quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo dez

Tobias


Os edifícios em ruínas do setor da Audácia parecem portas para outros mundos. Diante de mim vejo a Pira perfurando o céu.
A pulsação em meus dedos marca os segundos que passam. O ar todavia é rico em meus pulmões, mesmo que o verão esteja chegando ao fim. Bastava correr e lutar todo o tempo porque o que me importavam eram meus músculos. Agora meus pés me salvaram vezes demais, e não posso separar correr e lutar do que são: uma maneira de escapar do perigo, uma maneira de continuar vivo.
Quando chego ao edifício, me detenho diante da entrada para recuperar o fôlego. Acima de mim, painéis de cristal refletem a luz em todas as direções. Em algum lugar ali em cima está a cadeira em que me sentei enquanto estava executando a simulação de ataque, e há uma mancha de sangue do pai de Tris na parede. Em algum lugar lá em cima, a voz de Tris atravessou a simulação em que eu estava, e senti sua mão em meu peito, trazendo-me para a realidade.
Abro a porta da sala da paisagem do medo e puxo a tampa da pequena caixa negra que estava em meu bolso traseiro para ver as seringas dentro. Esta é a caixa que sempre usei, acolchoada ao redor das agulhas; é o símbolo de algo doente em meu interior, ou de algo valente.
Coloco a agulha em minha garganta e fecho os olhos enquanto pressiono o êmbolo. A caixa negra cai com estrépito no chão, mas no momento em que abro os olhos, ela desapareceu.
Estou de pé no teto do edifício Hancock, perto da tirolesa onde os Audaciosos brincam com a morte. as nuvens são negras com a chuva, e o vento me enche a boca quando a abro para respirar. À minha direita, a tirolesa estala, o cabo chicoteando para trás e estilhaçando as janelas abaixo de mim.
Minha visão se estreita ao redor da borda do teto, preso no centro de um buraco. Posso ouvir minha própria exalação apesar do vento que silva.
Me obrigo a caminhar pela borda. A chuva golpeia contra meus ombros e cabeça, arrastando-me até o chão. Ponho o peso um pouco para frente e caio, minha mandíbula reprimindo os gritos, afogados e sufocados por meus próprios medos.
Depois que aterrisso, não tenho nem um segundo para descansar antes que as paredes se fechem ao meu redor, a madeira atingindo-me nas costas, então na cabeça e depois minhas pernas. Claustrofobia. Ponho os braços em meu peito, fecho os olhos e tento não entrar em pânico.
Penso em Eric em sua paisagem do medo, vencendo seu terror à submissão com respirações profundas e lógicas. E Tris, conjurando armas do nada para atacar seus piores pesadelos. Mas não sou Eric, e não sou Tris. O que eu sou? O que eu preciso para superar meus medos?
Sei a resposta, é claro que sim: tenho que negar-lhes o poder de me controlar. Preciso saber que sou mais forte que eles.
Respiro e fecho minhas palmas contra as paredes à esquerda e à direita. A caixa racha e logo se rompe, as tábuas estatelam contra o solo de cimento. Me ponho de pé por cima delas na escuridão.
Amar, meu instrutor na iniciação, nos ensinou que nossas paisagens do medo sempre estavam em processo de mudança, se transformando de acordo com nossos estados de ânimo e com os pequenos sussurros de nossos pesadelos. A minha sempre foi a mesma, até a poucas semanas. Até que demonstrei que posso dominar meu pai. Até que descobri alguém por quem ficaria aterrorizado de perder.
Não sei o que vou ver a seguir.
Espero muito tempo sem que nada mude. A sala está escura, o chão ainda está frio e duro, meu coração segue batendo mais rápido que o normal. Olho para o relógio e descubro que está no pulso errado – costumo usá-lo no esquerdo, não no direito, e a correia não é cinza, é preta.
Então me dou conta dos pelos eriçados em meus dedos que não estavam ali antes. Os calos nos nós dos dedos se foram. Olho para baixo, e estou usando calças e uma camiseta cinza, sou mais largo no tronco e mais magro nos ombros.
Ergo meus olhos a um espelho que agora se encontra a minha frente o rosto que me encara fixamente é o de Marcus.
Ele pisca para mim, e sinto os músculos que rodeiam meu olho se contraírem enquanto ele o faz, mesmo que eu não tenha mandado nada. Sem aviso prévio, seus – meus – nossos braços se erguem até o vidro e o alcançam, fechando as mãos ao redor do pescoço de meu reflexo. Mas então o espelho desaparece e minhas – suas – nossasmãos estão ao redor de nosso próprio pescoço, manchas escuras surgindo na borda da visão. Caímos no chão, e o aperto é tão forte quanto ferro.
Não posso pensar. Não me ocorre uma maneira de sair disto.
Por instinto, grito. O som vibra contra minhas mãos. Imagino essas mãos como são as minhas na realidade, grandes, com dedos longos e nós com calos de horas contra o saco de boxe. Imagino meu reflexo como um jorro de água sobre a pele de Marcus, substituindo todas as partes dele com as minhas. Me refaço à minha própria imagem.
Eu estou de joelhos no cimento, respirando com dificuldade.
Minhas mãos tremem, e passo os dedos por meu pescoço, ombros, braços. Apenas para ter certeza.
Eu disse a Tris, no trem para conhecer Evelyn há algumas semanas, que Marcus ainda estava em minha paisagem do medo, porém que havia mudado. Passei muito tempo pensando nele, enchia meus pensamentos cada noite antes de ir dormir, e chamava pela minha atenção toda vez que eu despertava. Ainda tinha medo, sabia, mas de uma maneira diferente – já não era um menino, temendo a ameaça que meu terrível pai representava para minha segurança. Era um homem, assustado com a ameaça que ele representava a meu caráter, meu futuro, minha identidade.
Porém inclusive esse medo, eu sei, não se compara com o que vem a seguir. Mesmo sabendo o que vem, quero abrir uma veia e tirar o soro do meu corpo no lugar de vê-lo de novo.
Um círculo de luz aparece no concreto a minha frente. Uma mão, com os dedos dobrados em forma de garra, aparece na luz, seguida por outra, e logo a cabeça, com o cabelo loiro grosso. A mulher tosse e se arrasta para dentro da luz, centímetro por centímetro. Quero avançar até ela, ajudá-la, mas estou congelado.
A mulher gira seu rosto para a luz, e vejo que é Tris. O sangue derrama sobre seus lábios e nos cachos ao redor do queixo. Seus olhos injetados de sangue encontram os meus e ela fala:
— Ajuda.
Tosse em vermelho no chão, e me lanço até ela, de alguma maneira sabendo que se não chegar logo, a luz deixará seus olhos. Mãos se envolvem ao redor de meus braços, ombros e peito, formando uma jaula de carne e osso, mas continuo esforçando-me para alcançá-la. Arranho as mãos que me prendem, mas só termino arranhando a mim mesmo.
Grito seu nome; ela tosse novo, desta vez mais sangue. Ela grita pedindo ajuda, eu grito por ela e não ouço nada, não sinto nada exceto meu coração, meu próprio terror.
Ela cai no chão, sem se mover, e seus olhos ficam sem expressão. Já é tarde demais.
A escuridão se levanta. As luzes voltam. Grafites cobrem as paredes da sala da paisagem do medo, e diante de mim estão as janelas espelhadas da sala de observação, e nos cantos as câmeras que registram cada sessão, tudo onde se supõe que deve estar. Meu pescoço e costas estão cobertos de suor. Limpo o rosto com a bainha da minha camisa e caminho até a porta da frente, deixando a caixa negra com a seringa para trás.
Já não preciso reviver meus medos. Tudo o que tenho a fazer agora é tentar superá-los.

+ + +

Sei por experiência que confiança por si só pode levar uma pessoa a lugares proibidos. Como as celas do terceiro andar da sede da Erudição.
Não aqui, é claro, pelo o que parece. Um homem sem facção me detém com o extremo de sua arma antes de eu chegar à porta, e estou nervoso, com falta de ar.
— Onde vai?
Ponho a mão em sua arma e a empurro para longe do meu braço.
— Não me aponte essa coisa. Estou aqui por ordens de Evelyn. Vou ver um prisioneiro.
— Não ouvi sobre visitas fora do horário hoje.
Deixo minha voz baixar, para parecer que estou revelando-lhe um segredo.
— É porque ela não queria isso no registro.
— Chuck! — alguém chama em voz alta das escadas acima de nós. É Therese. Ela faz um movimento de mão enquanto caminha até nós. — Deixe-o passar. Está tudo bem.
Assinto com a cabeça para Therese e sigo adiante. Os escombros do corredor foram limpos, mas as lâmpadas quebradas não foram substituídas, então vou por caminhos na escuridão, em meu caminho procurando pela cela certa.
Quando chego ao corredor norte, não vou direto para a cela, mas para a mulher que se encontra no final. É de meia-idade, com olhos que caem nos cantos e uma boca que se mantém franzida.  Parece que tudo a incomoda, inclusive eu.
— Olá — falo. — Meu nome é Tobias Eaton. Estou aqui para recolher um preso, por ordem de Evelyn Johnson.
Sua expressão não muda quando ouve meu nome, assim por alguns segundos, tenho certeza de que terei que deixá-la inconsciente para conseguir o que quero. Ela pega um papel amassado do bolso e o estica contra a palma da mão esquerda. Ali está uma lista dos nomes dos presos e suas correspondentes celas.
— Nome?
— Caleb Prior. 308A — respondo.
— Você é o filho de Evelyn, verdade?
— Yeah. Quero dizer... sim.
Ela não parece o tipo de pessoa que gosta de gírias como “yeah”.
A mulher me leva a uma porta de metal branco com 308A pintada nela, e me pergunto para que era usada quando nossa cidade não requeria tantas celas. Ela digita o código e as portas se abrem.
— Suponho que tenho que fingir que não vejo o que vai fazer? — ela pergunta.
Deve pensar que estou aqui para matá-lo. Decido deixá-la pensar assim.
— Faça-me um favor e fale bem de mim para Evelyn. Não quero tantos turnos à noite. O nome é Drea.
— Ok.
Ela amassa o papel com o punho e o enfia no bolso enquanto se afasta. Mantenho minha mão na maçaneta da porta até que ela chega ao seu posto e vira de lado para não ficar de frente para mim. Parece que fez isso algumas vezes antes. Me pergunto quantas pessoas tem desaparecido dessas celas por ordem de Evelyn.
Caminho para dentro. Caleb Prior se senta em uma mesa de metal, inclinado sobre um livro, o cabelo puxado para um lado da cabeça.
— O que quer?
— Odeio ter que dizer isso... — me detenho. Decidi faz algumas horas como manejar isso, quero ensinar uma lição a Caleb. E isso envolve algumas poucas mentiras. — Você sabe, na realidade, não odeio tanto. Sua execução foi adiantada algumas semanas. Para esta noite.
Isso chama sua atenção. Ele se retorce em sua cadeira e me olha fixamente, com olhos saltados das órbitas, como uma presa diante do predador.
— É uma brincadeira?
— Realmente sou horrível para contar piadas.
— Não — ele nega com a cabeça. — Tenho um par de semanas, não, essa noitenão...
— Se você se calar, te darei uma hora para se adaptar com a nova informação. Se não, te golpearei e o despacharei no beco antes que desperte. Faça sua escolha agora.
Ver um Erudito processar algo é como ver o interior de um relógio, todas as engrenagens girando, deslocando-se, ajustando-se, trabalhando juntas para formar uma função particular, que neste caso é dar sentido a sua morte iminente.
Os olhos de Caleb se movem para a porta atrás de mim. Então ergue a cadeira, girando-a e balançando-a contra mim. As pernas me acertam com força, o que me para o suficiente para deixar que ele saia.
Eu o sigo pelo corredor, os braços ardendo onde a cadeira me acertou. Sou mais rápido que ele, acerto-o nas costas e ele cai no chão de bruços, sem apoio. Com o joelho em suas costas, puxo seus pulsos e os prendo com uma tira plástica. Ele se queixa, e quando o coloco de pé, seu nariz está brilhando com sangue.
Os olhos de Drea encontram os meus por instante, e logo vão para longe.
Eu o arrasto pelo corredor, não por onde vim, mas por outro, até uma saída de emergência. Caminhamos por um labirinto de escadas estreitas, onde o eco de nossos passos ressoa, dissonantes e ocos. Uma vez que estou na parte inferior, bato na porta de saída.
Zeke abre, um sorriso bobo no rosto.
— Não teve problemas com a guarda?
— Não.
— Imaginei que seria fácil de passar por Drea. Ela não se importa com nada.
— Parecia que já tinha olhado para o outro lado antes.
— Isso não me surpreende. Este é Prior?
— Em carne e osso.
— Por que está sangrando?
— Porque é um idiota.
Zeke me oferece uma jaqueta preta com o símbolo dos sem facção bordado no colarinho.
— Não sabia que a idiotice fazia as pessoas sangrarem espontaneamente pelo nariz.
Cubro os ombros de Caleb com a jaqueta e fecho um dos botões em seu peito. Ele evita meus olhos.
— Acredito que seja um fenômeno novo — falo para ele. — O beco está livre?
— Me assegurei que sim — Zeke estende a pistola para mim, a empunhadura primeiro. — Cuidado, está carregada. Agora, bem, seria muito bom se me acertasse, assim serei mais convincente quando falar aos sem facção que você roubou a arma de mim.
— Quer que eu te bata?
— Oh, como se você nunca tivesse desejado isso. Apenas faça, Quatro.
Eu gosto de bater nas pessoas, gosto da explosão de potência e energia, da sensação de que sou intocável porque posso feri-los. Mas não gosto dessa parte de mim, porque é a parte de mim que está mais danificada.
Zeke se prepara e fecho minha mão em punho.
— Faça rápido, seu maricas.
Decido acertar a mandíbula, que é forte demais para quebrar, mas deixará um bom hematoma. Lanço o braço pra frente, socando bem onde planejava. Zeke geme, segurando o rosto com as duas mãos. A dor percorre meu braço, e sacudo a mão.
— Muito bem — Zeke espia pelo lado do edifício. — Bom, suponho que isso é tudo.
— Acho que sim.
— Provavelmente não te verei outra vez, não é? Quero dizer, sei que os outros voltarão, mas você... — ele se cala, mas continua com o pensamento um momento depois. — Simplesmente parece que ficará feliz de deixar isto para trás, isso é tudo.
— Sim, provavelmente tem razão — encaro meus sapatos. — Tem certeza que não quer vir?
— Não posso. Shauna não pode ir de cadeira de rodas para onde estão indo, e não é como se eu fosse deixá-la, sabe? — ele toca a mandíbula, ligeiramente, examinando a pele. — Assegure-se de que Uri não beba demais, ok?
— Sim.
— Não, estou falando sério — ele diz, e sua voz cai como sempre faz quando está sério. — Me promete que cuidará dele?
Sempre esteve claro para mim, já que os conheço, que Zeke e Uriah são mais próximos que a maioria dos irmãos. Eles perderam o pai quando eram jovens, e suspeito que Zeke começou a caminhar na linha entre pai e irmão depois disso. Não posso imaginar o que ele sente ao ver o caçula sair da cidade agora, sobretudo quando Uriah está tão quebrado pela dor depois da morte de Marlene.
— Eu prometo — concordo.
Sei que deveria ir, mas tenho que permanecer neste momento por um pouco de tempo, sentindo seu significado. Zeke foi um dos meus primeiros amigos na Audácia, depois que sobrevivi à iniciação. Logo ele trabalhou na sala de controle comigo, olhando as câmeras e criando estúpidos programas que soletravam as palavras na tela ou jogando jogos de adivinhação com números. Nunca perguntou meu nome real, ou porque o primeiro na classificação terminou na segurança e instrução em vez de na liderança. Ele não exigiu nada.
— Vamos nos abraçar agora — ele diz.
Mantendo uma mão firme sobre o braço de Caleb, envolvo meu braço livre ao redor de Zeke e ele faz o mesmo.
Quando nos separamos, empurro Caleb pelo beco, e não posso resistir de virar e chamá-lo de volta:
— Eu sentirei sua falta!
— Eu também, docinho!
Ele sorri, e seus dentes são brancos na luz do crepúsculo. São a última coisa que vejo antes de ter que me virar de volta e seguir para o trem.
— Estão indo a algum lugar — Caleb fala entre respirações. — Você e alguns outros.
— Sim.
— A minha irmã vai?
A pergunta desperta em mim uma fúria animal que não se satisfaz com palavras ou insultos cortantes. Só se satisfaz com o barulho de sua orelha contra a palma da minha mão. Ele estremece e encurva os ombros, preparando-se para um segundo tapa.
Me pergunto se é isso o que eu fazia quando meu pai me batia.
— Ela não é sua irmã — digo. — Você a traiu. A torturou. Tirou a única família que lhe restava. E... por quê? Porque queria guardar os segredos de Jeanine, queria ficar na cidade, são e salvo? É um covarde.
— Não sou um covarde! Sabia que se...
— Voltamos ao acordo em que você mantém a boca fechada.
— Bem, para onde está me levando, de qualquer forma? Pode me matar aqui mesmo, não é?
Eu paro. Uma figura se move ao longo da calçada, atrás de nós. Capturo o movimento com minha visão periférica. Viro e ergo a arma, mas a forma desaparece na boca de uma ruela.
Sigo caminhando, arrastando Caleb comigo, escutando passos atrás de mim. Pisamos no vidro com nossos sapatos. Vejo os edifícios escuros e os sinais de tráfego, que pendem precariamente de seus postes, como folhas tardias prestes a se soltarem de seus ramos no outono. Então chego à estação onde pegaremos o trem, e conduzo Caleb por um lance de escadas de metal até a plataforma.
Vejo o trem vir de bem longe, fazendo sua última viagem através da cidade. Uma vez, os trens foram uma força da natureza para mim, algo que continuava com seu caminho, independente do que fizéssemos dentro dos limites da cidade, algo pulsante, vivo e poderoso. Agora que conheci os homens e mulheres que o controlam, parte desse mistério se foi, mas o significado para mim nunca desapareceu, meu primeiro ato como Audacioso foi saltar em um, e todos os dias depois desse foram a fonte de minha liberdade, me davam o poder de me mover por este mundo, enquanto antes me sentia preso no setor da Abnegação, na casa que havia sido uma prisão para mim.
Quando o trem está mais perto, corto o laço que prende os pulsos de Caleb com uma navalha e mantenho um aperto firme em seu braço.
— Já sabe como fazer, não? — pergunto. — Entre no último vagão.
Ele tira a jaqueta e a deixa cair no chão.
— Sim.
Começando num extremo da plataforma, corremos juntos ao longo das tábuas desgastadas, ao lado da porta aberta. Ele não alcança a alça, então eu o empurro. Ele tropeça, então se segura e sobe no último vagão. Estou ficando sem espaço – a plataforma está acabando – agarro a alça e me balanço para dentro, meus músculos absorvendo o impacto.
Tris se encontra no interior do vagão, com um pequeno sorriso no rosto. Sua blusa preta está fechada até o pescoço, marcando seu rosto na escuridão. Ela segura meu pescoço e me puxa para dar um beijo. Enquanto se afasta, diz:
— Sempre gostei de te ver fazendo isso.
Sorrio.
— É isto o que planejou? — Caleb exige atrás de mim. — Que ela esteja aqui enquanto me mata? Isso é...
— Matá-lo? — Tris me pergunta, sem olhar para seu irmão.
— Sim, deixei-o pensar que estava sendo levado para sua execução — respondo, suficientemente alto para que ele possa ouvir. — Sabe, parecido com o que ele te fez na sede da Erudição.
— Eu... isso não é verdade? — seu rosto, iluminado pela lua, está marcado pelo choque. Me dou conta que os botões em sua camisa estão nas casas erradas.
— Não. De fato, acabo de salvar sua vida.
Ele começa a dizer algo, eu o interrompo.
— Pode ser que não queira me agradecer agora. Te levaremos conosco. Para fora da cerca.
Para fora da cerca – o lugar que ele tentou tão duramente evitar que se voltou até contra sua própria irmã. Parece um castigo mais apropriado que a morte, de todos os modos. A morte é tão rápida, tão certa. Aonde estamos indo agora, nada é certo.
Ele parece assustado, mas não tanto quanto pensei que estaria. Creio que entendo, então, a forma como classifica as coisas em sua própria mente: em primeiro lugar, sua vida; em segundo, sua comodidade em mundo de sua própria criação, e em algum lugar depois disso, a vida das pessoas que ele supostamente ama. É o tipo de pessoa depreciável que não sabe quão depreciável é, e eu acusá-lo ou insultá-lo não irá mudar isso, nada mudará. Mais que cansado, me sinto pesado, inútil.
Não quero pensar mais nele. Seguro a mão de Tris e a levo para o outro lado do vagão, onde posso ver a cidade desaparecendo atrás de nós. Estamos um ao lado do outro na porta aberta, cada um segurando uma alça. Os edifícios criam um padrão irregular contra o céu.
— Eles nos seguirão.
— Teremos cuidado — ela me responde.
— Onde estão os demais?
— Nos primeiros vagões. Pensei que deveríamos ficar a sós. Ou tão a sós quanto possível.
Ela sorri para mim. Estes são nossos últimos momentos na cidade. É claro que devemos passar sozinhos.
— Realmente vou sentir falta deste lugar — ela fala.
— Sério? Meus pensamentos são mais como, “Até nunca mais!”
— Não há nada que sentirá saudades? Não há boas recordações?
— Está bem — sorrio — há algumas.
— Alguma delas me implica? — pergunta. — Isso soa egocêntrico. E sabe o que quero dizer.
— É claro, suponho — digo, dando de ombros. — Quero dizer, tive que ter uma vida diferente na Audácia, um nome diferente. Tive que ser Quatro, graças ao meu instrutor de iniciação. Ele me deu o nome.
— Sério? — ela inclina a cabeça. — Por que não o conheci?
— Porque está morto. Ele era Divergente.
Dou de ombros novamente, mas não me sinto indiferente a respeito. Amar foi a primeira pessoa que percebeu que eu era Divergente, e ele me ajudou a ocultar isso. Mas não pôde esconder sua própria Divergência, e isso o matou.
— Vê? Há más recordações demais aqui. Estou pronto para deixá-lo.
Me sinto vazio, não por tristeza, mas por alívio, por toda a tensão que sai de mim, Evelyn está nesta cidade, e Marcus também. Toda a dor, os pesadelos, as más recordações e as facções que me mantiveram preso dentro de uma versão de mim mesmo estão aqui. Aperto a mão de Tris.
— Olhe — falo, apontando um distante grupo de edifícios. — Ali está o setor da Abnegação.
Ela sorri, mas seus olhos estão vidrados, como se uma parte adormecida dentro dela estivesse lutando para sair e espalhar ao redor. O trem silva sobre os trilhos, uma lágrima escorre pela bochecha de Tris, e a cidade se perde na escuridão.

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