quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo onze

Tris


O trem desacelera quando nos aproximamos da cerca, um sinal do condutor para que saiamos rápido. Tobias e eu estamos sentados na porta do vagão enquanto o trem se move preguiçosamente na via. Ele põe o braço ao meu redor e toca meu cabelo com o nariz, respirando fundo. Eu o olho, da clavícula que se assoma do colarinho da camiseta à pequena curvatura de seus lábios, e sinto algo aquecer-se dentro de mim.
— Em que está pensando? — ele pergunta suavemente em meu ouvido.
Me endireito. Eu o olho o tempo todo, mas não sempre assim – sinto como se tivesse acabado de ser pega fazendo algo vergonhoso.
— Nada! Por quê?
— Por nada.
Ele me puxa mais para si, e descanso minha cabeça em seu ombro, tomando profundas respirações de ar frio. Todavia cheira como verão, como grama aquecendo-se à luz do sol.
— Parece que estamos nos aproximando da cerca — observo.
Eu sei por que os edifícios estão desaparecendo, deixando apenas campo salpicado pela luz rítmica dos vaga-lumes. Atrás de mim, Caleb se senta perto da outra porta, abraçando seus joelhos. Seus olhos encontram os meus, e quero gritar em suas partes mais escuras para que me escute, para que finalmente entenda o que me fez, mas em vez disso só o encaro até que ele não suporta e desvia o olhar.
Me preparo, usando a alça para me equilibrar, e Tobias e Caleb fazem o mesmo. A princípio, Caleb tenta ficar atrás de nós, mas Tobias o empurra adiante, bem na borda do vagão.
— Você primeiro. Ao meu sinal — ele fala. — E... já!
Ele empurra Caleb, apenas o suficiente para tirá-lo do piso do vagão, e meu irmão desaparece. Tobias é o próximo, deixando-me sozinha no trem. É estúpido sentir falta de algo quando há muitas pessoas para se sentir saudade, mas sentirei falta deste trem e de todos os outros que me levaram à cidade, minha cidade, depois que fui valente para pegá-los. Passo meus dedos pela porta do vagão, apenas uma vez, e logo salto. O trem está se movendo tão devagar que me desequilibro na aterrissagem – estou acostumada a pular em alta velocidade – e caio. As plantas secas ralam minhas mão e eu me levanto, buscando Tobias e Caleb na escuridão. Antes de encontrá-los, ouço Christina:
— Tris!
Ela e Uriah chegam até mim. Ele está segurando uma lanterna, e parece bem mais alerta que esta tarde, o que é um bom sinal. Atrás deles há mais luzes, e mais vozes.
— Seu irmão veio? — Uriah pergunta.
— Sim.
Finalmente vejo Tobias, sua mão segurando o braço de Caleb, chegando até nós.
— Não sei como um Erudito como você pode não entender — Tobias dizia — mas não pode correr mais rápido que eu.
— Tem razão — Uriah concorda — Quatro é rápido. Não mais rápido que eu, mas definitivamente mais rápido que um Testa como você.
Christina ri.
— Um o quê?
— Testa — Uriah toca a testa — é um jogo de palavras. Testa, testes, Erudito... entendeu? É como Careta.
— Os Audaciosos tem o mais estranho vocabulário. Mariquinha, Testa... há algum termo para os integrantes da Franqueza?
— É claro — Uriah sorri. — Idiotas.
Christina empurra Uriah com força, fazendo-o soltar a lanterna. Tobias, rindo, nos guia até o resto do grupo, parados a poucos metros.
Tori sacode sua lanterna para captar a atenção de todos. Ela diz:
— Muito bem, Johanna e os caminhões estarão a uns dez minutos daqui, assim que começarmos a caminhar. E se eu ouvir uma palavra de alguém, o espancarei até deixá-lo sem sentidos. Ainda não saímos.
Nos aproximamos mais, como seções de um cadarço se apertando. Tori caminha alguns metros a nossa frente, e de trás, na escuridão, me lembra Evelyn, suas pernas magras e enxutas, os ombros para trás, tão segura de si que é quase aterrador. À luz das lanternas, apenas posso distinguir a tatuagem de um falcão em sua nuca, a primeira coisa que falei enquanto ela aplicava meu teste de aptidão. Dissera-me que era o símbolo de um medo que havia vencido, o medo do escuro. Me pergunto se esse medo a assusta agora, apesar de ter trabalhado duro para superá-lo.  Me pergunto se o medo realmente se vai, ou apenas perde o poder sobre nós.
Ela fica mais longe de nós a cada minuto, seu ritmo mais como uma corrida leve que uma caminhada. Tem muita vontade de sair, escapar deste lugar onde seu irmão foi assassinado e ela alcançou a liderança só para ser frustrada por uma mulher sem facção que não devia estar viva.
Está tão na nossa frente que quando os tiros ressoam, só vejo a lanterna cair, não seu corpo.
— Separem-se! — ruge a voz de Tobias sobre o som de nossos gritos, de nosso caos. — Corram!
Busco na escuridão por sua mão, mas não a encontro. Pego a arma que Uriah me deu antes de irmos e a seguro contra meu corpo, ignorando a maneira com que minha garganta se tensiona pela sensação de segurá-la. Não posso correr pela noite. Preciso de luz. Vou até o corpo de Tori, em busca da lanterna caída.
Escuto, porém não ouço os disparos, os gritos e os passos apressados. Só ouço meu coração batendo. Me agacho junto ao facho de luz e recolho a lanterna, com a intenção de simplesmente agarrá-la e seguir correndo, mas em sua luz vejo o rosto dela. Brilha com suor e seus olhos rodam sob as pálpebras, como se estivesse procurando algo, mas está cansada demais para encontrá-lo.
Um dos projéteis acertou seu estômago, e outro encontrou seu peito. Não há maneira de poder se recuperar disso. Posso estar brava por ela ter lutado comigo no laboratório de Jeanine, mas ela continua sendo Tori, a mulher que guardava o segredo de minha Divergência. Minha garganta se aperta enquanto me lembro de segui-la para a sala do teste de aptidão, meus olhos em sua tatuagem de falcão.
Seus olhos se movem em minha direção e se concentram em mim. Suas sobrancelhas se unem, mas ela não fala.
Ponho a lanterna na curva do meu polegar e alcanço sua mão para apertar os dedos suados.
Escuto alguém se aproximando, aponto a lanterna e a arma na mesma direção. Uma mulher usando um bracelete sem facção surge na luz, uma arma apontando para minha cabeça. Disparo, cerrando meus dentes tão forte que chiam.
A bala a acerta no estômago e ela grita, disparando às cegas pela noite.
Baixo o olhar para Tori, e seus olhos estão fechados, seu corpo imóvel.
Apontando a lanterna para o chão, me afasto rapidamente dela e da mulher em quem acabei de atirar. Minhas pernas doem e meus pulmões queimam. Não sei onde vou, se estou correndo para o perigo ou afastando-me dele, mas sigo correndo tanto quanto posso.
Finalmente vejo uma luz à distância. A princípio acredito que é outra lanterna, mas enquanto corro para mais perto, me dou conta que é maior e mais estável que uma lanterna, é um farol. Escuto um motor, e me agacho no mato alto para me esconder, apagando minha lanterna e mantendo a arma pronta. O caminhão diminui, e ouço uma voz:
— Tori?
Soa como Christina. O caminhão é vermelho e está enferrujado, um veículo da Amizade. Me endireito, apontando a lanterna para mim para que me vejam. O caminhão para a alguns metros diante de mim, e Christina salta do assento do passageiro, fechando os braços ao redor de mim. Reproduzo os acontecimentos em minha mente para saber que são reais – o corpo de Tori caindo, as mãos da mulher sem facção cobrindo seu estômago. Não funciona. Não parece real.
— Graças a Deus — Christina fala. — Suba. Temos que encontrar Tori.
— Tori está morta — falo calmamente, e a palavra “morta” a faz real para mim.
Seco as lágrimas de minhas bochechas com as palmas das mãos e luto para controlar minhas respirações trêmulas.
— Eu... eu atirei na mulher que a matou.
— O quê? — Johanna soa frenética. Ela se inclina do assento do motorista. — O que disse?
— Tori se foi — falo. — Vi quando aconteceu.
A expressão de Johanna está escondida por seu cabelo. Ela solta o ar com força.
— Bom, vamos buscar os outros então.
Subo no caminhão. O motor ruge enquanto Johanna pisa no pedal, e atropelamos arbustos em busca dos demais.
— Viu algum deles? — pergunto.
— Uns poucos. Cara, Uriah — Johanna balança a cabeça. — Ninguém mais.
Envolvo minha mão ao redor da alça da porta e a aperto. Se tivesse me esforçado mais para encontrar Tobias... se não tivesse parado por Tori...
E se Tobias não conseguiu?
— Tenho certeza de que estão bem — Johanna fala. — Esse seu garoto sabe como se cuidar.
Assinto, sem convicção. Tobias pode cuidar de si mesmo, mas num ataque, sobreviver é um acidente. Não é necessária nenhuma habilidade para ficar onde as balas não te encontrem, ou disparar na escuridão e acertar um homem que não te viu. Tudo é questão de sorte – ou de intervenção divina, dependendo do que você acredita. E não sei – nunca soube – exatamente em que acredito.
Ele está bem ele está bem ele está bem.
Tobias está bem.
Minhas mãos estão tremendo, e Christina aperta meu joelho.
Johanna dirige até o ponto de encontro, onde vejo Uriah e Cara. Olho a agulha do velocímetro subir, e logo se mantém constante nos 75 km/h. Somos lançadas de um lado ao outro pelo terreno irregular, nos empurrando.
— Ali! — Christina aponta.
Há um grupo de luzes diante de nós – alguns são apenas pontos pequenos, como lanternas, e outros são redondos, como faróis.
Chegamos perto, e o vejo. Tobias está sentado no capô de outro caminhão, seu braço empapado de sangue. Cara se encontra na frente dele com uma bolsa de primeiros socorros. Caleb e Peter estão sentados no mato a poucos metros de distância. Antes que Johanna pare o caminhão completamente, abro a porta e saio correndo até ele. Tobias se põe de pé, ignorando as ordens de Cara para ficar sentado, e nos chocamos, seu braço machucado ao redor de minhas costas, me carregando. Suas costas estão molhadas de suor, e quando ele me beija, tem gosto de sal.
Todos os nós de tensão dentro de mim se desfazem outra vez. Sinto-me, por um momento, renovada, como se fosse nova.
Ele está bem. Estamos fora da cidade. Ele está bem.

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