Tobias
É estranho ver as pessoas que você não conhece bem, pela manhã, com os olhos sonolentos e vincos de travesseiro em suas bochechas. Saber que Christina é alegre pela manhã, que Peter acorda com o cabelo perfeitamente alisado, enquanto Cara se comunica apenas por grunhidos, avançando pouco a pouco, membro por membro, em direção ao café da manhã.
A primeira coisa que faço é tomar uma chuveirada e mudar para as roupas que nos providenciaram, que não são muito diferentes das que estou acostumado, mas todas as cores são misturadas como se não significassem nada para as pessoas aqui, e provavelmente não significam. Eu uso uma camisa preta e calça jeans e tento me convencer de que é normal, que me sinto normal, que estou me adaptando.
O julgamento do meu pai é hoje. Ainda não decidi se vou vê-lo ou não.
Quando volto, Tris já está totalmente vestida, empoleirada na beira de uma das camas, como se estivesse pronta para saltar de pé a qualquer momento. Assim como Evelyn.
Pego um muffin da bandeja de café da manhã comida que alguém nos trouxe, e sento-me em frente a ela.
— Bom dia. Você levantou cedo.
— Sim — ela responde, balançando o pé para a frente, de modo que fica entre os meus. — Zoe me encontrou naquela grande escultura esta manhã – David tinha algo para me mostrar — ela pega a tela de vidro descansando na cama ao lado dela. A tela brilha quando ela toca, mostrando um documento. — É o arquivo da minha mãe. Ela escreveu um diário, um pequeno, a partir do seu ponto de vista, mas ainda assim — ela o afasta como se estivesse desconfortável. — Eu não olhei muito ainda.
— Então, por que você não está lendo?
— Eu não sei — ela o coloca para baixo, e a tela desliga-se automaticamente. — Acho que eu tenho medo disso.
Crianças da Abnegação raramente conhecem os seus pais de qualquer maneira significativa, já que os adultos nunca se revelam da forma como os outros pais fazem quando seus filhos crescerem a uma determinada idade. Eles mantém-se envoltos em uma armadura cinza de pano e atos altruístas, convencidos de que compartilhar coisas sobre si é ser indulgente.
Este não é apenas um pedaço recuperado da mãe de Tris, é um dos primeiros e últimos vislumbres honestos que Tris chegará a ter da antiga Natalie Prior.
Entendo, então, por que ela mantém aquilo como se fosse um objeto mágico, algo que poderia desaparecer em um momento. E por que ela quer deixá-lo de lado por um tempo – é o mesmo que sinto pelo julgamento do meu pai. Poderia dizer-lhe algo que ela não quer saber.
Sigo os olhos pela sala aonde Caleb se senta, mastigando um pedaço de cereal melancolicamente, com um beicinho infantil.
— Você vai mostrar a ele? — pergunto.
Ela não responde.
— Normalmente eu não defendo dando-lhe qualquer coisa — eu digo. — Mas neste caso... isso não pertence realmente apenas a você.
— Eu sei disso — ela responde, um pouco secamente. — Claro que vou mostrar para ele. Mas quero ficar sozinha com ele primeiro.
Não posso discutir com isso. A maior parte da minha vida foi gasta mantendo as informações para mim, revirando-as em minha mente. O impulso de compartilhar qualquer coisa é algo novo, o impulso para esconder é tão natural quanto respirar.
Ela suspira, então pega um pedaço do muffin em minha mão. Dou um tapinha em seus dedos enquanto ela afasta a mão.
— Ei! Há muito mais a apenas cinco metros à sua direita.
— Então você não deveria estar tão preocupado em perder alguns pedacinhos — diz ela, sorrindo.
— Está longe o suficiente.
Ela me puxa pela frente da camisa e me beija. Deslizo minha mão sob seu queixo e a seguro enquanto eu a beijo de volta. Então percebo que ela está roubando outro pedaço de muffin e me afasto, olhando para ela.
— Sério — eu digo. — Vou pegar um lá da bandeja. Só vai levar um segundo.
Ela sorri.
— Então, há algo que eu queria te perguntar. Estaria disposto a se submeter a um pequeno teste genético esta manhã?
A frase “um pequeno teste genético” me parece uma contradição.
— Por quê?
Pedir para ver os meus genes soa um pouco como me pedir para tirar a roupa.
— Bem, esse cara que eu conheci – Matthew é o nome dele – trabalha em um dos laboratórios daqui, e ele disse que estava interessado em examinar o nosso material genético para a pesquisa — ela responde. — E perguntou sobre você, especificamente, porque você é uma espécie de anomalia.
— Anomalia?
— Aparentemente, você exibe algumas características Divergentes e que os outros não tem — diz ela. — Eu Não sei. Ele é apenas um curioso sobre o assunto. Você não tem que fazer isso.
O ar ao redor da minha cabeça parece mais quente e pesado. Para aliviar o desconforto, massageio a parte de trás do meu pescoço, passando a mão no cabelo ali.
Em algum momento na próxima hora ou assim, Marcus e Evelyn estarão nas telas. De repente, sei que não posso assistir.
Assim, ainda que eu realmente não queira deixar um estranho examinar as peças do quebra-cabeça que compõem a minha existência, respondo:
— Claro. Eu vou fazer isso.
— Ótimo — diz ela, e come outro pedaço do meu muffin.
Uma mecha de cabelo cai em seus olhos, e estou puxando-a de volta antes mesmo que ela perceba isso. Ela cobre a minha mão com a sua, que é quente e forte, e os cantos de sua boca se moldam em um sorriso.
A porta se abre, admitindo um jovem com olhos puxados e angulares de cabelos pretos. Eu o reconheço imediatamente como George Wu, irmão mais novo de Tori. “Georgie” foi o nome que ela chamou.
Ele dá um sorriso alegre e eu sinto o desejo de me afastar, colocar mais espaço entre mim e sua dor iminente.
— Acabei de voltar — diz ele, sem fôlego. — Eles me disseram que minha irmã partiu com vocês, e...
Tris e eu trocamos um olhar perturbado. Ao nosso redor, os outros estão percebendo George na porta e ficam calados, o mesmo tipo de silêncio que você ouve em um funeral da Abnegação. Mesmo Peter, que eu esperaria desfrutar da dor das outras pessoas, parece confuso, mudando as mãos de sua cintura para os bolsos e de volta.
— E... — George começa novamente. — Por que estão olhando para mim desse jeito?
Cara dá alguns passos para a frente e começa a dar as más notícias, mas não posso imaginar Cara fazendo isso bem, então eu me levanto, interrompendo-a.
— Sua irmã fugiu com a gente — falo. — Mas nós fomos atacados pelos sem facção, e ela... não conseguiu.
Há tanta coisa que a frase não diz – quão rápido foi, o som de seu corpo batendo no terra, o caos de todos correndo para a noite, tropeçando sobre a grama. Eu não voltei por ela. Deveria tê-lo feito, de todas as pessoas no nosso grupo, Tori era quem eu conhecia melhor, sabia quão bem suas mãos manejavam a agulha da tatuagem e da maneira que sua risada soava áspera, como se tivesse sido raspada com lixa.
George se apoia na parede atrás dele para se estabilizar.
— O quê?
— Ela deu a vida para nos defender — Tris fala com surpreendente gentileza. — Sem ela, nenhum de nós teria conseguido sair.
— Ela está... morta? — George diz fracamente.
Ele inclina seu corpo inteiro contra a parede, e seus ombros caem.
Vejo Amar no corredor, um pedaço de pão na mão e um sorriso rapidamente desaparecendo de seu rosto. Ele deixa o alimento em uma mesa perto da porta.
— Tentei encontrá-lo mais cedo para dizer — Amar fala.
Ontem à noite, Amar disse o nome de George tão casualmente, não pensei que eles realmente se conheciam. Aparentemente se conhecem.
Os olhos de George estão vidrados, e Amar o puxa para um abraço. Os dedos de George estão dobrados em ângulos duros na camisa de Amar, os nós dos dedos brancos com a tensão. Eu não o ouvi chorar, e talvez ele não tenha chorado, talvez tudo o que precise fazer é agarrar a algo. Tenho apenas memórias nebulosas da minha própria dor sobre a minha mãe, quando pensei que ela estava morta, apenas a sensação de que eu estava separado de tudo ao meu redor, e a sensação constante de que precisava para engolir alguma coisa. Eu não sei como é para outras pessoas.
Eventualmente, Amar leva George para fora do quarto, e eu os assisto caminhar lado a lado no corredor, conversando em voz baixa.
+ + +
Mal me lembro que concordei em participar de um teste genético até que alguém aparece na porta do dormitório, um garoto, ou não realmente um garoto, já que ele parece quase tão velho quanto eu. Ele acena para Tris.
— Oh, esse é Matthew — diz ela. — Acho que devemos ir.
Ela pega a minha mão e me puxa para a porta. De alguma forma, não a escutei mencionar que “Matthew” não era um cientista idoso e mal-humorado. Ou talvez ela não tenha mencionado nada disso.
Não seja estúpido, penso.
Matthew estica a mão.
— Oi. Prazer em conhecê-lo. Sou Matthew.
— Tobias — respondo, porque “Quatro” soa estranho aqui, onde as pessoas nunca se identificam por quantos medos elas têm. — Prazer também.
— Então vamos para os laboratórios, eu acho — diz ele. — Eles ficam por aqui.
O lugar está cheio de pessoas esta manhã, todos vestidos com uniformes azuis ou verde escuros, cujas calças arrastam-se no chão ou penduram-se acima dos tornozelos dependendo da altura da pessoa. O complexo é cheio de áreas abertas que se ramificam em grandes corredores, como as câmaras de um coração, cada uma assinalada com uma letra e um número, e as pessoas parecem estar se movendo entre elas, alguns transportando dispositivos de vidro como o que Tris trouxe esta manhã, alguns de mãos vazias.
— O que são esses números? — Tris pergunta. — Apenas uma maneira de rotular cada área?
— Eles costumavam ser portões — diz Matthew. — O que significa que cada um tem uma porta e uma passarela que levava a um avião particular, indo para um destino particular. Quando o aeroporto se transformou no complexo, eles arrancaram todas as cadeiras em que as pessoas costumavam esperar seus voos e as substituíram por equipamentos de laboratório, principalmente recolhidos das escolas da cidade. Esta área do complexo é basicamente um laboratório gigante.
— Em que estão trabalhando? Pensei que vocês estavam apenas observando os experimentos — eu digo, assistindo uma mulher correr de um lado do corredor para o outro com uma tela equilibrada em ambas as palmas.
Feixes de luz refletem no azulejo polido do chão, vindo através das janelas. Pelas janelas tudo parece tranquilo, cada folha de grama aparada e as árvores silvestres balançando à distância, e é difícil imaginar que as pessoas estão destruindo o mundo lá fora por causa de “genes deficientes” ou vivendo sob as regras estritas de Evelyn na cidade de que saímos.
— Alguns deles estão fazendo isso. Tudo o que eles percebem em todos os experimentos restantes tem que ser registrado e analisado, de forma que requer uma grande quantidade de mão-de-obra. Mas alguns também estão trabalhando em melhores formas de tratar a deficiência genética, ou desenvolvendo soros para uso próprio, em vez de usar os experimentos... há dúzias de projetos. Tudo o que você tem a fazer é ter uma ideia, reunir uma equipe e propor ao Conselho que examina o composto com David. Eles costumam aprovar qualquer coisa que não é muito arriscado.
— Sim — diz Tris. — Não gostariam de correr riscos.
Ela revira os olhos um pouco.
— Eles têm uma boa razão para seus empreendimentos — diz Matthew. — Antes de as facções serem introduzidas – e os soros com elas – os experimentos estavam sob ataque quase constante a partir de dentro. Os soros ajudam as pessoas no experimento a manter as coisas sob controle, especialmente o soro da memória. Bem, acho que ninguém está trabalhando nisso agora, está no Laboratório de Armas.
“Laboratório de armas.” Ele diz as palavras como se fossem frágeis em sua boca. Palavras sagradas.
— Então o Centro nos deu os soros, no início — Tris observa.
— Sim. E então a Erudição continuou a trabalhar sobre eles, para aperfeiçoá-los. Incluindo o seu irmão. Para ser honesto, nós temos alguns dos nossos empreendimentos de soro a partir deles, observando-os pela sala de controle. Só que eles não fizeram muito com o soro da memória da Abnegação. Nós fizemos muito com ele, já que é a nossa maior arma.
— Arma — Tris repete.
— Bem, armas que protegem as cidades contra as suas próprias rebeliões, para uma coisa: apagar as memórias das pessoas e não haver necessidade de matá-las, pois eles só esquecem porque estavam brigando. E nós também podemos usá-lo contra os rebeldes da fronteira, que estão a cerca de uma hora daqui. Às vezes, os moradores marginalizados tentam atacar, e usamos o soro da memória para pará-los sem matá-los.
— Isso é... — eu começo.
— Ainda terrível de certo modo? — Matthew completa. — Sim, é. Mas os superiores aqui pensam nisso como nossa vida apoio, a nossa máquina de respiração. Aqui estamos nós.
Levanto minhas sobrancelhas. Ele falou contra os seus próprios líderes tão casualmente eu quase não notei. Pergunto-me se esse é o tipo de lugar onde a dissidência pode ser expressa em público, no meio de uma conversa normal, em vez de em espaços secretos, com voz baixa.
Ele passa seu cartão em uma pesada porta à nossa esquerda e caminha até outro corredor, este estreito e iluminado com luz pálida, fluorescente. Ele para em uma porta marcada como SALA DE TERAPIA GENÉTICA 1. No interior, uma garota de pele morena e macacão verde está substituindo o papel que cobre a mesa de exame.
— Essa é Juanita, a técnica de laboratório. Juanita, estes são...
— Sim, eu sei quem eles são — diz ela, sorrindo.
Com o canto do olho, vejo Tris endurecer, brava contra o lembrete de que nossas vidas têm estado diante das câmeras. Mas ela não diz nada sobre isso.
A menina me oferece sua mão.
— O supervisor de Matthew é a única pessoa que me chama de Juanita. E Matthew, aparentemente. Sou Nita. Precisará que eu prepare dois testes?
Matthew concorda.
— Eu vou arrumar.
Ela abre um conjunto de armários em toda a sala e começa a puxar as coisas. Todas estão revestidas em plástico e papel e têm rótulos brancos. A sala está cheia com o som de enrugar e rasgar.
— Estão gostando de ficar aqui até agora? — ela pergunta.
— Estamos nos ajustando — eu digo.
— Sim, sei o que você quer dizer — Nita sorri para mim. — Eu vim de um dos outros experimentos – o de Indianápolis, o que falhou. Oh, vocês não sabem onde fica Indianápolis, não é? Não é longe daqui. Menos de uma hora de avião — ela faz uma pausa. — Isso não vai significar nada para vocês também. Sabem o que mais? Isso não é importante.
Ela pega uma seringa e agulha de sua embalagem de papel e plástico, e Tris enrijece.
— O que é isso? — Tris pergunta.
— É o que nos permitirá ler seus genes — diz Matthew. — Você está bem?
— Sim — Tris responde, mas ela ainda está tensa. — Eu só... Não gosto de ser injetada com substâncias estranhas.
Matthew concorda.
— Juro que isso só vai ler os seus genes. É tudo o que ele faz. Nita pode atestar isso.
Nita assente.
— Tudo bem — Tris fala. — Mas... posso fazer isso sozinha?
— Claro — Nita responde.
Ela prepara a seringa, enchendo-o com o que pretendem nos injetar, e a oferece a Tris.
— Eu vou lhe dar a explicação simplificada de como isso funciona — Matthew fala enquanto Nita esfrega o braço de Tris com antisséptico. O cheiro é azedo, e faz arder o interior do meu nariz.
— O líquido é embalado com microcomputadores. Eles são projetados para detectar marcadores genéticos específicos e transmitir os dados para um computador. Vai levar cerca de uma hora para me dar o máximo de informação que preciso, ainda que levaria muito mais tempo para ler todo o seu material genético, obviamente.
Tris insere a agulha em seu braço e pressiona o êmbolo.
Nita puxa meu braço para a frente e passa a gaze manchada de laranja sobre a minha pele. O fluido na seringa é prata, como escamas de peixe, e quando flui em mim através da agulha, imagino a tecnologia microscópica passando por meu corpo, me lendo e me analisando. Ao meu lado, Tris segura uma bola de algodão contra a pele picada e me oferece um pequeno sorriso.
— O que são os... microcomputadores? — Matthew balança a cabeça, e eu continuo — o que eles estão procurando, exatamente?
— Bem, quando nossos predecessores no Centro inseriram genes “corrigidos” em seus antepassados, eles também incluíram um rastreador genético, que é, basicamente, algo que nos mostra que uma pessoa alcançou a cura genética. Neste caso, o rastreador genético estar consciente durante as simulações é algo que podemos facilmente atestar, o que nos mostra se os seus genes estão curados ou não. Essa é uma das razões pelas quais todos na cidade tem que fazer o teste de aptidão aos dezesseis anos – se estiverem conscientes durante o teste, nos mostra que eles poderiam ter os genes curados.
Acrescento a prova de aptidão em uma lista mental de coisas que antes eram tão importantes para mim, deixando-a de lado porque era apenas um ardil para tirar das pessoas a informação ou resultado que eles queriam.
Não posso acreditar que a consciência durante as simulações, algo que me fez sentir poderoso e único, algo pela qual Jeanine e a Erudição mataram, na verdade era apenas um sinal de cura genética dessas pessoas. Como uma palavra de código especial, dizendo-lhes que estou em sua sociedade geneticamente curada.
Matthew continua:
— O único problema com o rastreador genético é que estar consciente durante as simulações e resistir a soros não significa necessariamente que uma pessoa é Divergente, é apenas tem uma forte correlação. Às vezes, as pessoas vão estar conscientes durante simulações ou serão capazes de resistir aos soros mesmo que ainda tenha os genes alterados — ele encolhe os ombros. — É por isso que estou interessado em seus genes, Tobias. Estou curioso para ver se você é realmente Divergente, ou se a sua consciência na simulação apenas fez parecer que é.
Nita, que está limpando o balcão, pressiona os lábios como se estivesse segurando palavras dentro da boca. Sinto-me subitamente desconfortável. Há uma chance de que eu não seja realmente Divergente?
— Tudo o que resta é sentar e esperar — diz Matthew. — Vou buscar café da manhã. Algum de vocês quer algo para comer?
Tris e eu balançamos nossas cabeças.
— Eu estarei de volta em breve. Nita, pode fazer-lhes companhia, não é?
Matthew sai sem esperar pela resposta de Nita, e Tris senta na mesa de exame, o papel enrugando embaixo dela e rasgando onde sua perna onde paira sobre a borda. Nita coloca as mãos nos bolsos do uniforme e olha para nós. Seus olhos são escuros, com o mesmo brilho de uma poça de óleo vazando debaixo de um motor. Ela me dá uma bola de algodão, e eu o pressiono na bolha de sangue no interior do meu cotovelo.
— Então você veio de uma cidade-experimento — Tris fala. — Há quanto tempo está aqui?
— Desde que o experimento de Indianápolis foi dissolvido, o que foi cerca de oito anos atrás. Eu poderia ter integrado na população maior, fora dos experimentos, mas que senti que era grande demais — Nita inclina-se contra o balcão. — Então, me ofereci para vir aqui. Eu costumava ser uma zeladora. Estou me movendo através das fileiras, acho.
Ela fala com uma certa dose de amargura. Suspeito que aqui, como na Audácia, há um limite para ela subir na hierarquia, e ela está chegando mais cedo do que gostaria. Da mesma forma que eu, quando escolhi o meu trabalho na sala de controle.
— E sua cidade tinha facções? — Tris pergunta.
— Não, foi o grupo-controle que os ajudou a descobrir que as facções eram realmente eficazes por comparação. Tinha um monte de regras, no entanto, o toque de recolher, a hora de acordar, normas de segurança. Sem permissão para armas. Coisas assim.
— O que aconteceu? — pergunto, e um momento depois que desejo não ter aberto a boca, porque os cantos da boca de Nita inclinam-se para baixo, como se a memória pairasse pesada de cada lado.
— Bem, algumas das pessoas lá dentro ainda sabiam como fazer armas. Eles fizeram uma bomba, você sabe, um explosivo, e a jogaram no prédio do governo. Muitas pessoas morreram. E depois o Centro decidiu que nosso experimento foi um fracasso. Eles apagaram as memórias dos homens-bomba e realocaram o resto de nós. Sou uma das únicas que quis vir para cá.
— Sinto muito — Tris diz suavemente.
Às vezes ainda me esqueço de olhar para as partes mais delicadas dela. Por muito tempo, todo o que eu vi foi a força, destacando-se como os músculos vigorosos nos braços ou a tinta preta marcando sua clavícula com o voo.
— Está tudo bem. Não é como se vocês não soubessem sobre esse tipo de coisa — diz Nita. — Com o que Jeanine Matthews fez, e tudo.
— Por que eles não fecharam a nossa cidade? — Tris pergunta. — Da mesma forma que fizeram com a sua?
— Eles ainda podem fechá-la. Mas acho que o experimento de Chicago, em particular, tem sido um sucesso por tanto tempo que eles vão ficar um pouco relutantes em simplesmente abandoná-lo agora. Foi o primeiro com facções.
Tiro a bola de algodão do braço. Há um pequeno ponto vermelho onde a agulha entrou, mas não está mais sangrando.
— Gosto de pensar que eu teria escolhido Audácia — Nita diz. — Mas não acho que eu teria tido estômago para isso.
— Você ficaria surpresa com o estômago que tem para as coisas, quando precisa — Tris fala.
Sinto uma pontada no meio do meu peito. Ela está certa. O desespero pode fazer uma pessoa fazer coisas surpreendentes. Nós dois sabemos.
+ + +
Matthew retorna na hora marcada e se senta em frente ao computador por um longo tempo depois disso, seus olhos mudando de um lado para o outro enquanto ele lê a tela. Algumas vezes ele faz um barulho revelador, um “hmm!” ou um “ah!”. Quanto mais tempo ele espera para nos dizer alguma coisa, qualquer coisa, mais tenso meus músculos ficam, até meus ombros parecerem feitos de pedra em vez de carne. Por fim, ele olha para cima e vira a tela, para que possamos ver o que está nela.
— Este programa nos ajuda a interpretar os dados de uma forma compreensível. O que você vê aqui é uma representação simplificada de uma sequência específica de DNA do material genético de Tris — diz ele.
A imagem na tela é uma massa complicada de linhas e números, com algumas partes selecionadas em amarelo e vermelho. Não posso ver qualquer sentido da imagem, está acima do meu nível de compreensão.
— Essas seleções aqui sugerem genes curados. Nós não iríamos vê-las se os genes fossem deficientes — ele aponta para certas partes da tela. Não entendo para o que ele está apontando, mas ele não parece notar, imerso em sua própria explicação. — Essas marcas aqui indicam que o programa também constatou o rastreador genético, a consciência de simulação. A combinação de genes curados e genes de consciência de simulação é exatamente o que eu esperava ver a de uma Divergente. Agora, esta é a parte estranha.
Ele toca a tela novamente, e a imagem muda, mas continua a ser tão confusa, uma rede de linhas, fios emaranhados de números.
— Este é o mapa de genes de Tobias — diz Matthew. — Como podem ver, ele tem a configuração genética para a consciência de simulação, mas não tem os mesmos genes “curados” que Tris.
Minha garganta está seca, e sinto como se tivessem me dado uma má notícia, mas ainda não compreendi totalmente que notícia ruim é.
— O que significa isso? — Eu peço.
— Isso significa — Matthew diz — que você não é Divergente. Seus genes ainda estão deficientes, mas você tem uma anomalia genética que lhe permite estar consciente durante as simulações de qualquer maneira. Tem, em outras palavras, a aparência de um Divergente sem realmente ser um.
Eu processo as informações lentamente, pedaço por pedaço. Eu não sou Divergente. Não sou como Tris. Sou geneticamente deficiente.
A palavra “deficiente” afunda dentro de mim como chumbo. Acho que eu sempre soube que havia algo de errado comigo, mas pensei que fosse por causa do meu pai, ou minha mãe, e da dor que me deixaram como uma relíquia de família, passada de geração em geração. E isto significa que a única coisa boa que meu pai tinha – a Divergência – não me alcançou.
Eu não olho para Tris – não posso suportar isso. Em vez disso, olho para Nita. Sua expressão é dura, quase com raiva.
— Matthew — ela fala. — Você não quer levar esses dados para o seu laboratório para analisar?
— Bem, eu estava pensando em discutir nossos assuntos aqui.
— Não acho que seja uma boa ideia — Tris responde, afiada como uma lâmina.
Matthew diz algo que eu realmente não ouço, eu estou ouvindo a batida do meu coração. Ele toca a tela novamente e a imagem do meu DNA desaparece, assim a tela de vidro se apaga. Ele sai, instruindo-nos a visitar seu laboratório se quisermos obter mais informações, e Tris, Nita, e eu fico na sala em silêncio.
— Não é grande coisa — Tris diz com firmeza. — Tudo bem?
— Você não tem que me dizer que não é grande coisa! — respondo, mais alto do que pretendia.
Nita ocupa-se no balcão, certificando-se de que os recipientes estão alinhados, apesar de eles não terem se mexido desde que entrei na sala.
— Sim, eu tenho! — Tris exclama. — Você é a mesma pessoa que era há cinco minutos, há quatro meses, há 18 anos! Isso não muda nada sobre você.
Ouço em suas palavras que é certo, mas é difícil acreditar nela agora.
— Então você está me dizendo que isso não afeta nada — eu digo. — A verdade não afeta nada.
— Que verdade? Essas pessoas lhes dizem que há algo errado com os seus genes e você apenas acredita?
— Foi ali mesmo — eu gesticulo para a tela. — Você viu.
— Eu também te vi — ela responde ferozmente, com a mão fechada em volta do meu braço. — E eu sei quem você é.
Balanço minha cabeça. Eu ainda não consigo olhar para ela, não posso olhar para nada em particular.
— Eu... preciso caminhar. Vejo você mais tarde.
— Tobias, espere...
Eu ando para fora, e um pouco da pressão dentro de mim se libera assim que eu não estou mais na sala. Ando pelo corredor apertado que se pressiona contra mim como um suspiro, e pelas salas iluminadas além dele. O céu está azul brilhante agora. Ouço passos atrás de mim, mas eles são pesados demais para pertencer a Tris.
— Hey — Nita retorce os pés, fazendo-os ranger contra o azulejo. — Sem pressão, mas eu gostaria de falar com você sobre tudo isso... deficiência no material genético. Se estiver interessado, me encontre aqui esta noite às nove. E... sem ofensa para a sua namorada ou qualquer coisa, mas você pode não querer levá-la.
— Por quê?
— Ela é uma GP – geneticamente pura. Então ela não pode entender que... bem, é difícil de explicar. Basta confiar em mim, ok? É melhor ela ficar longe disso por um tempo.
— Tudo bem.
— Ok — Nita assente. — Tenho que ir.
Eu a vejo correr de volta para a sala de terapia genética, e então continuo caminhando. Não sei onde estou indo, exatamente, só sei que quando ando, o frenesi de informações que recebi no dia para de se mover tão rápido, para de gritar tão alto dentro da minha cabeça.
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