quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo cinquenta

Tris


— Como você se vacinou contra o soro da morte? — ele me pergunta.
Ele continua sentado em sua cadeira de rodas. Mas você não precisa ser capaz de andar para disparar uma arma.
Eu pisco pra ele, continuo tonta.
— Eu não me vacinei.
— Não seja estúpida. Você não pode sobreviver ao soro da morte sem uma vacina, e eu sou a única pessoa no complexo que possui essa substancia.
Eu apenas o encaro, sem certeza do que falar. Eu não me vacinei. O fato de que continuo parada em pé é impossível. Não há nada mais para falar.
— Suponho que isso não importa mais — ele diz. — Nós estamos aqui agora.
— O que você está fazendo aqui? — balbucio.
Sinto meus lábios estranhamente grandes, difícil de falar. Ainda sinto aquele peso oleoso na minha pele, como se a morte estivesse se prendendo a mim, mesmo depois de eu tê-la derrotado.
Estou consciente de que deixei minha arma no corredor atrás de mim, certa de que não precisaria dela se chegasse até tão longe.
— Eu sabia que alguma coisa estava acontecendo — David diz. — Você tem andado por aí com pessoas geneticamente danificadas a semana inteira, Tris, pensou que eu não notaria? — Ele balança sua cabeça. — E depois, sua amiga Cara foi pega tentando manipular as luzes, mas ela sabiamente fugiu antes de poder falar qualquer coisa para nós. Então eu vim para cá, só pra checar. Estou triste em dizer que não estou surpreso em ver você.
— Você veio aqui sozinho? — pergunto. — Você não é muito esperto, é?
Seus olhos brilhantes se espremem um pouco.
— Bom, você vê, eu tenho resistência ao soro da morte e uma arma, e você não tem como lutar contra mim. Não há como você roubar quatro dispositivos de vírus enquanto tenho você na mira da arma. Temo que tenha vindo até aqui por razão nenhuma, e isso vai custar sua vida. O soro da morte pode não ter te matado, mas eu vou. Tenho certeza de que você entendeu – oficialmente nós não permitimos morte como punição, mas não posso deixar que você sobreviva a isto.
Ele acha que estou aqui para roubar as armas que irão reinicializar os experimentos, não para ativar uma delas. É claro que ele acha isso.
Tento esconder minha expressão, embora eu tenha certeza de que ela continua ali. Deslizo meus olhos pelo cômodo, buscando pelo dispositivo que vai lançar o vírus do soro da memória. Eu estava lá quando Matthew o descreveu para Caleb detalhadamente mais cedo: uma caixa preta com um teclado prateado, marcado com uma listra azul com um número modelo escrito nele. É um dos únicos itens no balcão ao longo da parede esquerda, somente alguns centímetros longe de mim. Mas não posso me mover, ou então ele vai me matar.
Vou ter que esperar pelo momento certo, e fazer isso rápido.
— Eu sei o que você fez — digo. Começo a me afastar, esperando que aquela acusação o distraia. — Sei que você projetou a simulação de ataque. Sei que você é responsável pela morte dos meus pais – pela morte da minha mãe. Eu sei.
— Eu não sou responsável pela morte dela! — David responde, as palavras irrompendo dele, altas e súbitas. — Eu avisei a ela o que estava vindo logo antes de o ataque começar, então ela tinha tempo suficiente para escoltar os seus amados para uma casa segura. Se ela tivesse permanecido segura, teria vivido. Mas ela era uma mulher tola que não entendia sobre fazer sacrifícios para o bem maior, e isso a matou!
Eu franzo minha testa para ele. Há algo em sua reação – sobre a translucidez de seus olhos – alguma coisa que ele murmurou quando Nita injetou-o com o soro do medo – alguma coisa sobre ela.
— Você a amou? — pergunto. — Todos os anos ela te mandava correspondência... o motivo pela qual você queria que ela permanecesse lá... o motivo pela qual você disse a ela que você não podia mais ler as suas notícias, depois de ela casar com o meu pai...
David permanecesse parado como uma estátua, como um homem de pedra.
— Eu a amei — ele diz. — Mas esse tempo passou.
Esse é o motivo pela qual ele me acolheu em seu circulo de confiança, o motivo pela qual me deu tantas oportunidades. Porque eu sou uma parte dela, vestindo seu cabelo e falando com a sua voz. Porque ele passou sua vida buscando por ela e nunca teve nada.
Eu escuto passos no corredor lá fora. Os soldados estão vindo. Bom – porque preciso que eles se exponham ao soro no ar, para espalhá-lo pelo resto do complexo. Com sorte vão esperar até que o ar esteja limpo do soro da morte.
— Minha mãe não era tola. Ela apenas entendia algo que você não. Não é sacrifício se é a vida de outro que você está jogando fora, é apenas maldade.
Eu me afasto outro passo e digo:
— Ela me ensinou sobre sacrifícios reais. Que deve ser feito por amor, nãoconfundido com desgosto pela genética de outra pessoa. Que deve ser feito por necessidade, não sem esgotar todas as outras opções. Deve ser feito para pessoas que precisam de força porque elas não têm o suficiente para si mesmas. Por esse motivo eu tive que te impedir de “sacrificar” todas aquelas pessoas e suas memórias. Por esse motivo preciso livrar o mundo de você de uma vez por todas.
Eu balanço a minha cabeça.
— Eu não vim aqui para roubar nada, David.
Invisto na direção do dispositivo. A arma dispara e dor corre pelo meu corpo. Eu não sei nem onde a bala me acertou.
Ainda posso ouvir Caleb repetindo o código para Matthew. Com uma mão trêmula, digito os números no teclado.
A arma dispara novamente.
Mais dor, e pontos pretos na minha visão, mas escuto a voz de Caleb falando de novo. O botão verde.
Muita dor.
Mas como, se sinto meu corpo dormente?
Eu começo a cair, e deslizo a mão no teclado enquanto caio. Uma luz acende atrás do botão verde.
Eu escuto um bip, e um som agitado.
Deslizo para o chão. Sinto alguma coisa quente em meu pescoço, e embaixo do meu queixo. Vermelho. Sangue é uma cor estranha. Escuro.
Pelo canto do meu olho, vejo David se afundando na cadeira de rodas. E minha mãe saindo de trás dele.
Ela está vestida com as mesmas roupas que vestia da última vez que a vi, cinza da Abnegação manchado com seu sangue, os braços nus mostrando a tatuagem. Ainda há buracos de tiros em sua camisa; através deles eu posso ver sua pele machucada, vermelha mas não mais sangrando, como se ela estivesse congelada no tempo. Seucabelo loiro opaco está amarrado para trás em um coque, mas alguns fios soltosmoldam seu rosto em ouro.
Sei que ela não pode estar viva, mas não sei se estou vendo-a agora porque estou delirando por conta da perda de sangue, ou se o soro da morte bagunçou meus pensamentos ou se ela está aqui de alguma outra forma.
Ela se ajoelha perto de mim e toca uma mão fria em minha bochecha.
— Olá, Beatrice — ela diz, e sorri.
— Eu já estou pronta? — pergunto, e não tenho certeza se eu realmente falei isso ou se eu só pensei e ela ouviu.
— Sim — ela responde, seus olhos brilhantes de lágrimas. — Minha querida filha, você se saiu tão bem.
— E os outros?
Eu engasgo com um soluço enquanto uma imagem de Tobias vem a minha mente, quão escuros e firmes seus olhos eram, quão forte e quente sua mão era, quando nós ficamos pela primeira vez face a face.
— Tobias, Caleb, meus amigos?
— Eles vão cuidar uns dos outros — ela diz. — Isso é o que as pessoas fazem.
Eu sorrio e fecho meus olhos.
Sinto o fio me puxando de novo, mas desta vez sei que não é uma força sinistra me arrastando para a morte.
Desta vez sei que é a mão do meu irmão, me trazendo para seus braços.
E eu vou tão feliz para o seu abraço.

+ + +

Posso ser perdoada por tudo o que fiz para chegar aqui?
Eu quero ser.
Eu posso.
Eu acredito nisso.

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