quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo vinte e dois

Tris


Só há apenas mais uma dúzia de entradas no arquivo, e eles não me contam tudo o que quero saber, apenas me trazem mais perguntas. E, em vez de conter apenas seus pensamentos e impressões, todos foram escritos para alguém.

Caro David,
Pensei que você fosse mais meu amigo do que meu supervisor, mas acho que eu estava errada.
O que acha que aconteceria quando eu chegasse aqui, que eu iria viver solteira e sozinha para sempre? Que eu não iria me apegar a alguém? Que eu não faria nenhuma das minhas próprias escolhas?
Deixei tudo para trás para vir aqui quando ninguém mais queria. Você deveria estar me agradecendo em vez de me acusar de perder minha missão de vista. Entendamos isso: eu não vou esquecer por que estou aqui só porque escolhi Abnegação e vou me casar. Eu mereço ter uma vida própria. Uma que eu escolha, não aquela que você e o Centro escolhem para mim. Você deve saber tudo sobre isso – deve entender por que esta vida me atrai depois de tudo o que vi e passei.
Honestamente, eu realmente não acho que você se importa que eu não escolhi Erudição como deveria. Parece que você está na verdade com inveja. E se quiser que eu continue com a atualização, vai desculpar-se por duvidar de mim. Mas se não fizer isso, não vou enviar-lhe mais nada, e certamente não vou mais deixar a cidade para outras visitas. Cabe a você.
– Natalie

Eu me pergunto se ela estava certa sobre David. O pensamento traz um comichão em minha mente. Ele estava realmente com ciúmes do meu pai? Será que o seu ciúme desapareceu ao longo do tempo? Eu só posso ver a relação pelos olhos dela, e não estou certa de que ela é a fonte mais precisa de informações sobre ele.
Posso dizer que ela está ficando mais velha durante as anotações, sua linguagem se tornando mais refinada enquanto o tempo a separa da fronteira onde ela viveu, suas reações se tornando mais moderadas. Ela está crescendo.
Eu verifico a data na próxima entrada. É alguns meses depois, mas não é dirigida a David como algumas das outras. O tom é muito diferente – pouco familiar, mais simples.
Eu toco a tela, folheando as entradas. Leva-me dez toques para alcançar uma entrada que é dirigida a David novamente. A data da entrada sugere que se tratava de uma comunicação de dois anos mais tarde.

Caro David,
Recebi sua carta. Entendo por que você não pode mais receber as atualizações, e vou respeitar a sua decisão, mas sentirei sua falta.
Desejo-lhe toda a felicidade.
– Natalie

Eu tento passar para frente, mas as entradas do diários terminaram. O último documento no arquivo é um certificado de morte. A causa da morte diz múltiplos ferimentos de bala no torso. Eu balanço um pouco para frente e para trás, para dissipar a imagem de sua queda na rua na minha mente. Não quero pensar em sua morte. Quero saber mais sobre ela e meu pai, e ela e David. Qualquer coisa que me distraia de sua morte.

+ + +

É um sinal de como estou desesperada por informações – e por ação – que eu vá para a sala de controle com Zoe mais tarde naquela manhã. Ela fala com o gerente da sala de controle sobre uma reunião com David enquanto eu olho, determinada, para meus pés, não querendo ver o que está nas telas. Sinto que se eu me permitir olhar para elas, mesmo que por um momento, vou tornar-me viciado nelas, perdida no velho mundo, porque eu não sei como navegar neste novo.
Quando Zoe termina a conversa, porém, não consigo manter minha curiosidade sob controle. Eu olho para a grandetela que paira sobre as mesas. Evelyn está sentada em sua cama, passando as mãos sobre algo em sua mesa de cabeceira. Chego mais perto para ver o que é, e a mulher no balcão a minha frente diz:
— Esta é a câmera de Evelyn. Nós a rastreamos vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
— Você pode ouvi-la?
— Só se aumentar o volume — a mulher responde. — Nós mantemos o som baixo, no entanto. É complicado ouvir muita conversa o dia todo.
Concordo com a cabeça.
— O que ela está tocando?
— Algum tipo de escultura, eu não sei — a mulher dá de ombros. — Ela olha muito para o objeto, no entanto.
Reconheço-o de algum lugar – do quarto de Tobias, onde eu dormi depois da minha quase execução na sede da Erudição. É feito de vidro azul, uma forma abstrata que se parece com água caindo congelada no tempo.
Toco os dedos em meu queixo enquanto procuro em minha memória. Ele me disse que Evelyn deu-lhe quando ele era jovem, e instruiu-o a escondê-lo de seu pai, que não aprovaria um belo objeto sem utilidade, sendo que era da Abnegação. Não pensei muito nisso no momento, mas deve significar algo para ela, se ela trouxe-o por todo o caminho do setor da Abnegação à sede da Erudição para manter em sua mesa de cabeceira. Talvez fosse a sua maneira de se rebelar contra o sistema de facções.
Na tela, Evelyn apoia o queixo na mão e olha para a escultura por um momento. Depois ela se levanta, balança as mãos e sai da sala.
Não, não acho que a escultura é um sinal de rebelião. Acho que é apenas uma lembrança de Tobias. De alguma maneira, nunca percebi que quando Tobias saiu da cidade comigo, ele não era apenas um rebelde que desafia o seu líder – era um filho abandonando sua mãe. E ela está sofrendo com isso. E ele?
Repleta de dificuldades como a relação deles tem sido, esses laços nunca se quebraram. Eles provavelmente não podem.
Zoe toca meu ombro.
— Você queria me perguntar alguma coisa?
Concordo com a cabeça e me afasto das telas. Zoe era jovem na fotografia onde estava ao lado da minha mãe, mas ela ainda estava lá, então acho que deve saber alguma coisa. Eu teria perguntado a David, mas como o líder do Centro, ele é difícil de se encontrar.
— Eu queria saber sobre os meus pais. Estou lendo o diário dela, e acho que está sendo difícil decifrar como eles se conheceram, ou por que eles escolheram a Abnegação juntos.
Zoe acena lentamente.
— Eu vou te dizer o que sei. Se importaria de andar comigo até os laboratórios? Preciso entregar uma mensagem a Matthew.
Ela segura as mãos atrás das costas, descansando-os na parte inferior da sua coluna vertebral. Eu ainda estou segurando a tela que David me deu. Está toda marcada com as minhas impressões digitais, e quente do meu toque constante. Entendo porque Evelyn se mantém tocando aquela escultura – é a última peça do seu filho que ela tem, assim como esta é a última parte de minha mãe que eu tenho. Me sinto mais perto dela quando ela está comigo.
Acho que é por isso que eu não posso dar a Caleb, mesmo que ele tenha o direito de vê-la. Eu não tenho certeza se posso deixá-la ir ainda.
— Eles se conheceram em uma aula — Zoe conta. — Seu pai, embora um homem muito inteligente, nunca teve o dom da psicologia, e o professor – um Erudito, sem surpresa – era duro demais com ele por isso. Portanto, sua mãe se ofereceu para ajudá-lo depois da escola, e ele disse a seus pais que estava fazendo algum tipo de projeto escolar. Eles fizeram isso por várias semanas, e depois começaram a se encontrar em segredo – acho que um dos seus lugares favoritos era a fonte sul do Parque Millennium. Fonte Buckingham? Bem ao lado do pântano?
Imagino minha mãe e meu pai sentados ao lado de uma fonte, sob o jato de água, com os pés roçando o fundo de concreto. Sei que a fonte a Zoe está se referindo não está em uso há muito tempo, que a água jorrando nunca esteve lá, mas a imagem é mais bonita assim.
— A Cerimônia de Escolha estava se aproximando, e seu pai estava ansioso para deixar a Erudição porque ele viu algo terrível...
— O quê? O que ele viu?
— Bem, seu pai era um bom amigo de Jeanine Matthews. Viu-a fazer experiências em um homem sem facção em troca de algo – comida ou roupa, algo assim. Enfim, ela estava testando o soro da indução do medo, que foi mais tarde incorporado à iniciação da Audácia. Há muito tempo, as simulações de medo não eram geradas por medos individuais de uma pessoa, você vê, apenas medos gerais como altura, aranhas ou alguma coisa assim – e Norton, o representante da Erudição, estava lá, permitindo que isso continuasse por tempo demais. O homem sem facção nunca mais voltou a ficar completamente bem. E essa foi a gota d'água para o seu pai.
Ela faz uma pausa em frente à porta dos laboratórios para abri-la com o seu crachá de identificação. Entramos no encardido escritório onde David me deu o diário de minha mãe. Matthew está sentado com seu nariz de três centímetros na tela de seu computador, os olhos apertados. Ele mal registra a nossa presença quando andamos para dentro. Sinto-me oprimida pelo desejo de sorrir e chorar ao mesmo tempo.
Sento-me em uma cadeira ao lado da mesa vazia, minhas mãos entrelaçadas entre os joelhos. Meu pai era um homem difícil. Mas ele também era uma pessoa boa.
— Seu pai queria sair da Erudição, e sua mãe não queria entrar, não importa qual fosse a sua missão – mas ela ainda queria estar perto de Andrew, então eles escolheram Abnegação juntos — ela faz uma pausa. — Isso causou uma quebra entre sua mãe e David, como tenho certeza que você percebeu. Ele finalmente pediu desculpas, mas disse que não poderia mais receber as atualizações dela – eu não sei por que, ele não diria – e depois os relatórios eram muito curtos, bem informativos. É por isso que eles não estão nesse arquivo.
— Mas ela ainda foi capaz de cumprir a sua missão na Abnegação.
— Sim. E ela foi muito mais feliz lá, eu acho, do que teria sido entre a Erudição — Zoe diz. — Claro, Abnegação acabou por não ser melhor, em alguns aspectos. Parece que não há como escapar do alcance da deficiência genética. Mesmo a liderança da Abnegação foi envenenado por ele.
Eu franzo a testa.
— Você está falando de Marcus? Porque ele é Divergente. Dano genético não tem nada a ver com ele.
— Um homem cercado por pessoas geneticamente deficientes não pode deixar de imitá-las com seu próprio comportamento — diz Zoe. — Matthew, David quer marcar uma reunião com seu supervisor para discutir um dos soros em desenvolvimento. Da última vez Alan esqueceu completamente sobre isso, então eu queria saber se você poderia acompanhá-lo.
— Claro — Matthew responde, sem olhar para longe de seu computador. — Vou levá-lo para me dar um tempo.
— Adorável. Bem, eu tenho que ir – espero ter respondido sua pergunta, Tris.
Ela sorri para mim enquanto fecha a porta entre nós.
Sento-me curvada, com os cotovelos sobre os joelhos. Marcus era Divergente – geneticamente puro, assim como eu. Mas não aceito que ele fosse uma pessoa má porque estava cercado por pessoas geneticamente deficientes. Eu estava na mesma situação. Uriah também. Assim como minha mãe. Mas nenhum de nós atacou nossos entes queridos.
— O argumento dela tem alguns furos, não? — Matthew comenta.
Ele está me olhando de trás da sua mesa, batendo com os dedos no braço da cadeira.
— Sim.
— Algumas das pessoas daqui querem culpar a alteração genética por tudo — diz ele. — É mais fácil para eles aceitar isso do que a verdade, razão pela qual não podem sabem tudo sobre as pessoas e por que elas agem da maneira que agem.
— Todo mundo tem que culpar algo pela forma como o mundo é — eu digo. — Para o meu pai era a Erudição.
— Eu provavelmente não deveria dizer-lhe que a Erudição sempre foi o meu favorito, então — Matthew fala, sorrindo um pouco.
— Sério? — Eu endireito. — Por quê?
— Eu não sei, acho que concordo com eles. Se todo mundo apenas continuasse a aprender sobre o mundo em torno de si, teriam muito menos problemas.
— Eu tenho sido cuidadosa com eles toda a minha vida — falo, descansando meu queixo na mão. — Meu pai odiava a Erudição, então aprendi a odiá-los também, e tudo o que fizeram com o seu tempo. Só que agora estou pensando ele estava errado. Ou apenas... tendencioso.
— Sobre a Erudição ou sobre a aprendizagem?
Eu dou de ombros.
— Ambos. Muitos dos integrantes da Erudição me ajudaram mesmo quando eu não pedi — Will, Fernando, Cara – todos Eruditos, algumas das melhores pessoas que conheci, mesmo que brevemente. — Eles estavam tão focados em tornar do mundo um lugar melhor — balanço a cabeça. — O que Jeanine fez não tem nada a ver com uma sede de conhecimento que conduz a uma sede de poder, como o meu pai dizia; tinha tudo a ver com ela estando aterrorizada de quão grande o mundo é quão impotente isso a deixava. Talvez a Audácia tivesse razão.
— Há uma velha frase — diz Matthew. — Conhecimento é poder. Poder para fazer o mal, como Jeanine... ou poder para fazer o bem, como o que estamos fazendo. O poder em si não é o mal. Assim, o conhecimento em si não é mau.
— Acho que eu cresci suspeitando de ambos. Poder e conhecimento. Para a Abnegação, o poder só deve ser administrado pelas pessoas que não o querem.
— Há algo bom nisso — diz Matthew. — Mas talvez seja a hora de deixar essa suspeita para trás.
Ele procura sob a mesa e tira um livro. É grosso, com uma capa gasta e bordas desgastadas. Nele está impresso BIOLOGIA HUMANA.
— É um pouco rudimentar, mas este livro ajudou a me ensinar o que é ser humano. Ser uma peça de maquinaria biológica tão complicada e misteriosa, e mais surpreendente ainda, ter a capacidade de analisar essa máquina! Isso é uma coisa especial, sem precedentes em toda a evolução história. A nossa capacidade de conhecer a nós mesmos e ao mundo é o que nos torna humanos.
Ele me entrega o livro e se volta para o computador. Olho para a capa gasta e passo os meus dedos pelas bordas das páginas. Ele faz com que a aquisição de conhecimento pareça com um segredo, algo bonito e antigo. Sinto que, se eu ler este livro, posso voltar por todas as gerações da humanidade até a primeira, quando era o que era – que posso participar de algo muitas vezes maior e mais velho do que eu.
— Obrigada — eu digo, e não é pelo livro. É por me dar algo de volta, algo que eu perdi antes mesmo de realmente tê-lo.

+ + +

O lobby do hotel cheira a limão adocicado e água sanitária, uma combinação acre que queima minhas narinas quando respiro. Passo por um vaso de planta com uma flor berrante desabrochando entre os seus ramos e vou em direção ao dormitório, que se tornou nosso lar temporário aqui. Enquanto ando, limpo a tela com a barra da minha camisa, tentando livrar-me de algumas das minhas impressões digitais.
Caleb está sozinho no dormitório, seu cabelo despenteado e seus olhos vermelhos de sono. Ele pisca para mim quando entro e atiro o livro de biologia na minha cama. Sinto uma dor nauseante no meu estômago e pressiono a tela com o arquivo da nossa mãe em minha lateral. Ele é filho dela. Tem o direito de ler seu diário, assim como você.
— Se você tem algo a dizer — ele fala — apenas diga.
— Mamãe viveu aqui — eu falo como um segredo há muito escondido, muito alto e muito rápido. — Ela veio da fronteira e foi trazida aqui, e morou aqui um par de anos, depois foi para a cidade para impedir a Erudição de matar o Divergentes.
Caleb pisca para mim. Antes que eu perca a coragem, ergo a tela para ele pegar.
— O arquivo dela está aqui. Não é muito tempo, mas você deve lê-lo.
Ele se levanta e fecha a mão em volta do vidro. Ele está muito mais alto do que costumava ser, bem mais alto do que eu. Por alguns anos, quando éramos crianças, eu era a mais alta, mesmo que fosse quase um ano mais nova. Esses foram alguns dos nossos melhores anos, aqueles em que eu não me sentia como se ele fosse maior, melhor, mais inteligente ou mais altruísta que eu.
— Há quanto tempo você sabe disso? — ele pergunta, estreitando os olhos.
— Isso não importa — dou passo para trás. — Estou dizendo a você agora. Pode ficar com isso, de qualquer maneira. Terminei com isso.
Ele limpa a tela com a manga e navega com dedos hábeis pela primeira entrada da nossa mãe. Espero que ele se sente e leia, terminando assim a conversa, mas ao invés disso ele suspira.
— Eu tenho algo para lhe mostrar, também. Acerca de Edith Prior. Vamos.
É o nome dela, não meu apego a ele, que me faz segui-lo quando ele se afasta.
Ele me leva para fora do dormitório para o corredor e virando algumas curvas até uma sala mais distante de qualquer que já vi no complexo do Centro. Ela é longa e estreita, as paredes cobertas de prateleiras que carregam livros azul-acinzentados idênticos, grossos e pesados ​​como dicionários. Entre as duas primeiras fileiras está uma longa mesa de madeira com cadeiras dobradas sob ela. Caleb aciona o interruptor e a luz pálida enche o quarto, lembrando-me da sede da Erudição.
— Eu tenho passado muito tempo aqui — diz ele. — É a sala de gravação. Eles mantêm algumas dos dados do experimento de Chicago aqui.
Ele caminha ao longo das prateleiras do lado direito da sala, correndo os dedos sobre as lombadas. Pega um dos volumes e o coloca sobre a mesa, abrindo-o, suas páginas cobertas de texto e fotos.
— Por que eles não mantêm tudo isso em computadores?
— Suponho que eles mantiveram esses registros antes de desenvolverem um sistema de segurança sofisticado em sua rede — ele explica, sem olhar para cima — os dados nunca desaparecem totalmente, mas o papel pode ser destruído para sempre, então você pode realmente se livrar dele, se não quiser que as pessoas erradas coloquem as mãos sobre ele. É mais seguro, às vezes, ter tudo impresso.
Seus olhos verdes se movem enquanto ele procura o lugar certo, seus dedos ágeis, feitos para virar páginas. Eu penso em como ele disfarçou parte de si mesmo, os livros escondidos entre a cabeceira e a parede em nossa casa na Abnegação, até que deixou cair o sangue na água da Erudição no dia da nossa Cerimônia de Escolha. Eu deveria saber, então, que ele era um mentiroso, com lealdade apenas para si mesmo.
Sinto essa dor nauseante novamente. Mal posso suportar ficar aqui com ele, as portas fechadas, nada mais que a mesa entre nós.
— Ah, aqui.
Ele toca o dedo numa página, em seguida, gira o livro para me mostrar.
Parece a cópia de um contrato, mas é escrito à mão com tinta:

Eu, Amanda Marie Ritter, de Peoria, Illinois, dou o meu consentimento para os seguintes procedimentos:
• O procedimento de “cura genética”, como definido pelo Centro de Bem-Estar Genético: “o procedimento de engenharia genética concebido para corrigir os genes específicos como “deficientes” na página três deste formulário.
 O “procedimento de reinicialização”, como definido pelo Centro de Bem-Estar Genético: “um procedimento para apagar a memória projetado para tornar o participante mais apto para o experimento”.
Declaro que fui exaustivamente instruída quanto aos riscos e benefícios destes procedimentos por um membro do Centro de Bem-Estar Genético. Entendo que isso significa que receberei novos antecedentes e uma nova identidade pelo Centro e serei inserida no experimento em Chicago, Illinois, onde vou viver o resto dos meus dias.
Concordo em reproduzir pelo menos duas vezes para dar aos meus genes corrigidos a melhor chance possível de sobrevivência. Entendo que serei incentivada a fazer isso quando for reeducada após o procedimento de reinicialização.
Também dou o meu consentimento para os meus filhos e os filhos dos meus filhos, etc, continuarem neste experimento até o momento que o Centro de Bem-Estar Genético considerar estar completo. Eles vão ser instruídos pela falsa história que me será dada depois do procedimento de reinicialização.
Assinado,
Amanda Marie Ritter

Amanda Marie Ritter. Ela era a mulher no vídeo, Edith Prior, minha antepassada.
Eu olho para Caleb, que tem os olhos acesos de conhecimento, como se houvesse um fio que atravessa cada um deles.
Nossa ancestral.
Puxo uma das cadeiras e me sento.
— Ela era antepassada do papai?
Ele balança a cabeça e senta-se em frente a mim.
— Sete gerações antes, sim. Uma tia. Seu irmão é quem nos deu o nome Prior.
— E isto é...
— É um termo de consentimento — diz ele. — Seu formulário de consentimento para a adesão ao experimento. As notas dizem que este foi apenas um primeiro esboço – ela foi uma das criadoras dos experimentos originais. Um membro do Centro. Havia apenas alguns membros do Centro no experimento original, a maioria das pessoas lá não estava trabalhando para o governo.
Eu leio as palavras de novo, tentando dar sentido a elas. Quando a vi no vídeo, parecia tão lógico que ela fosse se tornar uma residente de nossa cidade, que ela iria mergulhar em nossas facções, iria oferecer-se para deixar tudo para trás. Mas isso foi antes de eu saber como era a vida fora da cidade, e não parece tão horrível como o que Edith descreveu em sua mensagem para nós.
Ela fez uma hábil manipulação no vídeo, que foi planejado para nos manter contidos e dedicados à visão do Centro – o mundo fora da cidade está terrivelmente destroçado, e os Divergentes precisam vir aqui e curá-lo. Não é bem uma mentira, porque as pessoas do Centro acreditam que genes curados irão corrigir certas coisas, que se nos integrarmos na população em geral e passar nossos genes, o mundo será um lugar melhor. Mas eles não precisam dos Divergentes para marchar para fora da nossa cidade como um exército e lutar contra a injustiça e salvar a todos, como Edith sugeriu. Eu me pergunto se Edith Prior acreditava em suas próprias palavras, ou se ela apenas disse o que tinha que dizer.
Há uma fotografia dela na página seguinte, sua boca em uma linha firme, mechas de cabelo castanho penduradas em torno de seu rosto. Ela deve ter visto algo terrível para se oferecer para ter a memória apagada e toda a sua vida refeita.
— Você sabe por que ela se juntou?
Caleb balança a cabeça.
— Os registros sugerem – embora sejam bastante vagos nesta frente – que as pessoas se juntaram ao experimento para que seus familiares pudessem escapar da pobreza extrema – às famílias dos voluntários foi oferecido um salário mensal, durante dez anos. Mas, obviamente, essa não era a motivação de Edith, uma vez que ela trabalhou para o FBI. Suspeito que algo muito traumático tenha acontecido com ela, algo que ela estava determinada a esquecer.
Eu franzo a testa para sua fotografia. Não posso imaginar que tipo de pobreza motivaria uma pessoa a se esquecer de si e de todos que amava para que sua família pudesse obter uma bolsa mensal. Talvez eu tenha vivido a pão e legumes da Abnegação pela maior parte da minha vida, sem nada a perder, mas nunca fui tão desesperada. A situação deve ter sido muito pior do que qualquer coisa que vi na cidade.
Não posso imaginar por que Edith estava tão desesperada também. Ou talvez seja apenas por que ela não tinha ninguém para manter sua memória.
— Eu estava interessado no precedente legal para dar o seu consentimento em nome de um dos descendentes — Caleb diz. — Acho que é uma extrapolação dar consentimento para os filhos menores de dezoito anos, mas parece um pouco estranho.
— Acho que todos decidimos o destino dos nossos filhos apenas tomando nossas próprias decisões — eu digo vagamente. — Será que teríamos escolhido as mesmas facções que escolhemos se mamãe e papai não tivessem escolhido Abnegação? — encolho os ombros. — Eu não sei. Talvez a gente não teria se sentido tão preso. Talvez tivéssemos sido pessoas diferentes.
O pensamento dá arrepios em minha mente como uma criatura rastejante – talvez a gente tivesse se tornado pessoas melhores. Pessoas que não traem suas próprias irmãs.
Fico olhando para a mesa à minha frente. Nos últimos minutos, foi fácil fingir que Caleb e eu éramos apenas irmão e irmã novamente. Mas uma pessoa só pode manter a realidade – e a raiva – presa por um tempo antes que a verdade volte. Enquanto ergo os meus olhos para ele, penso apenas em encará-lo da forma que fiz quando ainda era uma prisioneira na sede da Erudição. Acho que estou demasiada cansada para brigar com ele, ou para ouvir suas desculpas, também cansada demais para me importar ​​que meu irmão tivesse me abandonado.
Pergunto laconicamente:
— Edith se juntou à Erudição, não foi? Mesmo que ela tenha um nome de Abnegação?
— Sim! — Ele não pareceu notar o meu tom. — Na verdade, a maioria dos nossos antepassados ​​era da Erudição. Alguns poucos foram da Abnegação, e um ou dois da Franqueza, mas a linha é bastante consistente.
Eu sinto frio, como se pudesse tremer e, em seguida, passa.
— Então suponho que você fez disso uma desculpa em sua mente distorcida pelo o que fez — eu digo de forma constante. — Para ingressar na Erudição, para ser leal a eles. Quer dizer, se supõe que todo o tempo você foi um deles, “facção antes de sangue” é uma coisa aceitável para acreditar então, né?
— Tris... — ele fala, e seus olhos me imploram para compreender, mas eu não entendo. Eu não vou.
Eu me levanto.
— Então, agora eu sei sobre Edith e você sabe sobre a nossa mãe. Bom. Vamos apenas deixar assim.
Às vezes, quando olho para ele, sinto uma pontada de simpatia para com ele, e às vezes sinto como se quisesse apertar minhas mãos em torno de sua garganta. Mas agora eu só quero fugir, e fingir que isso nunca aconteceu.
Saio da sala de registros e os meus sapatos rangem no chão de ladrilhos enquanto corro de volta para o hotel. Corro até eu sentir o doce cheiro cítrico, e depois eu paro.
Tobias está de pé no corredor do lado de fora do dormitório. Estou sem fôlego, e posso sentir meu coração batendo até mesmo em meus dedos, estou oprimida, repleta de perda, admiração, raiva e saudade.
— Tris — Tobias diz, com a testa franzida de preocupação. — Você está bem?
Eu balanço minha cabeça, ainda lutando para respirar, e o pressiono contra a parede com meu corpo, meus lábios encontrando o seu. Por um momento, ele tenta me empurrar para longe, mas, em seguida, deve decidir que não se importa se eu estou bem, não se importa se ele está bem, não se importa. Nós não estivemos sozinhos em dias. Semanas. Meses.
Seus dedos deslizam em meu cabelo, e eu me seguro em seus braços para me manter firme enquanto nos pressionamos juntos como duas lâminas em um impasse. Ele é mais forte do que qualquer um que conheço, e mais quente do que ninguém percebe, ele é um segredo que eu tenho guardado e vou manter para o resto da minha vida.
Ele se inclina e beija minha garganta, com força, e as suas mãos suaves estão em cima de mim, prendendo-se em minha cintura. Engancho meus dedos nas alças de seus jeans. Naquele momento sei exatamente o que quero, quero descascar todas as camadas de roupa entre nós, tirar tudo o que nos separa, do passado, do presente e do futuro.
Ouço passos e risadas no final do corredor, e nos separamos. Alguém – provavelmente Uriah – assobia, mas eu mal posso ouvi-lo sobre o pulsar em meus ouvidos.
Os olhos de Tobias encontram os meus, e é como a primeira vez que realmente olhei para ele durante a minha iniciação, depois da minha simulação medo; nos olhamos por tempo demais, com muita intensidade.
— Cale a boca — digo para Uriah, sem olhar para ele.
Uriah e Christina entram no dormitório, e Tobias e eu os seguimos como se nada tivesse acontecido.

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