Tobias
— Olhe quem é — diz Peter quando entro no dormitório. — O traidor.
Existem mapas espalhados por toda a sua cama e na que está ao lado dele. Eles são todos brancos, azul-claro e um verde apagado, e me atraem para eles com um estranho magnetismo. Em cada um deles Peter desenhou um círculo trêmulo em torno da nossa cidade, em torno de Chicago. Ele está marcando os limites de onde esteve.
Vejo que o círculo encolhe em cada mapa, até que ele é apenas um ponto vermelho brilhante como uma gota de sangue.
E então eu me afasto, com medo de que isso significasse que eu sou tão pequeno.
— Se pensa que tem algum tipo de superioridade moral, você está errado — eu digo a Peter. — Por que todos os mapas?
— Estou tendo problemas para assimilar o tamanho do mundo — ele responde. — Algumas pessoas do Centro estão me ajudando a aprender mais sobre ele. Planetas, estrelas, corpos de água e coisas assim.
Ele diz casualmente, mas sei a partir dos rabiscos frenéticos nos mapas que seu interesse não é casual, é obsessivo. Eu era obsessivo com os meus medos, antes, e da mesma forma tentava fazê-los ter sentido, uma e outra vez.
— Está ajudando? — pergunto.
Percebo que nunca tive uma conversa com Peter que não envolvesse gritos. Não que ele não merecesse isso, mas não sei nada sobre ele. Eu só me lembro de seu sobrenome da classificação da iniciação. Hayes. Peter Hayes.
— Mais ou menos — ele pega um dos mapas maiores. O mapa mostra todo o globo, achatado como uma massa planificada. Fico olhando para o papel por tempo suficiente para que as formas façam sentido, os trechos azuis de água e as partes multicoloridas de terra. Em uma das partes está um ponto vermelho. Ele aponta ali. — Esse ponto abrange todo os lugares que já estive. Você poderia cortar esse pedaço de terra e afundá-lo no oceano que ninguém iria nem perceber.
Sinto o medo mais uma vez, o medo do meu próprio tamanho.
— Certo. E daí?
— E daí? Tudo com que eu sempre me preocupei em dizer ou fazer, como pode possivelmente importar? — Ele balança a cabeça. — Isso não importa.
— Claro que importa. Toda essa terra está cheia de pessoas, cada uma delas diferente, e as coisas que elas fazem importam.
Ele balança a cabeça novamente, e eu me pergunto, de repente, se é assim que ele se consola: convencendo a si mesmo que as coisas ruins que ele fez não importam. Vejo como o planeta gigantesco que me apavora parece ser um paraíso para ele, um lugar onde ele pode desaparecer em seu grande espaço, nunca distinguindo si mesmo, e nunca sendo responsabilizado por seus atos.
Ele se inclina para desamarrar os sapatos.
— Então, você foi banido da sua pequena multidão de devotos?
— Não — respondo automaticamente. Então acrescento: — Talvez. Mas eles não são os meus devotos.
— Por favor. Eles são como o Culto ao Quatro.
Eu não posso deixar de rir.
— Ciúmes? Desejaria ter um Culto de Psicopatas para chamar de seu?
Uma de suas sobrancelhas se contrai.
— Se eu fosse um psicopata, teria te matado durante seu sono.
— E acrescentado meu olho à sua coleção de globos oculares, sem dúvida.
Peter ri também, e percebo que estou trocando piadas e conversando com o iniciado que esfaqueou Edward no olho e tentou matar a minha namorada, se ela ainda for. Mas então, ele também é Audacioso que nos ajudou a acabar com a simulação de ataque e salvou Tris de uma morte horrível. Eu não tenho certeza de quais ações devem pesar mais em minha mente. Talvez eu devesse esquecer tudo, deixá-lo começar novamente.
— Talvez você devesse se juntar ao meu pequeno grupo de pessoas odiadas — diz Peter. — Até agora Caleb e eu somos os únicos membros, mas dado o quão fácil é obter o lado ruim daquela garota, tenho certeza de que nossos números vão crescer.
Eu endureço.
— Você está certo, é fácil de obter seu lado ruim. Tudo o que você tem a fazer é tentar matá-la.
Meu estômago aperta. Eu quase a matei. Sei que ela estava perto da explosão, ela poderia estar como Uriah, ligado a tubos no hospital, sua mente silenciosa.
Não é de admirar que ela não saiba se quer ficar comigo ou não.
A facilidade de um momento atrás se foi. Eu não posso esquecer o que Peter fez, porque ele não mudou. Ele ainda é a mesma pessoa que estava disposto a matar, mutilar e destruir para subir até o topo da classificação dos iniciados. E eu não posso esquecer o que fiz também. Me levanto.
Peter se inclina contra a parede e cruza os dedos sobre o seu estômago.
— Só estou dizendo que, se ela decide que alguém é inútil, todo mundo segue o exemplo. Esse é um talento estranho para alguém que costumava ser apenas outra Careta chata, não é? E talvez muito poder para uma pessoa ter, certo?
— O talento dela não é controlar opiniões de outras pessoas — eu digo — geralmente é estar certa sobre as pessoas.
Ele fecha os olhos.
— Que seja, Quatro.
Todos os meus membros parecem frágeis com tensão. Deixo o dormitório e os mapas com os círculos vermelhos, embora eu não tenha certeza de para onde ir.
Para mim, Tris sempre pareceu magnética de uma forma que eu não poderia descrever, algo de que ela não estava ciente. Eu nunca a temi ou odiei por isso da forma que Peter o faz, mas então, eu sempre estive em uma posição favorável, não ameaçado por ela. Agora que perdi a posição, posso sentir o aperto como ressentimento, tão forte e segura quanto uma mão em meu braço.
Encontro-me no jardim do átrio novo, e desta vez a luz brilha através das janelas. As flores são lindas e selvagens à luz do dia, como criaturas cruéis suspensas no tempo, imóveis.
Cara corre para o átrio, seu cabelo despenteado flutuando sobre a testa.
— Aí está você. É assustadoramente fácil perder as pessoas neste lugar.
— O que aconteceu?
— Bem... você está bem, Quatro?
Mordo meu lábio com tanta força que sinto uma pontada de dor.
— Estou bem. O que aconteceu?
— Nós estamos tendo uma reunião, e sua presença é necessária.
— Quem é “nós”, exatamente?
— GDs e simpatizantes que não querem deixar que o Centro se livre de certas coisas — diz ela, e em seguida, inclina a cabeça para o lado. — Mas planejadores melhores do que os últimos a que você se reuniu.
Eu quero saber quem contou-lhe.
— Você sabe sobre a simulação de ataque?
— Melhor do que isso, eu reconheci o soro da simulação no microscópio quando Tris mostrou para mim — Cara responde. — Sim, eu sei.
Balanço minha cabeça.
— Bem, eu não vou me envolver nessa de novo.
— Não seja tolo. A verdade que você ouviu ainda é a verdade. Essas pessoas ainda são responsáveis pela morte da maior parte da Abnegação, da escravidão mental da Audácia e da total destruição do nosso modo de vida, e algo tem que ser feito.
Eu não tenho certeza se quero estar na mesma sala com Tris sabendo que podemos estar à beira de terminar – é como estar à beira de um precipício. É mais fácil fingir que não está acontecendo quando não estou perto dela. Mas Cara diz que tão facilmente que tenho que concordar com ela: sim, algo tem que ser feito.
Ela pega a minha mão e me leva por um corredor do hotel. Sei que ela está certa, mas estou incerto, inquieto sobre a participação em mais uma tentativa de resistência. Ainda assim, eu já estou movendo em direção a ela, parte de mim ansioso por uma chance de mudar de novo, em vez de estar congelado diante das filmagens de vigilância da nossa cidade, como estive.
Quando ela tem certeza de que estou seguindo-a, ela libera a minha mão e enfia sua mecha de cabelo solto atrás das orelhas.
— Ainda é estranho não vê-la em azul — comento.
— É hora de deixar que tudo isso se vá — ela responde. — Mesmo se eu pudesse voltar atrás, eu não gostaria, pelo menos neste ponto.
— Você não sente falta das facções?
— Sinto, na verdade — ela olha para mim. Bastante tempo se passou desde a morte de Will, e agora não o vejo mais quando olho para ela, vejo apenas Cara. A conheci por mais tempo que conheci-o. Ela tem apenas um toque de sua amabilidade, o suficiente para me fazer sentir que posso provocá-la sem ofendê-la. — Prosperei na Erudição. Haviam muitas pessoas dedicadas à descoberta e a inovação, o que era lindo. Mas agora que sei quão grande é o mundo... bem. Acho que cresci demais para a minha facção, como consequência — ela franze a testa. — Eu sinto muito, isso foi arrogante?
— Quem se importa?
— Algumas pessoas se importam. É bom saber que você não é uma delas.
Percebo, já que não posso evitar, que algumas das pessoas que passam em nosso caminho para a reunião me dão um olhar desagradável, ou me evitam. Eu tenho sido odiado e evitado antes, como o filho de Evelyn Johnson, tirana sem facção, mas me incomoda mais agora. Agora sei que fiz algo para ser julgado como digno de ódio; traí-os todos.
Cara diz:
— Ignore-os. Eles não sabem o que é tomar uma decisão difícil.
— Você não teria feito isso, aposto.
— Isso é apenas porque eu fui ensinada a ser cautelosa quando não conheço todas as informações, e você foi ensinado que os riscos podem produzir grandes recompensas — ela me olha de lado. — Ou, neste caso, nenhuma recompensa.
Ela faz uma pausa na porta do laboratório de Matthew e seu supervisor, e bate. Matthew abre a porta e dá uma mordida na maçã que está segurando. Nós o seguimos até a sala onde descobri que eu não era Divergente.
Tris está lá, de pé ao lado de Christina, que me olha como se eu fosse algo podre que precisa ser descartado. E no canto perto da porta está Caleb, com o rosto colorido pelas contusões. Estou prestes a perguntar o que aconteceu com ele quando percebo que os nós dos dedos de Tris também estão esfolados, e que ela muito intencionalmente não está olhando para ele.
Ou para mim.
— Acho que é todo mundo — diz Matthew. — Tudo bem... assim... hum. Tris, sou muito ruim nisso.
— Você é, na verdade — ela concorda com um sorriso. Sinto um surto de ciúmes. Ela limpa a garganta. — Então, nós sabemos que essas pessoas são responsáveis pelo ataque à Abnegação, e que não podem ser confiáveis para salvaguardar a nossa cidade por mais tempo. Sabemos que queremos fazer algo sobre isso, e que a tentativa anterior de fazer algo era... — os olhos dela derivam para os meus, e seu olhar me deixa menor. — Imprudente — ela conclui. — Nós podemos fazer melhor.
— O que você propõe? — Cara pergunta.
— Tudo o que sei agora é que quero expô-los pelo o que são — Tris diz. — A totalidade do complexo pode não saber o que seus líderes têm feito, e eu acho que devemos lhes mostrar. Talvez em seguida, eles vão eleger novos líderes, aqueles que não tratam as pessoas lá dentro dos experimentos como dispensáveis. Eu pensei, talvez, numa “infecção” generalizada do soro da verdade, por assim dizer...
Lembro-me do peso do soro da verdade enchendo-me em todos os meus lugares vazios, pulmões, estômago e rosto. Lembro-me de quão impossível parecia-me que Tris tivesse aguentado peso suficiente para mentir.
— Não vai funcionar — eu digo. — Eles estão GPs, lembra? GPs podem resistir ao soro da verdade.
— Isso não é necessariamente verdade — Matthew replica, torcendo o cordão que envolve seu pescoço. — Nós não vemos muitos Divergentes resistindo ao soro da verdade. Apenas Tris, nos últimos tempos. A capacidade para a resistência ao soro parece ser maior em algumas pessoas do que outras – veja você mesmo como exemplo, Tobias — Matthew dá de ombros. — Ainda assim, é por isso que eu te convidei, Caleb. Você trabalhou nos soros antes. Pode conhecê-los, assim como eu. Talvez possamos desenvolver um soro da verdade que seja mais difícil de resistir.
— Eu não quero mais fazer esse tipo de trabalho — Caleb responde.
— Oh, cale... — começa Tris, mas Matthew a interrompe.
— Por favor, Caleb.
Caleb e Tris trocam um olhar. A pele do rosto dele e os dedos de sua irmã tem quase a mesma cor, roxo-azul-esverdeado, como se desenhado com tinta. Isto é o que acontece quando os irmãos se chocam – se ferem da mesma maneira. Caleb afunda de volta contra a borda da bancada, tocando os armários de metal com a parte de trás da cabeça.
— Tudo bem — Caleb fala. — Contanto que você prometa que não vai usar isso contra mim, Beatrice.
— Por que eu? — Tris pergunta.
— Eu posso ajudar — diz Cara, levantando uma mão. — Eu trabalhei em soros também, como uma Erudita.
— Ótimo — Matthew bate palmas — enquanto isso, Tris estará bancando a espiã.
— E eu? — Christina pergunta.
— Eu estava esperando que você e Tobias pudessem se aproximar de Reggie — Tris responde — David não quis me contar sobre as medidas de segurança no laboratório de armas, mas Nita pode não ter sido a única que sabia sobre elas.
— Você quer que eu me aproxime do cara que detonou os explosivos que colocaram Uriah em coma? — Christina pergunta.
— Vocês não tem de ser amigos — Tris responde — só precisa falar com ele e ver o que ele sabe. Tobias pode ajudá-la.
— Eu não preciso de Quatro, posso fazer isso sozinha.
Ela desce da mesa de exame, rasgando o papel debaixo de sua coxa, e me dá outro olhar azedo. Eu sei que deve ser o rosto pálido de Uriah que ela vê quando olha para mim. Sinto que há algo preso em minha garganta.
— Você precisa de mim, na verdade, porque ele já confia em mim — aponto. — E essas pessoas são muito sigilosas, o que significa que isso vai exigir sutileza.
— Eu posso ser sutil — diz Christina.
— Não, você não pode.
— Ele tem um ponto... — Tris canta com um sorriso.
Christina bate-lhe no braço, e Tris bate nas costas dela.
— Está tudo resolvido, então — Matthew fala. — Acho que devemos nos encontrar novamente depois que Tris for à reunião do conselho, que é na sexta-feira. Venham aqui às cinco horas.
Ele se aproxima de Cara e Caleb e fala algo sobre compostos químicos que não entendo bem. Christina sai, me batendo com o ombro enquanto passa por mim. Tris levanta os olhos para os meus.
— Nós devemos conversar — eu digo.
— Tudo bem — ela responde, e eu a sigo no corredor.
Ficamos ao lado da porta até que todos os outros saem. Seus ombros se retraem como se ela estivesse tentando fazer-se ainda menor, tentando evaporar no local, e nós estamos muito longe, toda a largura do corredor entre nós. Tento me lembrar da última vez que a beijei e eu não consigo.
Finalmente estamos sozinhos, e o corredor está tranquilo. Minhas mãos começam a formigar e ficar dormentes, da forma como sempre ficam quando eu entro em pânico.
— Você acha que jamais vai me perdoar? — pergunto.
Ela balança a cabeça, mas diz:
— Eu não sei. Acho que isso é o que preciso descobrir.
— Você sabe... você sabe que eu nunca quis que Uriah se machucasse, certo? — Olho para os pontos cruzando sua testa e acrescento: — Ou você. Eu nunca quis que você se machucasse também.
Ela está batendo o pé, seu corpo se movendo com o movimento. Ela acena com a cabeça.
— Eu sei disso.
— Eu tinha que fazer alguma coisa. Eu tinha que fazer.
— Um monte de gente se machucou — ela fala. — Tudo porque você rejeitou o que eu disse, porque, isto é a pior parte, Tobias, porque você pensou que eu estava sendo mesquinha e ciumenta. Apenas uma garota boba de dezesseis anos, né? — ela balança a cabeça.
— Eu nunca te chamaria de boba ou pequena — digo com firmeza. — Pensei que o seu julgamento estivesse nublado, sim. Mas isso é tudo.
— Isso é o suficiente — os dedos dela deslizam pelo cabelo e se enrolam ao redor dele. — É a mesma coisa mais uma vez, não é? Você não me respeita, não importa o quanto diga que sim. Quando algo acontece, acredita que não posso pensar racionalmente...
— Não é o que está acontecendo! — respondo com veemência. — Eu respeito a você mais do que ninguém. Mas agora quero saber o que a incomoda mais, que eu tomei uma decisão estúpida ou que eu não tomei a sua decisão.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que você pode ter dito que só queria que fôssemos honestos um com o outro, mas acho que você queria na verdade que eu sempre concordasse com você.
— Não posso acreditar que está dizendo isso! Você estava errado...
— Sim, eu estava errado! — Eu estou gritando agora, e não sei de onde a raiva veio, só que posso senti-la girando de dentro de mim, violenta, cruel e mais forte do que senti em dias. — Eu estava errado, cometi um erro enorme! O irmão do meu melhor amigo está praticamente morto! E agora você está agindo como um pai, me punindo por isso, porque eu não fiz como me foi dito. Bem, você não é meu pai, Tris, e não pode me dizer o que fazer, o que escolher...!
— Pare de gritar comigo — ela me interrompe em voz baixa, e finalmente olha para mim. Eu costumava ver todos os tipos de coisa em seus olhos, amor, a saudade e curiosidade, mas agora tudo o que vejo é raiva. — Apenas pare.
Sua voz calma freia a raiva dentro de mim, e eu relaxo contra a parede atrás de mim, empurrando minhas mãos nos bolsos. Eu não queria gritar com ela. Não queria ficar com raiva de tudo.
Eu olho, chocado, enquanto lágrimas descem por seu rosto. Eu não a vi chorar em um longo tempo. Ela funga, engole e tenta parecer normal, mas não consegue.
— Eu só preciso de um tempo — diz ela, engasgando em cada palavra. — Ok?
— Ok.
Ela limpa o rosto com as mãos e caminha pelo corredor. Eu assisto a cabeça loira até que ela desaparece ao redor da curva, e me sinto nu, como se não houvesse mais nada para me proteger contra a dor. Sua ausência me fere mais que tudo.
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