Tris
Eles anunciaram o exercício de ataque para a manhã, pelo intercomunicador, durante o café da manhã. A estridente voz feminina nos instrui a fechar as portas do quarto onde estamos, cobrir as janelas e sentar-nos em silêncio até os alarmes pararem.
— Terminará ao final de uma hora — diz ela.
Tobias parece desgastado e pálido, com olheiras sob os olhos. Ele pega um muffin e puxa pedaços pequenos, às vezes os come, às vezes se esquece.
A maioria de nós acordou tarde, às dez da manhã, suspeito que foi porque não havia razão para acordar cedo. Quando saímos da cidade, perdemos nossas facções, nosso senso de propósito. Aqui não há nada a fazer a não ser esperar que algo aconteça, e longe de me fazer sentir relaxada, me deixa nervosa e tensa. Estou acostumada a ter algo para fazer, algo porque lutar, o tempo todo. Eu tento me lembrar de relaxar.
— Eles nos levaram em um avião ontem — eu digo a Tobias. — Onde você estava?
— Eu só tinha que andar por aí. Coisas a processar — ele soa conciso, irritado. — Como foi?
— Incrível, na verdade — sento-me em frente a ele, de modo que nossos joelhos se tocam no espaço entre as nossas camas. — O mundo é... muito maior do que eu pensava que fosse.
Ele balança a cabeça.
— Eu provavelmente não teria gostado. Altura e tudo mais.
Eu não sei por que, mas a reação dele me decepciona. Quero que ele diga que desejava ter ido lá comigo, experimentar comigo. Ou pelo menos me perguntar o que quero dizer quando digo que era incrível. Mas tudo o que ele pode falar é que ele não teria gostado?
— Você está bem? Parece que mal dormiu.
— Bem, ontem foram muitas revelações — ele responde, apoiando a testa nas mãos. — Você não pode realmente me culpar por estar chateado com isso.
— Quero dizer, você pode ficar preocupado com o que quiser — eu digo, franzindo a testa — na minha perspectiva, no entanto, não parece haver muito com o que se chatear. Sei que é um choque, mas como eu disse, você ainda é a mesma pessoa que era ontem e no dia anterior, não importa o que essas pessoas digam sobre isso.
Ele balança a cabeça.
— Eu não estou falando sobre os meus genes. Estou falando sobre Marcus. Você realmente não sabe, não é?
A questão é acusatória, mas seu tom não. Ele se levanta para lançar seu muffin no lixo.
Me sinto com raiva e frustrada. Claro que eu sabia sobre Marcus. O nome dele estava zumbindo ao redor da sala quando acordei. Mas por alguma razão, não achei que iria perturbá-lo saber que seu pai não seria executado. Aparentemente, eu estava errada.
Não ajuda que os alarmes soem naquele exato momento, me impedindo de dizer qualquer outra coisa para ele. Eles são altos, gritantes, tão dolorosos de ouvir que eu mal consigo pensar, muito menos me movimentar. Mantenho uma mão apertada sobre minha orelha e deslizo a outra mão debaixo do travesseiro para pegar a tela com o diário da minha mãe.
Tobias tranca a porta e puxa as cortinas fechadas, e todo mundo se senta em seus catres. Cara envolve um travesseiro na cabeça. Peter apenas se senta com as costas contra a parede, os olhos fechados. Eu não sei onde Caleb está – pesquisando qualquer coisa que o deixou tão distante ontem, provavelmente – ou onde Christina e Uriah estão – explorando o complexo, talvez. Ontem depois da sobremesa, eles pareciam determinados a descobrir todos os cantos do lugar. Decidi descobrir os pensamentos da minha mãe em vez disso – ela escreveu várias coisas sobre suas primeiras impressões do complexo, a estranha limpeza do lugar, como todo mundo sorria o tempo todo, o modo que ela caiu de amores pela cidade ao vê-la da sala de controle.
Eu ligo a tela, esperando para me distrair do barulho.
Hoje eu me ofereci para ir para dentro da cidade. David disse que os Divergentes estão morrendo e alguém tem que impedir, porque isso é um desperdício do nosso melhor material genético. Acho que é uma maneira muito doentia de colocá-lo, mas David não quis dizer isso – apenas significa que se não fosse a morte dos Divergentes, ele não iria intervir até que chegasse a um certo nível de destruição, mas uma vez que são eles, uma atitude tem que ser tomada agora.
Apenas alguns anos, disse ele. Tudo o que tenho aqui são alguns amigos, sem família, e eu sou jovem o bastante para ser fácil de me inserir – basta limpar e reinicializar as lembranças de algumas pessoas, e eu estou dentro.
Eles vão me colocar na Audácia primeiro, porque eu já tenho tatuagens, e seria difícil explicar para as pessoas dentro do experimento. O único problema é que na minha Cerimônia de Escolha no próximo ano eu vou ter que me juntar à Erudição, porque é aí que o assassino está, e não tenho certeza se sou inteligente o suficiente para passar pela iniciação. David diz que não importa, ele pode alterar os meus resultados, mas sei que ele se sente mal. Mesmo que o Centro ache que as facções não significam nada, que são apenas um tipo de modificação comportamental que vai ajudar com a deficiência, as pessoas acreditam que significam, e ele se sente mal por brincar com seu sistema.
Vi-os por um par de anos, então não há muito que eu precise saber para me encaixar lá dentro. Aposto que conheço a cidade melhor do que eles, neste momento. Vai ser difícil enviar minhas atualizações – alguém pode notar que estou conectando um servidor remoto em vez de um servidor interno, portanto, minhas entradas provavelmente virão com menos frequência, se ainda houver. Vai ser difícil me separar de tudo o que conheço, mas talvez seja bom. Talvez seja um novo começo.
Eu realmente poderia aproveitar isso.
É muito para assimilar, mas encontro-me a reler a frase: O único problema é que na minha Cerimônia de Escolha no próximo ano eu vou ter que me juntar à Erudição, porque é aí que o assassino está. Eu não sei a que assassino ela está se referindo – o antecessor de Jeanine Matthews, talvez – mas mais confuso ainda do que isso é que ela não se juntou à Erudição.
O que aconteceu para fazê-la escolher Abnegação em vez disso?
Os alarmes param, e os meus ouvidos soam abafados na sua ausência. Os outros vão saindo lentamente, mas Tobias permanece por um momento, batendo os dedos contra a perna. Eu não falo com ele – não sei se quero ouvir o que ele tem a dizer agora, quando nós dois estamos no limite.
Mas tudo o que ele diz é:
— Posso te beijar?
— Sim — eu respondo, aliviada.
Ele se abaixa e toca meu rosto, então me beija suavemente.
Bem, ele sabe como melhorar o meu humor, pelo menos.
— Eu não pensei sobre Marcus. Sei que eu deveria ter pensado — eu digo.
Ele encolhe os ombros.
— Agora acabou.
Eu sei que não acabou. Nunca está terminado com Marcus; os erros que ele cometeu são muito grandes. Mas eu não pressiono a questão.
— Mais entradas do diário?
— Sim. Apenas algumas memórias do complexo até agora. Mas está ficando interessante.
— Bom — diz ele — vou deixar você com ele.
Ele sorri um pouco, mas posso dizer que ele ainda está cansado, ainda chateado. Eu não tento impedi-lo de ir. Assim, parece que estamos deixando o outro para a própria tristeza – a dele pela perda de sua Divergência e tudo o que o espera depois do julgamento de Marcus, e a minha, finalmente, pela perda de meus pais.
Eu toco a tela para ler a próxima entrada.
Caro David,
Eu levanto minhas sobrancelhas. Agora ela está escrevendo para David?
Caro David,
Sinto muito, mas não vai acontecer do jeito que planejei. Eu não posso fazê-lo. Sei que você apenas vai pensar que estou sendo uma adolescente estúpida, mas esta é a minha vida e se vou ficar aqui por anos, tenho que fazer do meu jeito. Eu ainda vou ser capaz de fazer o meu trabalho de fora da Erudição. Assim, amanhã na Cerimônia de Escolha, Andrew e eu vamos escolher Abnegação juntos.
Espero que você não fique com raiva. Acho que mesmo que fique, não vou ouvi-lo sobre isso.
– Natalie
Eu li o arquivo de novo e de novo, deixando as palavras afundarem Andrew e eu vamos escolher Abnegação juntos.
Eu sorrio, inclinando a cabeça contra a janela, e deixo que as lágrimas caiam em silêncio. Meus pais realmente se amaram. O suficiente para abandonar planos e facções. O suficiente para desafiar “facção antes do sangue” – amor antes de facção, sempre.
Eu desligo a tela. Não quero ler alguma coisa que vá estragar esse sentimento: que estou à deriva águas calmas.
É estranho, apesar de que eu devesse estar de luto, sinto que estou realmente recolhendo pedaços dela, palavra por palavra, linha por linha.
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