quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo trinta



Tris


— Você entrou?
Cara está de pé ao meu lado, os braços cruzados. Ontem Uriah foi transferido de seu quarto de segurança para um quarto com uma janela espelhada, que suspeito que seja para evitar que possamos vê-lo o tempo todo. Christina está sentada ao lado da cama agora, agarrando sua mão fraca.
Pensei que ele iria quebrar como uma boneca de trapo, mas ele não parece muito diferente, com exceção de algumas ataduras e arranhões. Sinto-me como se ele pudesse acordar a qualquer momento, sorrindo e perguntando por que todo mundo está olhando para ele.
— Eu estive lá na noite passada — digo. — Apenas não parecia correto deixá-lo sozinho.
— Há alguns dados que indicam que, dependendo da extensão do dano cerebral, em algum nível, ele pode nos ouvir e sentir — diz Cara. — No entanto, me foi dito que o diagnóstico não era bom.
Às vezes eu ainda quero bater nela. Como se precisasse me recordar que é provável que Uriah não se recupere.
— Sim.
Depois que eu deixei o lado de Uriah na noite anterior, vaguei pelo complexo sem direção. Eu deveria ter pensado sobre o meu amigo, oscilando entre este mundo e o que vem a seguir, mas em vez disso pensei sobre o que falei para Tobias. E como me sentia quando eu olhei para ele, como se algo estivesse rompendo.
Eu não lhe disse que era o fim do nosso relacionamento. Eu queria, mas quando estava olhando para ele, as palavras foram impossíveis de pronunciar. Sinto as lágrimas brotando novamente, como fizeram a cada hora mais ou menos desde ontem, e eu as afasto, engolindo-as.
— Então você salvou o Centro — Cara fala, virando-se para mim.— Você parece ter se envolvido em um monte de problemas. Acho que todos deveríamos agradecer por você ser firme em uma crise.
— Não salvei o Centro. Não tenho interesse em salvar o Centro — replico. — Eu mantive uma arma longe de mãos perigosas, isso é tudo — espero um tempo. — Você acabou de me cumprimentar?
— Sou capaz de reconhecer o ponto forte de outra pessoa — Cara responde, e sorri. — Além disso, acho que nossos problemas estão resolvidos agora, ambos em um nível psicológico e emocional — ela limpa a garganta um pouco, e me pergunto se ela está finalmente reconhecendo que têm emoções que a fazem sentir-se desconfortável, ou algo mais. — Parece que você sabe alguma coisa sobre o Centro que te faz ter raiva. Gostaria de saber se você poderia me dizer o que é.
Christina repousa a cabeça na borda do colchão Uriah, seu corpo delgado desaba de lado. Falo com ironia:
— Eu me pergunto. Talvez nunca venhamos a saber.
— Hmm — uma ruga aparece entre as sobrancelhas de Cara quando ela franze a testa, fazendo-a parecer tanto com Will que tenho de desviar o olhar. — Talvez eu devesse dizer “por favor”.
— Bem. Sabe o soro de simulação da Jeanine? Bem, não era dela. — suspiro. — Vamos. Eu vou te mostrar. Será mais fácil dessa maneira.
Eu poderia facilmente dizer o que vi naquele armazém velho, escondido nos laboratórios do Centro. Mas a verdade é que só quero me manter ocupada, não ter que pensar em Uriah. Ou em Tobias.
— Parece que nunca vamos alcançar o fim de todas essas mentiras — Cara comenta enquanto caminhamos para a sala. — As facções, o vídeo que Edith Prior nos deixou... tudo mentira, destinados a nos fazer comportar de certa maneira.
— É isso o que você realmente pensa a respeito das facções? — pergunto. — Pensei que amava ser da Erudição.
 — Eu amava — ela coça a nuca, deixando pequenas linhas vermelhas em sua pele onde as unhas passaram. — Mas o Centro me fez sentir como uma tola por lutar por isso, e pelos Convergentes o defenderem. E não gosto de me sentir tola.
— Então acha que nada valeu a pena. A coisa toda dos Convergentes.
— Você sim?
— Isso nos fez sair — eu digo — e conseguimos a verdade, e foi melhor do que comunidade sem facção que Evelyn tinha em mente, onde ninguém pode escolher nada.
— Suponho que sim. Eu só me orgulho de ser alguém que pode ver através das coisas, inclusive o sistema de facção.
— Sabe o que a Abnegação costumava dizer sobre o orgulho?
— Alguma coisa desfavorável, presumo.
Rio.
— Obviamente. Eles diziam que cega as pessoas para a verdade do que elas são.
Alcançamos as portas para os laboratórios, e bato algumas vezes para que Mattew possa me ouvir e nos deixar entrar. Enquanto espero que ele abra a porta, Cara me dá um olhar estranho.
— As antigas escrituras da Erudição diziam mais ou menos a mesma coisa — ela fala.
Eu nunca pensei que a Erudição iria dizer algo sobre o orgulho, que sequer fossem preocupados com a moralidade.  Parece que eu estava equivocada.
Quero perguntar mais, mas logo a porta se abre e Matthew aparece na entrada, mastigando uma maçã.
— Você pode me deixar entrar na sala de armazenamento? — pergunto. — Preciso mostrar algo a Cara.
Ele morde o último pedaço da maçã e sorri.
— Claro.
Eu tremo, imaginando o gosto amargo das sementes da maçã, e o sigo.

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