Tris
David me chama em seu escritório no dia seguinte, e temo que ele se recorde de como eu o usei de escudo quando estava me afastando do Laboratório de Armas, que apontei uma arma para a sua cabeça e disse que não me importava se ele vivesse ou morresse.
Zoe me encontra no lobby do hotel e me leva até o corredor principal e depois para outro, longo e estreito, com janelas à minha direita que mostram uma pequena frota de aeronaves pousadas em filas sobre o concreto. Flocos de neve tocam o vidro – uma prova adiantada do inverno – e derrete em segundos.
Olho-a de lado enquanto caminho, esperando para ver como ela é quando ninguém a está olhando, mas Zoe parece sempre igual – alegre, mas formal. Como se o ataque nunca tivesse acontecido.
— Ele estará em uma cadeira de rodas — ela fala quando chegamos ao final do corredor estreito. — Melhor não apontar isso. Ele não gosta que tenham pena.
— Eu não tenho pena dele — tento manter a raiva fora da minha voz, ela suspeitaria. — Não é a primeira pessoa que foi atingida por uma bala.
— Sempre esqueço que você já viu muito mais violência do que nós — diz Zoe, e aproxima seu cartão na barreira de segurança que alcançamos.
Olho através do vidro para os guardas, com as armas apoiadas nos ombros, virados para a frente. Tenho a sensação de que têm estado assim o dia todo.
Sinto-me pesada e dolorida, como se meus músculos estivessem comunicando uma dor emocional mais profunda. Uriah ainda se encontra em estado de coma. Eu ainda não posso olhar para Tobias quando o vejo no dormitório, no refeitório ou no corredor sem ver a parede explodindo ao lado da cabeça de Uriah. Não tenho certeza de quando, ou se alguma vez, irá melhorar. Não tenho certeza se essas são feridas que podem curar.
Caminhamos passando em frente aos guardas, e o azulejo torna-se madeira sob meus pés. Pequenas pinturas em molduras douradas decoram as paredes, e bem em frente ao escritório de David há um pedestal com um buquê de flores sobre ele. São pequenos detalhes, mas o efeito é que me fazem sentir que minhas roupas estão manchadas de sujeira.
Zoe bate, e uma voz grita:
— Entre!
Ela abre a porta para mim, mas não me segue para dentro. O escritório de David é espaçoso e acolhedor, as paredes cheias de livros alinhados quando não estão ocupadas com as janelas. No lado esquerdo há uma escrivaninha com umas telas de vidro suspensas acima dela, e à direita há um pequeno laboratório com mesas de madeira em vez de metal.
David está sentado em uma cadeira de rodas, as pernas cobertas por um material duro para manter os ossos no lugar – de modo que eles possam se curar, presumo. Ele está pálido, mas parece suficientemente saudável. Embora eu saiba ele tinha algo a ver com a simulação de ataque e todas aquelas mortes, encontro dificuldades para igualar as ações com o homem que eu vejo diante de mim. Pergunto-me se isso é o que acontece com os homens maus: que para alguém eles parecem homens bons, falam como homens bons e são tão agradáveis quanto homens bons.
— Tris.
Ele se empurra para perto de mim e pressiona uma das minhas mãos entre as suas. Mantenho minha mão firme, embora sua pele esteja seca como papel e eu sinta rejeição por ele.
— Você é muito corajosa — ele diz, e então libera a minha mão. — Como estão seus ferimentos?
Eu dou de ombros.
— Já tive piores. E os seus?
— Me tomará um pouco de tempo para voltar a andar, mas tenho a certeza de que vou conseguir. Algumas das pessoas do nosso povo estão desenvolvendo aparelhos ortopédicos sofisticados de qualquer maneira, assim posso ser o primeiro caso experimental se precisar – ele diz, e os cantos de seus olhos se enrugam. — Você poderia me empurrar para trás da mesa? Ainda tenho problemas de direção.
Eu o faço, colocando suas pernas rígidas debaixo da mesa e deixo que o resto do seu corpo siga. Quando tenho certeza de que ele está bem posicionado, sento-me em uma cadeira a sua frente e trato de sorrir. Com o fim de encontrar uma maneira de vingar meus pais, tenho que manter a confiança e seu afeto por mim intactos. E eu não vou fazer isso com a testa franzida.
— Pedi-lhe para vir aqui principalmente para que eu pudesse te agradecer. Não consigo pensar em muitos jovens teriam vindo por mim em vez de correr para se esconder, ou que foram capazes de salvar este complexo como você fez.
Penso em pressionar uma pistola em sua cabeça e ameaçar a sua vida, mas engulo duro.
— Você e as pessoas com que veio têm estado em um estado lastimável de mudança contínua desde a sua chegada — ele continua. — Não tenho certeza do que fazer com todos vocês, para ser honesto, e estou certo de que nem vocês mesmos sabem o que fazer, mas tenho pensado em algo que eu gostaria que você fizesse. Eu sou o líder oficial deste complexo, mas para além disso, temos um sistema de governo semelhante ao da Abnegação, por isso sou assessorado por um pequeno grupo de conselheiros. Eu gostaria que começasse o treinamento para essa posição.
Minhas mãos se apertaram em torno dos braços da cadeira.
— Você vê, vamos ter que fazer algumas mudanças por aqui agora que fomos atacados — diz ele. — Vamos ter que tomar uma postura mais forte para a nossa causa. E acredito que você sabe como fazê-lo.
Eu não posso discutir com isso.
— O que... ? — Eu limpo minha garganta. — O que implicaria o treinamento para essa formação?
— Assistir as nossas reuniões, por um lado, e aprender os prós e os contras daqui, a forma como funcionamos de cima a baixo, nossa história, nossos valores, e assim sucessivamente. Não posso permitir que seja parte do conselho em nenhum cargo oficial nesta idade tão jovem, e há um caminho que você deveria seguir ajudando um dos atuais membros do conselho, mas estou te convidando a avançar pelo caminho, se desejar.
Seus olhos, não sua voz, me fazem a questão.
Os conselheiros são provavelmente as mesmas pessoas que autorizaram a simulação de ataque e asseguraram que os dados fossem transmitidos a Jeanine no momento adequado. E ele quer que eu me sente entre eles e aprenda a me tornar uma deles. Embora eu possa sentir o gosto de bile no fundo da minha boca, não tenho nenhum problema em contestar.
— Claro — eu lhe digo, e sorrio. — Seria uma honra.
Se alguém te oferece uma oportunidade de se aproximar de seu inimigo, sempre deve aceitá-la. Sei isso sem ter aprendido de ninguém.
Ele deve acreditar no meu sorriso, por que sorri de volta.
— Imaginei que você diria que sim. É algo que sua mãe faria comigo, antes de se voluntariar para entrar na cidade. Mas acho que ela se apaixonou pelo lugar mesmo de longe e não pôde resistir a ele.
— Apaixonou-se... pela cidade? — digo. — Sobre gostos não há nada escrito, suponho.
É apenas uma brincadeira, mas não me sinto nem um pouco alegre. Ainda assim, David ri, e sei que eu disse a coisa certa.
— Você era... próximo da minha mãe, enquanto ela estava aqui? — lhe pergunto. — Estive lendo o diário dela, mas ela não era muito expressiva.
— Não, não era, não é? Natalie sempre foi muito simples. Sim, nós éramos próximos, sua mãe e eu — a voz dele se suaviza quando fala dela, já não é mais o líder bem humorado deste local, mas uma pessoa mais velha, refletindo sobre o passado com carinho.
O passado antes de ele matá-la.
— Tivemos uma história semelhante. Eu também fui arrancado diretamente de um mundo corrompido quando criança... meus pais eram pessoas severamente disfuncionais que foram levados para a prisão quando eu era jovem. Em vez de sucumbir à adoção de um sistema sobrecarregado de órfãos, meus irmãos e eu fugimos para a fronteira e chegamos ao mesmo lugar que sua mãe também tomou refúgio anos depois, mas somente eu saí de lá com vida.
Eu não sei o que dizer sobre isso, não sei o que fazer com a crescente simpatia dentro de mim por um homem que fez coisas terríveis. Fico olhando para as minhas mãos e imagino que elas são como metal líquido endurecendo no ar, tomando uma forma que nunca vai mudar novamente.
— Você tem que ir lá amanhã com nossas patrulhas. Poderá ver a fronteira — diz ele. — É algo importante para um futuro membro do conselho ver.
— Eu estaria muito interessada.
— Encantador. Bem, odeio terminar nosso tempo juntos, mas tenho um pouco de trabalho para pôr em dia. Terei que notificar alguém sobre as patrulhas, e nossa primeira reunião do conselho é na sexta-feira, às dez horas da manhã, então te verei em breve.
Sinto-me desesperada, não lhe perguntei o que eu queria. Não acho que haja alguma outra oportunidade. É tarde demais agora, de qualquer maneira. Levanto-me e caminho até a porta, mas, em seguida, ele volta a falar.
— Tris, sinto que tenho que ser aberto com você, se vamos confiar um no outro.
Pela primeira vez desde que eu o conheci, David parece quase... temeroso. Seus olhos estão arregalados como o de uma criança. Mas um momento depois, a expressão se foi.
— Posso ter estado sob a influência de um coquetel de soros naquele momento — ele fala — mas sei o que você disse a eles para evitar que nos acertassem. Sei que você disse que me mataria para proteger o que estava no Laboratório de Armas.
Minha garganta está tão apertada que mal consigo respirar.
— Não se assuste — ele continua. — Essa é uma das razões por que eu ofereci-lhe esta oportunidade.
— Po-por quê?
— Você mostrou a qualidade que mais necessito em meus assessores: a capacidade de fazer sacrifícios para um bem maior. Se vamos ganhar esta luta contra a deficiência genética, se vamos salvar os experimentos de serem fechados, temos de fazer sacrifícios. Você entende isso, não é?
Sinto um flash de raiva e me obrigo a assentir. Nita nos disse que os experimentos estavam em perigo de ser dissolvidos, por isso não me surpreendi em ouvir a verdade. Mas o desespero de David para salvar o trabalho de sua vida não é desculpa para matar uma facção inteira, a minha facção.
Por um momento eu coloco a mão na maçaneta da porta, tentando me recompor, e então decido assumir o risco.
— O que teria acontecido se tivessem causado outra explosão para entrar no Laboratório de Armas? — pergunto. — Nita disse que ativaria uma das medidas de segurança se o fizessem, mas para mim parecia a solução mais óbvia para o problema.
— Um soro seria liberado no ar... um de que as máscaras não protegeriam, devido a absorção ser feita pela pele. Um que inclusive os geneticamente puros não podem combater. Não sei como Nita sabe a seu respeito, já que não se supõe que seja de conhecimento público, mas suponho que vamos averiguar em outro momento.
— O que o soro faz?
Seu sorriso se torna uma careta.
— Digamos que é suficiente ruim para que Nita prefira ser presa para o resto de sua vida do que entrar em contato com ele.
Ele está certo. Não é preciso dizer mais nada.
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