a líder dos Convergentes. E você vai aceitar esse acordo, ou eu vou dizer-lhes que você teve a chance de acabar com esse conflito sem derramamento de sangue se sacrificasse seu orgulho, e você disse não o fez.
A máscara passiva de Marcus desaparece, revelando o rosto malicioso que se escondia sob ela. Mas mesmo assim ele não foi capaz de argumentar com Johanna, cuja perfeita calma e ameaça dominou-o. Ele balança a cabeça, mas não discute novamente.
— Eu concordo com os termos — diz Johanna, e ela estende a mão, seus passos rangendo na neve.
Evelyn remove sua luva dedo por dedo, e treme.
— Pela manhã, nós devemos reunir todos e contar-lhes o novo plano — Johanna fala. — Você pode garantir um acordo seguro?
— Vou fazer o meu melhor — responde Evelyn.
Checo meu relógio. Uma hora se passou desde que Amar e Christina se separaram de nós, perto do edifício Hancock, o que significa que ele sabe que o vírus não funcionou. Ou talvez ele não saiba. De qualquer forma, tenho que fazer o que vim fazer aqui, tenho que encontrar Zeke e sua mãe e dizer a eles o que aconteceu com Uriah.
— Eu devo ir — digo para Evelyn. — Tenho outra coisa para fazer. Mas vou encontrá-la nos limites da cidade amanhã à tarde, tudo bem?
— Está bem — Evelyn concorda, e esfrega meu braço rapidamente com uma mão enluvada, como costumava fazer quando eu chegava do frio quando criança.
— Você não vai voltar, suponho? — Johanna me pergunta. — Encontrou uma vida para si mesmo lá fora?
— Encontrei — confirmo. — Boa sorte aqui. As pessoas de fora – elas vão tentar derrubar a cidade. Você deve estar preparada.
Johanna sorri.
— Tenho certeza de que podemos negociar com eles.
Ela me oferece a mão, e eu a cumprimento. Sinto os olhos de Marcus em mim como um peso opressivo ameaçando esmagar-me. Eu me forço a olhar para ele.
— Adeus — digo a ele, e quero realmente dizer isso.

+ + +

Hana, a mãe de Zeke, tem pés pequenos que não tocam o chão quando ela se senta na poltrona em sua sala de estar. Ela está usando um roupão de banho e ásperos chinelos pretos, mas o ar que ela tem, com as mãos dobradas no colo e as sobrancelhas levantadas, é tão digno que sinto que estou de pé na frente de um líder mundial. Olho para Zeke, que está esfregando o rosto com os punhos para acordar.
Amar e Christina os encontraram, mas não entre outros revolucionários perto do edifício Hancock, mas no apartamento da família na Pira, acima da sede da Audácia. Eu só os encontrei porque Christina pensou em deixar para mim e Peter uma nota com a nova localização no caminhão inutilizado. Peter está esperando na nova van que Evelyn encontrou para dirigirmos até o Centro.
— Sinto muito — digo. — Eu não sei por onde começar.
— Você pode começar com o pior — Hana sugere. — Como o que exatamente aconteceu com o meu filho.
— Ele ficou gravemente ferido durante um ataque — respondo. — Houve uma explosão, e ele estava muito perto.
— Oh Deus — diz Zeke, e ele balança a cabeça para trás e para frente como se seu corpo quisesse ser uma criança novamente, acalmado pelo movimento como uma criança.
Mas Hana só inclina a cabeça, escondendo o rosto de mim.
Sua sala de estar tem cheiro de alho e cebola, talvez os restos do jantar daquela noite. Inclino meu ombro na soleira da porta. Pendurado torto ao meu lado está um retrato da família – Zeke é uma criança, Uriah um bebê no colo da mãe. O rosto de seu pai possui piercings em vários lugares – nariz, orelhas e lábios, mas o seu sorriso largo e brilhante e a pele escura são mais familiares para mim, porque ele os passou para seus filhos.
— Ele está em coma desde então — digo. — E...
— E ele não vai acordar — completa Hana, com a voz tensa. — Isso é o que você veio nos dizer, não é?
— Sim — respondo. — Eu vim para buscá-la para que você possa tomar uma decisão em seu nome.
— Zeke — diz Hana, e ela balança a cabeça. Ele afunda de volta no sofá. As almofadas parecem envolvê-lo. — É claro que não queremos mantê-lo vivo dessa maneira. Ele gostaria de seguir em frente. Mas gostaríamos de vê-lo.
Concordo com a cabeça.
— Claro. Mas há algo mais que eu deveria dizer. O ataque... foi uma espécie de revolta que envolveu algumas pessoas do lugar onde estávamos. E eu participei dele.
Fico olhando para as rachaduras nas tábuas que estão bem na minha frente, na poeira que se reuniu há muito tempo, e espero por uma reação, qualquer reação. O que me é dado é apenas o silêncio.
— Eu não fiz o que você me pediu — falo para Zeke. — Não cuidei dele do jeito que deveria. E sinto muito.
Eu olho para ele, e Zeke permanece sentado, olhando para uma xícara vazia na mesa de café. Está pintado com rosas desbotadas.
— Acho que precisamos de algum tempo com isso — diz Hana.
Ela limpa a garganta, mas não consegue disfarçar a voz trêmula.
— Eu gostaria de poder dá-lo a você. Mas voltaremos para o complexo muito em breve, e você tem que vir com a gente.
— Tudo bem — Hana responde. — Se puder esperar do lado de fora, estaremos lá em cinco minutos.

+ + +

A viagem de volta para o complexo é lenta e escura. Vejo a lua desaparecer e reaparecer atrás das nuvens enquanto balançamos na estrada. Quando alcançamos os limites exteriores da cidade, começa a nevar de novo, bastante, flocos de luz que giram na frente dos faróis. Me pergunto se Tris está assistindo a neve do outro lado da calçada se reunindo em pilhas perto dos aviões. Eu me pergunto se ela está vivendo em um mundo melhor do que aquele que eu saí, entre as pessoas que já não recordam o que é ter genes puros.
Christina se inclina para sussurrar em meu ouvido.
— Então, você o fez? Funcionou?
Concordo com a cabeça. Pelo espelho retrovisor, vejo-a tocar o rosto com as duas mãos, sorrindo entre suas palmas. Eu sei como ela se sente: segura. Estamos todos a salvo.
— Você inoculou sua família? — pergunto.
— Sim. Nós as encontramos com os Convergentes, no edifício Hancock — diz ela. — Mas a hora para a reinicialização passou – parece que Tris e Caleb a pararam.
Hana e Zeke murmuram um para o outro no caminho, maravilhados com o mundo estranho e escuro que estamos passando. Amar dá a explicação básica à medida que avançamos, olhando para eles ao invés de para a estrada vezes demais para o meu desconforto. Tento ignorar meus surtos de pânico quando ele quase bate em postes ou barreiras na estrada, e concentro-me na neve.
Sempre odiei o vazio que o inverno traz à paisagem em branco e a diferença gritante entre o céu e a terra, a forma como ele transforma as árvores em esqueletos e a cidade em um terreno baldio.
Talvez neste inverno eu possa ser convencido do contrário.
Passamos pelas cercas e paramos nas portas da frente, que já não estão vigiadas por guardas. Nós saímos, e Zeke pega a mão de sua mãe para firmá-la enquanto ela treme na neve. À medida que caminhamos para o composto, eu sei de fato que Caleb conseguiu, porque não há ninguém à vista. Isso só pode significar que eles foram reinicializados, suas memórias para sempre alteradas.
— Onde estão todos? — Amar pergunta.
Nós passamos pelo posto de segurança abandonado sem parar. Do outro lado, vejo Cara. A lateral do rosto está muito machucada, e há uma bandagem em sua cabeça, mas isso não é o que me preocupa. O que me preocupa é o olhar perturbado em seu rosto.
— O que aconteceu? — pergunto.
Cara balança a cabeça.
— Onde está Tris?
— Sinto muito, Tobias.
— Sinto muito por quê? — Christina devolve. — Diga-nos o que aconteceu!
— Tris foi para o Laboratório de Armas ao invés de Caleb — Cara conta. — Ela sobreviveu ao soro da morte, e detonou o soro da memória, mas ela... ela foi baleada. E ela não sobreviveu. Eu sinto muito.
Na maioria das vezes eu posso dizer quando as pessoas estão mentindo, e esta deve ser uma mentira, porque Tris ainda está viva, os olhos brilhantes, as faces coradas e seu corpo pequeno cheio de poder e força, de pé em uma faixa de luz no lobby. Tris ainda está viva, ela não me deixaria aqui sozinho, ela não iria para o laboratório de armas no lugar de Caleb.
— Não — diz Christina, sacudindo a cabeça. — De jeito nenhum. Tem que haver algum engano.
Os olhos de Cara se enchem de lágrimas.
É então que percebo: é claro que Tris iria para o Laboratório de Armas em vez de Caleb.
É claro que ela faria isso.
Christina grita alguma coisa, mas para mim a voz dela soa abafada, como se eu tivesse minha cabeça submersa em água. Os detalhes do rosto de Cara também se tornaram difíceis de ver, o mundo se espalhando em cores sem graça. Tudo o que posso fazer é ficar parado, me sinto como se apenas ficando parado, posso impedir esse fato de ser verdade, posso fingir que está tudo bem. Christina se debruça, incapaz de suportar sua própria dor, e Cara a abraça, e tudo o que eu faço é ficar parado.

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