quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo vinte e nove



Tobias


Meus pulsos ardem por causa do fio de plástico que a guarda apertou em torno deles. Sondo minha mandíbula com as pontas dos dedos, procurando sangue na pele.
— Tudo bem? — Reggie pergunta.
Concordo com a cabeça. Tenho lidado com lesões piores do que essa – já fui acertado com mais força do que fui pelo soldado que bateu a coronha da arma em meu queixo enquanto estava me prendendo. Seus olhos estavam selvagens com raiva quando ele fez isso.
Mary e Rafi estão sentados a poucos metros de distância, Rafi segurando um punhado de gaze no braço sangrando. Uma guarda está entre nós e eles, mantendo-nos separados. Ao olhar para ele, Rafi encontra meus olhos e acena. Como se dissesse: Bem feito.
Se eu fiz bem, por que me sinto mal no estômago?
— Ouça — Reggie diz, se movendo, então ele está mais perto de mim. — Nita e as pessoas da fronteira estão cuidando da queda. Vai dar tudo certo.
Concordo com a cabeça mais uma vez, sem convicção. Armamos um plano de fuga para a nossa provável prisão, e não estou preocupado sobre o seu sucesso. O que me preocupa é o tempo que está levando para lidarem conosco, e quão informal é – nós estamos sentados contra a parede em um corredor vazio desde que pegaram os invasores há mais de uma hora, e ninguém veio nos dizer o que vai acontecer com a gente, ou para nos fazer quaisquer perguntas. Eu nem vi Nita ainda.
Isso põe um gosto amargo na minha boca. Seja lá o que fizemos, parece tê-los abalado, e sei que nada abala as pessoas quanto vidas perdidas.
Por quantos corpos sou responsável porque participei disto?
— Nita me disse que iam roubar o soro da memória — eu digo para Reggie, e tenho medo de olhar para ele. — Isso era verdade?
Reggie olha a guarda que está a poucos metros de distância. Ela já gritou uma vez por conversarmos.
Mas eu sei a resposta.
— Não era, certo? — pressiono.
Tris estava certa. Nita estava mentindo.
— Ei! — A guarda marcha em nossa direção e enfia o cano de sua arma entre nós. — Vá para o lado. Conversas não são permitidas.
Reggie se desloca para a direita, e eu faço contato visual com ela.
— O que está acontecendo? — pergunto. — O que aconteceu?
— Oh, então você não sabe — ela responde. — Agora mantenha a boca fechada.
Eu a vejo afastar-se, e então tenho o vislumbre de uma pequena garota loira aparecendo no final do corredor. Tris. Bandagem se estende por toda a testa dela, e manchas de sangue em forma de dedos preenchem suas roupas. Ela agarra um pedaço de papel em seu punho.
— Ei! — a guarda grita. — O que você está fazendo aqui?
— Shelly — o outro guarda diz, movimentando-se de novo. — Acalme-se. Essa é a menina que salvou David.
A menina que salvou David – de quê, exatamente?
— Oh — Shelly baixa a arma. — Bem, ainda é uma pergunta válida.
— Eles me pediram para trazer a vocês uma atualização — Tris responde, e oferece a Shelly o pedaço de papel.
— David está em recuperação. Ele vai viver, mas não se tem certeza de quando vai voltar a andar. A maioria dos outros feridos está sendo tratada.
O gosto amargo na minha boca se torna mais forte. David não pode andar. E o que eles estão fazendo nesse tempo todo é cuidar dos feridos. Toda essa destruição, e para quê? Eu mesmo não sei. Eu não sei a verdade.
O que eu fiz?
— Eles têm um número de baixas? — Shelly pede.
— Ainda não — responde Tris.
— Obrigada por nos avisar.
— Olha — ela muda o seu peso para o pé. — Eu preciso falar com ele.
Ela sacode a cabeça para mim.
— Nós realmente não podemos... — Shelly começa.
— Só por um segundo, eu prometo. Por favor.
— Deixe-a — diz o outro guarda. — Que mal poderia fazer?
— Tudo bem — Shelly fala. — Eu vou te dar dois minutos.
Ela acena com a cabeça para mim, e eu uso a parede para empurrar-me de pé, minhas mãos ainda presas à minha frente.
Tris chega mais perto, mas não tão perto – o espaço e seus braços cruzados formam uma barreira entre nós que pode bem ser um muro. Ela olha em algum lugar ao sul de meus olhos.
— Tris, eu...
— Quer saber o que seus amigos fizeram? — ela pergunta. Sua voz treme, e eu não cometo o erro de pensar que é de lágrimas. É de raiva. — Eles não estavam atrás do soro da memória. Estavam atrás de veneno – soro da morte. Assim eles poderiam matar um monte de pessoas importantes do governo e iniciar uma guerra.
Eu olho para baixo, para as minhas mãos, o piso, os dedos dos pés dos seus sapatos. Uma guerra.
— Eu não sabia...
— Eu estava certa. Eu estava certa e você não quis ouvir. De novo — diz ela, calma. Seus olhos se trancam nos meus, e acho que não quero o contato com seus olhos que eu desejava, porque me desmonta, parte por parte. — Uriah estava bem na frente de um dos explosivos que serviu como distração. Ele está inconsciente e não temos certeza se ele vai acordar.
É estranho como uma palavra, uma frase, uma oração, pode parecer com um golpe na cabeça.
— O quê?
Tudo o que eu posso ver é o rosto de Uriah quando ele caiu na rede após a Cerimônia de Escolha, o sorriso bobo que tinha enquanto Zeke e eu o puxávamos para a plataforma ao lado da rede. Ou ele sentado no estúdio de tatuagem, sua orelha para frente para que ele não ficasse no caminho de Tori enquanto ela desenhava uma cobra em sua pele. Uriah pode não acordar? Uriah, indo para sempre?
E eu prometi. Prometi a Zeke que eu cuidaria dele, eu prometi...
— Ele é um dos últimos amigos que tenho — diz ela, sua voz embargada — não sei se vou ser capaz de olhar para você da mesma forma novamente.
Ela vai embora. Ouço a voz abafada de Shelly me dizendo para sentar e eu afundo até os joelhos, deixando meus pulsos descansarem sobre as pernas. Me esforço para encontrar uma maneira de escapar disso, do horror do que eu fiz, mas não há lógica sofisticada que pode me libertar, não há saída.
Coloco meu rosto nas mãos e tento não pensar, tento não imaginar nada.

+ + +

A luz do teto na sala de interrogatório reflete um círculo difuso no centro da mesa. É onde eu mantenho os olhos quando recito a história que Nita me deu, que é tão perto da verdade não tenho nenhuma dificuldade em distinguir isso. Quando termino, o homem gravando bate minhas últimas frases em sua tela, o vidro iluminando com letras onde seus dedos tocaram. Então a mulher atuando como representante de David – Ângela – diz:
— Então, você não sabe a razão de Juanita ter lhe pedido para desativar o sistema de segurança?
— Não — respondo, o que é verdade.
Eu não sabia a verdadeira razão, só sabia uma mentira.
Eles colocaram todos os outros sob o soro da verdade, mas não a mim. A anomalia genética que me faz consciente durante as simulações também sugere que eu poderia ser resistente a soros, por isso o meu testemunho sob o soro da verdade pode não ser confiável. Enquanto a minha história se encaixa com a dos outros, eles vão assumir que é verdade. Eles não sabem que, poucas horas atrás, todos nós fomos inoculados contra soro da verdade. O informante de Nita entre os GPs deu-lhe a inoculação contra o soro meses atrás.
— Como, então, ela obrigou-o a fazê-lo?
— Somos amigos — respondo. — Ela é – era – uma das únicas amigas que eu tinha aqui. Ela me pediu para confiar nela, me disse que era por uma boa razão, então eu fiz isso.
— E o que você pensa sobre a situação agora?
Eu finalmente olho para ela.
— Eu nunca me arrependi tanto de algo na minha vida.
Rígidos, os olhos brilhantes de Angela amolecem um pouco. Ela acena com a cabeça.
— Bem, sua história se encaixa com o que os outros contaram. Dado o seu pouco tempo nesta comunidade, a sua ignorância do plano mestre e sua deficiência genética, estamos inclinados a sermos indulgentes. Sua sentença é a liberdade condicional – você deve trabalhar para o bem desta comunidade, ter bom comportamento, por um ano. Não terá permissão para entrar em qualquer laboratório ou sala privada. Não vai sair dos limites deste complexo sem permissão. Se apresentará todos os meses a um agente da condicional que será atribuído a você na conclusão do nosso processo. Você entende esses termos?
Com as palavras “deficiência genética” ecoando em minha mente, eu aceno e respondo:
— Sim.
— Então nós terminamos aqui. Você está livre para ir.
Ela fica de pé, empurrando a cadeira para trás. O gravador também para, e ela desliza a tela em sua bolsa. Angela toca a mesa para que eu olhe para ela novamente.
— Não seja tão duro consigo mesmo. Você é bastante jovem, sabe.
Eu não acho que a minha juventude seja desculpa, mas aceito sua tentativa de bondade sem objeção.
— Posso perguntar o que vai acontecer com Nita?
Angela pressiona os lábios.
— Uma vez que ela se recupere de seus ferimentos substanciais, ela será transferida para a nossa prisão e vai passar o resto da vida lá — ela responde.
— Ela não vai ser executada?
— Não, nós não acreditamos em pena de morte para os geneticamente deficientes — Angela se move em direção à porta. — Não podemos ter as mesmas expectativas de comportamento para aqueles com genes deficientes, como fazemos para aqueles com genes puros, depois de tudo.
Com um sorriso triste, ela sai da sala, mas não fecha a porta atrás dela. Fico no meu lugar por alguns segundos, absorvendo a dor de suas palavras. Eu queria acreditar que todos estavam errados sobre mim, que eu não sou limitado pelos meus genes, que não era mais deficiente do que qualquer outra pessoa. Mas como isso pode ser verdade quando minhas ações levaram Uriah para o hospital, quando Tris não pode ao menos me olhar nos olhos, quando muitas pessoas morreram?
Cubro meu rosto e cerro os dentes enquanto as lágrimas caem, a onda de desespero tal qual um punho, me golpeando.
No momento em que me levanto para ir embora, as pontas das minhas mangas – usadas para limpar meu rosto – estão úmidas, e minha mandíbula dói.

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