quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo trinta e um

Tobias


Eu não posso voltar para os olhares fixos e as perguntas silenciosas do dormitório. Sei que não deveria voltar à cena do meu grande crime, embora não seja uma das áreas mais seguras que não tenho autorização para entrar, mas sinto que preciso ver o que está acontecendo na cidade. Como se eu precisasse recordar que existe um mundo fora deste, onde não sou odiado.
Caminho para a sala de controle e sento-me em uma cadeira. Cada tela me mostra uma parte diferente da cidade. O Mart Impiedoso, a entrada da sede da Erudição, o Parque Millennium, o pavilhão fora do edifício Hancock.
Por um longo tempo, observo as pessoas reunindo-se dentro da sede da Erudição, com o braço coberto pela faixa dos sem facção, as armas em seus quadris, trocando conversas rápidas ou entregando latas de comida para o jantar, um velho hábito de facção.
Então ouço alguém no escritório da sala de controle dizer “Ali está” a um de seus companheiros, e olho para as telas para ver do que ela fala. Então eu o vejo, em frente ao edifício Hancock: Marcus, perto das portas da frente, olhando para o relógio.
Levanto-me e pressiono o dedo indicador na tela para ligar o som. Por um momento, apenas rajadas de ar saem através dos alto-falantes na tela, mas, em seguida, passos. Johanna Reyes se aproxima de meu pai. Ele estende a mão para que ela a aperte, mas ela não o faz, e meu pai é deixado com a mão suspensa no ar, uma peça de isca que ela não pegou.
— Sabia que havia ficado na cidade — diz ela. — Estão te procurando por toda parte.
Algumas das pessoas na sala de controle se reúnem atrás de mim para olhar. Mal as noto. Estou vendo o braço de meu pai voltar para o seu lado em um punho.
— Fiz alguma coisa que a ofendeu? — Marcus pergunta. — Entrei em contato porque pensei que você fosse uma amiga.
— Pensei que tivesse me contatado porque sabe que ainda sou um dos líderes dos Convergentes e quer um aliado — Johanna diz, inclinando o pescoço para que uma mecha de cabelo caísse sobre o olho marcado.  — E dependendo de qual é o seu objetivo, eu ainda sou aquela, Marcus, mas acho que a nossa amizade acabou.
As sobrancelhas de Marcus se estreitam juntas.
Meu pai tem a aparência de um homem que costumava ser bonito, mas à medida que foi envelhecendo, suas bochechas ficaram afundadas, seus gestos ficaram duros e rigorosos. Seu cabelo está penteado rente ao crânio ao estilo da Abnegação, o que não ajuda esta impressão.
— Eu não entendo — diz Marcus.
— Falei com alguns dos meus amigos da Franqueza — diz Johanna. — Me contaram o que seu filho disse sob o soro da verdade. O rumor desagradável que Jeanine Matthews espalhou sobre você e seu filho... era verdade, não era?
Meu rosto está quente, e me encolho em mim mesmo, meus ombros curvando-se para dentro. Marcus está balançando a cabeça.
— Não, Tobias é...
Johana levanta a mão. Fala com os olhos fechados, como se não suporta-se vê-lo.
— Por favor. Eu observei como seu filho se comporta, como a sua esposa. Sei que aparência têm as pessoas que sofreram violência — ela empurra o cabelo para trás da orelha. — Nos reconhecemos.
— Você não pode acreditar... — Marcus começa, sacudindo a cabeça. — Eu sou um disciplinador, sim, mas eu só queria o melhor...
— Um marido não deve disciplinar sua esposa — diz Johanna. — Nem mesmo na Abnegação. E quanto ao seu filho... bem, digamos que sim, eu acredito em você.
Os dedos de Johanna vão para a cicatriz em sua bochecha. Meu coração me oprime com o seu ritmo. Ela sabe, ela sabe, não porque me ouviu confessar minha vergonha na sala de interrogatório da Amizade, mas porque ela conhece, ela também experimentou. Eu tenho certeza. Gostaria de saber a partir de quem... a mãe dela? Seu pai? Alguém mais?
Uma parte de mim sempre se perguntou o que meu pai faria se fosse diretamente confrontado com a verdade. Imaginei que mudaria do modesto líder da Abnegação para o pesadelo que eu conhecia em casa, que poderia libertar-se e mostrar quão cruel era. Seria uma reação satisfatória para se ver, mas não é  esta a sua reação real.
Ele fica lá parado olhando confuso, e por um momento eu me pergunto se ele está assim na realidade, se o seu coração doente acredita em suas próprias mentiras sobre me disciplinar. O pensamento cria uma tempestade dentro de mim, um estrondo de trovões e uma onda de vento.
— Agora que eu fui honesta — Johanna diz, um pouco mais calma agora. — Pode me dizer por que me pediu para vir aqui.
Marcus desloca-se para um novo tema como se o primeiro nunca tivesse sido discutido. Vejo nele um homem que se divide em compartimentos e pode caminhar entre eles à vontade. Um deles foi reservado apenas para minha mãe e para mim.
Os funcionários do Centro movem a câmera para mais perto, de modo que o edifício Hancock é apenas um fundo preto atrás de Johanna e Marcus. Sigo uma linha diagonal na tela para evitar olhá-lo.
— Evelyn e os sem facção são tiranos — diz Marcus. — A paz experimentada entre as facções, antes do primeiro ataque de Jeanine, pode ser restaurada, tenho certeza. E quero tratar de fazê-la. E creio que você também quer.
— É — disse Johanna. — Como você acha que devemos fazer com isso?
— Esta é a parte que você pode não gostar, mas espero que você mantenha a mente aberta — disse Marcus. — Evelyn controla a cidade porque controla as armas, se tomarmos essas armas, ela não vai ter tanto poder e pode ser desafiada.
Johanna concorda, e raspa o chão com seu sapato. Eu só posso ver o lado liso de seu rosto deste ângulo, o cabelo limpo, mas encaracolado, a boca definida.
— O que você gostaria de fazer? — Ela pergunta.
— Deixe-me me unir a você na liderança dos Convergentes — ele fala. — Fui líder da Abnegação. Fui praticamente o líder da cidade inteira.  As pessoas correm para me seguir.
— As pessoas já têm corrido — assinala Johanna. — E não atrás de uma pessoa, mas atrás do desejo de reinstalar as facções. Quem disse que eu preciso de você?
— Não desmerecendo as suas realizações, mas os Convergentes ainda são muito insignificantes para fazer mais do que uma pequena revolta — disse Marcus. — Há mais dos sem facção do que qualquer um. Você precisa de mim. Sabe disso.
Meu pai tem uma maneira de persuadir as pessoas sem charme que sempre me confundiu. Expressando suas opiniões como se fossem fatos, e de alguma maneira a sua completa falta de dúvida faz você acreditar nele. Essa qualidade me assusta agora, porque sei o que ele me disse: que estou quebrado, que eu não valia nada, que não era nada. Quantas dessas coisas ele me fez acreditar?
Posso ver Johanna começando a acreditar, considerando a pequena quantidade de pessoas que se reuniu à causa Convergente. Pensando no grupo enviado para fora da cerca, com Cara, que nunca mais viu novamente. Pensando apenas em como ele é, e quão rica é a história dele e de sua liderança. Quero gritar para ela através das telas que não confie nele, dizer que ele só deseja facções de volta porque sabe que poderá voltar para o seu lugar de líder novamente. Mas minha voz não pode alcançá-la, não poderia mesmo que eu estivesse ao seu lado.
Com cuidado, Johanna lhe responde:
— Pode me prometer que na medida do possível, você vai tentar limitar a destruição que causaremos?
Marcus diz:
— Claro.
Ela assente novamente, mas desta vez para si mesma.
— Às vezes precisamos lutar pela paz — diz, mais para o chão do que para Marcus. — Acho que é um desses momentos. E acho que seria útil convocar pessoas.
É o início da rebelião Convergente que eu estive esperando desde que ouvi que o grupo havia se formado. Mesmo que parecesse inevitável, uma vez que Evelyn escolheu governar, eu me sinto doente. Parece que as rebeliões nunca param, na cidade, no campo, em qualquer lugar. Há apenas um pouco de ar entre elas, e tolamente, chamamos essas épocas de “paz”.
Dirijo-me para longe da tela, pretendendo deixar a sala de controle atrás de mim, tomar ar fresco se possível. Mas enquanto saio, vejo outra tela, mostrando uma mulher de cabelo escuro andando para frente e para trás num escritório na sede da Erudição. Evelyn, naturalmente, ocupa as imagens na maioria das telas da sala de controle. Faz sentido.
Evelyn empurra as mãos pelo cabelo, enredando os dedos sobre as mechas. Cai em uma poltrona, com papéis planando para o chão ao seu redor e penso, ela está chorando. Mas eu não sei por que, já que não vejo os seus ombros tremendo.
Ouço através dos alto-falantes, uma batida na porta. Evelyn se endireita, arruma o cabelo, limpa o seu rosto e diz:
— Entre!
Therese entra, sua faixa de sem facção à mostra.
— Acabamos de receber notícias das patrulhas, dizem não ter visto sinal dele.
— Ótimo — Evelyn balança a cabeça. — Eu o exilei, e ele está dentro da cidade. Só está fazendo isso para me irritar.
— Ou se juntou aos Convergentes e eles estão escondendo-o — Therese opina, sentando-se em uma cadeira de escritório. Retorcendo um papel contra o chão.
— Bem, obviamente — Evelyn coloca o braço contra a janela e se inclina nele, olhando para a cidade e para além dela, o pântano. — Obrigado por me atualizar.
— Nós o encontraremos. Ele não pode ter ido longe. Juro que vamos encontrá-lo.
— Eu só quero que você vá — Evelyn diz, com a voz apertada e pequena, como a de uma criança.
Eu me pergunto se ela ainda tem medo, do modo que eu tenho, como um pesadelo que continua ressurgindo durante o dia. Me pergunto quão semelhantes minha mãe e eu somos no fundo, no que importa.
— Eu sei — Therese diz, e sai.
Passo muito tempo assistindo Evelyn olhando pela janela, os dedos se contraindo ao seu lado.
Sinto como se eu houvesse me tornado metade meu pai e metade minha mãe – violento e impulsivo, desesperado e com medo. Sinto que perdi o controle sobre o que me tornei.

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