quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo vinte e três

Tobias


De noite, quando minha cabeça cai no travesseiro, pesada com pensamentos, ouço algo enrugar-se debaixo da minha bochecha.
Há um bilhete em minha fronha.

T –
Encontre-me do lado de fora da entrada do hotel às onze. Preciso falar com você.
– Nita

Olho para a cama de Tris. Ela está deitada de costas, e há uma mecha de cabelo cobrindo seu nariz e boca, movendo-se a cada expiração. Não quero acordá-la, mas me sinto estranho indo me encontrar com uma menina no meio da noite sem contar a ela sobre isso. Especialmente agora que estamos tentando ser honestos um com o outro.
Eu verifico o meu relógio. São 10:50.
Nita é apenas uma amiga. Você pode dizer a Tris amanhã. Pode ser urgente.
Empurro os cobertores para o lado e enfio os pés nos sapatos – durmo de roupa nos dias de hoje. Passo pelo catre de Peter, depois de Uriah. A parte superior de uma garrafa espreita sob o travesseiro de Uriah. Eu a pesco entre os dedos e a levo até a porta, onde deslizo-a debaixo do travesseiro de uma das camas vazias. Vou cuidar dele assim como prometi a Zeke que faria.
Uma vez que estou no corredor, amarro meus cadarços e aliso meu cabelo para baixo. Parei de cortá-lo como a Abnegação quando quis que a Audácia me visse como um líder em potencial, mas sinto falta do ritual da velha forma, o zumbido do cortador e os movimentos cuidadosos de minhas mãos, sabendo mais pelo tato do que pela visão. Quando eu era jovem, meu pai costumava fazer isso no corredor do andar de cima da nossa casa na Abnegação. Ele sempre era muito descuidado com a lâmina, e cortava a parte de trás do meu pescoço, ou pegava minha orelha. Mas nunca reclamou de ter que cortar meu cabelo para mim. Isso significa algo, penso.
Nita está batendo o pé. Desta vez, ela veste uma camisa de manga curta branca, com o cabelo puxado para trás. Ela sorri, mas ele não chega aos olhos.
— Você parece preocupada — eu digo.
— É porque eu estou — ela responde. — Vamos lá, há um lugar que tenho vontade de te mostrar.
Ela me leva pelos corredores escuros e vazios, exceto por um zelador ocasional. Eles todos parecem conhecer Nita – acenam para ela, ou sorriem. Ela coloca as mãos nos bolsos, guiando cuidadosamente seus olhos para longe de mim cada vez que acontece de nossos olhares se cruzarem.
Passamos por uma porta sem um sensor de segurança para mantê-la bloqueada. A sala além dela é um amplo círculo com o centro marcado por um lustre de vidro. O piso é de madeira polida, escuro, e as paredes, cobertas de folhas de bronze, brilham onde a luz toca. Existem nomes inscritos nos painéis de bronze, dezenas de nomes.
Nita está sob o lustre de vidro e mantém os braços abertos para abrangerem o espaço com seu gesto.
— Estas são as árvores genealógicas Chicago — diz ela. — As árvores de família.
Eu me aproximo de uma das paredes e leio os nomes, em busca de um que parece familiar. No final, acho um: Uriah Pedrad e Ezequiel Pedrad. Ao lado de cada nome está uma pequena inscrição “AA”, e há um ponto ao lado do nome de Uriah, e parece recém-esculpido. Marcando-o como divergente, provavelmente.
— Você sabe onde está a minha? — pergunto.
Ela atravessa a sala e toca um dos painéis.
— As gerações são matrilineares. É por isso que os registros de Jeanine disseram que Tris era “segunda geração” – porque sua mãe veio de fora da cidade. Não sei como Jeanine sabia disso, e acho que nunca vamos descobrir.
Abordo o painel que contém o meu nome com receio, embora eu não tenha certeza do que eu tenho a temer ao ver o meu nome e os nomes dos meus pais esculpidos em bronze. Vejo uma linha vertical conectando Kristin Johnson e Evelyn Johnson, e uma horizontal que liga Evelyn Johnson a Marcus Eaton.
Abaixo dos dois nomes está apenas um: Tobias Eaton. As letras pequenas ao lado de meu nome são “AA”, e há um ponto lá também, embora agora eu saiba que não sou realmente Divergente.
— A primeira letra é a sua facção de origem — diz ela — e a segunda é a sua facção de escolha. Eles pensaram que manter o controle das facções iria ajudá-los rastrear o caminho dos genes.
Letras da minha mãe: “EAS”. O “S” é para “sem facção", presumo.
Letras do meu pai: “AA”, com um ponto.
Toco a linha que me liga a eles, e a linha que liga Evelyn a seus pais, e a linha que os conecta aos seus pais, todo o caminho de volta através de oito gerações, contando a minha. Isto é um mapa do que eu sempre soube, que estou preso a eles, para sempre ligado a esta herança vazia não importa o quão longe eu corro.
— Mesmo que eu aprecie você me mostrando isso — falo, e soo triste e cansado — não sei por que teve que ser no meio da noite.
— Pensei que você pode querer vê-lo. E tinha uma coisa que eu queria falar com você.
— Mais garantias de que minhas limitações não me definem? — balanço a cabeça. — Não, obrigado, eu tive mais do que o suficiente.
— Não. Mas fico feliz que tenha dito isso.
Ela se inclina contra o painel, cobrindo o nome de Evelyn com o ombro. Dou um passo para trás, não querendo estar tão perto dela que eu possa ver o anel de marrom mais claro ao redor de suas pupilas.
— Aquela conversa que tive com você ontem à noite, sobre deficiência genética... era na verdade um teste. Eu queria ver como você reagiria ao que eu falei sobre genes deficientes, para saber se eu podia confiar em você ou não. Se você aceitasse o que eu falei sobre as suas limitações, a resposta teria sido não — ela desliza um pouco mais para perto de mim, então esconde o nome de Marcus também. — Veja, eu realmente não estou de acordo sendo classificada como “deficiente”.
Penso no jeito como ela cuspiu a explicação da tatuagem nas costas do vidro quebrado como se fosse veneno.
Meu coração começa a bater mais forte, de modo que posso sentir minha pulsação na garganta.
Amargura substitui o bom humor em sua voz, e seus olhos perdem o calor. Tenho medo dela, com medo do que ela diz – e estou emocionado por ela também, porque isso significa que eu não tenho que aceitar que sou menor do que uma vez acreditei.
— Acho que você não está de acordo também — diz ela.
— Não. Eu não estou.
— Há um monte de segredos neste lugar. Um deles é que, para eles, um GD é dispensável. Outro é que alguns de nós não vai apenas sentar e acatar.
— O que quer dizer com “dispensável”?
— Os crimes que têm cometido contra pessoas como nós são sérios — Nita fala — e estão escondidos. Posso mostrar-lhe provas, mas terá que ser mais tarde. Por enquanto, o que posso dizer é que estamos trabalhando contra o Centro, por boas razões, e queremos você com a gente.
Eu estreito meus olhos.
— Por quê? O que você quer de mim, exatamente?
— Quero lhe oferecer uma oportunidade para ver como o mundo é fora do complexo.
— E o que você recebe em troca é...? — pergunto.
— Sua proteção. Estou indo para um lugar perigoso, e não posso contar a ninguém do Centro sobre isso. Você é alguém de fora, o que significa que é mais seguro para eu confiar em você, e sei que sabe como se defender. E se vir comigo, vou lhe mostrar as provas que quer ver.
Ela toca o coração de leve, como se estivesse jurando. Meu ceticismo é forte, mas a minha curiosidade é mais. Não é difícil para mim acreditar que o Centro iria fazer coisas ruins, porque cada governo que conheci fez coisas ruins, mesmo a oligarquia da Abnegação, da qual meu pai era chefe. E mesmo além dessa suspeita razoável, tenho borbulhando dentro de mim a esperança desesperada de que não estou deficiente, que valho mais do que os genes corrigidos que eu passarei para as crianças que eu poderia ter.
Então decido seguir com isso. Por enquanto.
— Tudo bem — falo.
— Em primeiro lugar, antes de eu mostrar-lhe qualquer coisa, você tem que aceitar que não poderá contar a qualquer um – mesmo Tris – sobre o que vir. Você está bem com isso?
— Ela é confiável, você sabe — prometi a Tris que eu não iria esconder mais segredos dela. Não devo entrar em situações em que vou ter que fazer isso de novo. — Por que não posso contar a ela?
— Eu não estou dizendo que ela não é confiável. Só que ela não tem o conjunto de habilidades que precisamos, e não queremos colocar ninguém em risco que não seja necessário. Veja, o Centro não quer que a gente se organize. Se acreditarmos que não somos “deficientes”, então estamos dizendo que tudo o que eles estão fazendo – os experimentos, as alterações genéticas, tudo isso – é um desperdício de tempo. E ninguém quer ouvir que o trabalho da sua vida é um farsa.
Eu entendo tudo isso – é como descobrir que as facções são um sistema artificial, projetado por cientistas para nos manter sob controle por tanto tempo quanto possível.
Ela se empurra para longe da parede, e então fala a única coisa que poderia dizer para me fazer concordar:
— Se você disser a ela, estaria privando-a da escolha que estou te dando agora. Você iria forçá-la a se tornar uma cúmplice. Ao manter isso em segredo, estaria protegendo-a.
Corro os dedos sobre meu nome, esculpido no painel de metal. Tobias Eaton. Estes são os meus genes, esta é a minha bagunça. Não quero trazer Tris para ela.
— Tudo bem. Mostre-me.

+ + +

Vejo o feixe da lanterna subir e descer com seus passos. Nós apenas pegamos um saco de estopa no armário ao fundo do corredor – ela estava pronta. Ela me leva profundamente nos corredores subterrâneos do complexo, além do local onde os GDs se reúnem, para um corredor onde a eletricidade não flui. Em um determinado lugar, ela se agacha e desliza a mão ao longo do chão até que seus dedos alcançam um trinco. Ela me entrega a lanterna e puxa o trinco, levantando uma portinhola no azulejo.
— É um túnel de fuga — diz ela. — Eles o escavaram quando se mudaram para cá no início, então haveria sempre uma maneira de escapar durante uma emergência.
De sua bolsa, ela puxa um bastão preto e gira a tampa. Ele lança faíscas de luz que brilham vermelhas contra sua pele. Nita o solta pela passagem e ele cai alguns metros, deixando um rastro de luz em minhas pálpebras. Ela se senta na borda do buraco, a mochila presa ao redor de seus ombros, e pula.
Sei que é apenas um caminho curto para baixo, mas parece mais com o espaço aberto debaixo de mim. Sento-me, a silhueta de meus sapatos escuros contra as faíscas vermelhas, e me empurro para a frente.
— Interessante — Nita diz quando eu pouso.
Eu levanto a lanterna, e ela mantém o bastão na frente dela enquanto caminhamos ao longo do túnel, que é apenas largo o suficiente para caminharmos lado a lado, e alto o bastante para me aprumar. Tem um odor intenso e podre, como mofo e ar morto.
— Esqueci você tem medo de altura.
— Bem, eu não tenho medo de muita coisa.
— Não há necessidade de ficar na defensiva! — Ela sorri. — Na verdade, eu sempre quis perguntar-lhe sobre isso.
Passo por cima de uma poça, a sola dos meus sapatos se aderindo no chão grudento do túnel.
— Seu terceiro medo — diz ela. — Atirar naquela mulher. Quem era ela?
As chamas vermelhas se apagam, de modo que a lanterna que estou segurando é o nosso único guia através do túnel. Movo meu braço para criar mais espaço entre nós, não querendo roçar seu braço no escuro.
— Ela não era ninguém em particular — respondo. — O medo estava em atirar nela.
— Você estava com medo de matar pessoas?
— Não. Eu estava com medo da minha considerável capacidade para matar.
Ela fica em silêncio, e eu também Essa é a primeira vez que falei essas palavras em voz alta, e agora escuto quão estranhas elas são. Quantos homens jovens temem que haja um monstro dentro de si? As pessoas deveriam temer os outros, e não a si próprias. As pessoas aspiram tornar-se como seus pais, e estremeço só de pensar.
— Eu sempre me perguntei o que seria da minha paisagem do medo — ela diz num tom abafado, como uma oração. — Às vezes sinto que há muito a temer, e às vezes sinto que não há nada.
Concordo com a cabeça, embora ela não possa me ver, e me mantenho em movimento, a luz da lanterna saltando, os sapatos raspando, o ar mofado vindo em nossa direção de onde quer que isso termine.

+ + +

Depois de vinte minutos de caminhada, fazemos uma curva e sinto o cheiro de vento fresco, frio o suficiente para me fazer estremecer. Desligo a lanterna, e a luz da lua no fim do túnel nos guia para a saída.
Do túnel, saímos em algum lugar do deserto que atravessamos para chegar ao complexo, entre os prédios em ruínas e árvores que cobrem a vegetação rompendo o pavimento. Estacionado a poucos metros está um caminhão velho, a parte traseira coberta de lona puída e rasgada. Nita chuta um dos pneus para testá-lo, depois sobe no banco do motorista. As chaves já estão penduradas na ignição.
— De quem é esse caminhão? — pergunto quando chego no banco do passageiro.
— Ele pertence ao povo que vamos encontrar. Pedi-lhes para estacioná-lo aqui — diz ela.
— E quem são eles?
— Amigos meus.
Eu não sei como ela encontra seu caminho através do labirinto de ruas diante de nós, mas ela o faz, dirigindo o caminhão em torno de raízes de árvores e postes caídos, iluminando com os faróis animais que correm pela borda da minha visão.
Uma criatura de pernas longas, com um corpo marrom, faz o seu caminho através da rua à nossa frente, é quase tão alta quanto os faróis. Nita diminui o aperto do pé no freio para que não o atinja. As orelhas do animal se contorcem, e na escuridão, olhos redondos nos observam com curiosidade e cuidado, como uma criança.
— Meio bonito, não? — diz ela. — Antes de vir aqui, eu nunca tinha visto um veado.
Concordo com a cabeça. Ele é elegante, mas hesitante, vacilante.
Nita pressiona a buzina com a ponta dos dedos, e o veado se move para fora do caminho. Nós aceleramos de novo, em seguida, chegamos a uma estrada larga, suspensa sobre os trilhos de trem por onde uma vez eu caminhei para alcançar o complexo. Vejo as luzes à frente, um ponto brilhante neste deserto escuro.
E estamos viajando para nordeste, para longe dele.

+ + +

Passe um longo tempo antes que eu veja luz novamente. Quando o faço, ela está ao longo de uma estreita rua irregular. As lâmpadas oscilam num cabo amarrado ao longo dos antigos postes de luz.
— Nós paramos por aqui — Nita gira o volante, encaixando o caminhão em um beco entre dois prédios de tijolos. Ela pega as chaves da ignição e olha para mim. — Verifique no porta-luvas. Pedi-lhes para nos dar armas.
Abro o compartimento a minha frente. Assentadas no topo de algumas embalagens velhas estão duas facas.
— Como é com uma faca? — ela pergunta.
A iniciação na Audácia ensina a atirar facas, mesmo antes das alterações que Max fez. Eu nunca gostei delas porque parecia ser uma maneira de incentivar a Audácia para um talento teatral, ao invés de uma habilidade útil.
— Sou bom — digo com um sorriso. — Nunca pensei que a habilidade realmente valesse algo, no entanto.
— Acho que a Audácia é boa para alguma coisa depois de tudo... Quatro — diz ela, sorrindo um pouco.
Ela leva a maior das duas facas, e fico com a menor.
Estou tenso, giro a lâmina em meus dedos à medida que caminhamos para o beco. Acima de mim as janelas piscam com um tipo diferente de luz – chamas, de velas ou lanternas. Em um ponto, quando olho para cima, vejo uma cortina de cabelos e órbitas escuras olhando para mim.
— Pessoas vivem aqui — eu digo.
— Este é o limite da fronteira — diz Nita. — Ela está cerca de duas horas de carro de Milwaukee, que é uma área metropolitana ao norte daqui. Sim, as pessoas vivem aqui. Nestes dias as pessoas não se aventuram muito longe das cidades, mesmo que queiram viver fora da influência do governo, como as pessoas aqui.
— Por que elas querem viver fora da influência do governo?
Sei o que é viver fora do governo por assistir os sem facção. Eles estavam sempre com fome, sempre com frio no inverno e calor no verão, sempre lutando para sobreviver. Não é uma vida fácil de se escolher – você tem que ter uma boa razão para isso.
— Porque eles são geneticamente deficientes — Nita responde, olhando para mim. — As pessoas geneticamente deficientes são tecnicamente – legalmente – iguais às pessoas geneticamente puras, mas apenas no papel, por assim dizer. Na realidade elas são mais pobres, mais propensas a serem condenadas por crimes, menos propensas a serem contratadas para bons empregos... isso te nomeia, e é um problema, e tem sido desde a Guerra da Pureza, mais de um século atrás. Para as pessoas que vivem na fronteira, parecia mais atraente optar por sair completamente da sociedade ao invés de tentar corrigir o problema de dentro, como eu pretendo fazer.
Penso no fragmento de vidro tatuado em sua pele. Gostaria de saber quando ela conseguiu – eu me pergunto o que colocou o olhar perigoso em seus olhos, o que colocou tal drama em seu discurso, o que a fez tornar-se uma revolucionária.
— Como é que você planeja fazer isso?
Ela ergue o queixo e diz:
— Tirando alguns dos poderes do Centro.
O beco se abre para uma grande rua. Algumas pessoas fazem ronda ao longo das bordas, mas outras andam bem no meio, em grupos cambaleantes, garrafas balançando nas mãos. Todos que vejo são jovens – não há muitos adultos na fronteira, penso.
Ouço gritos na frente, e vidro quebrando na calçada. Uma multidão forma um círculo ao redor de duas figuras trocando socos e pontapés. Começo a ir em direção a eles, mas Nita agarra meu braço e me arrasta para um dos edifícios.
— Não é o momento para ser um herói — diz ela.
Abordamos a porta do prédio na esquina. Um homem grande está ao lado dela, girando uma faca na palma da mão. Quando caminhamos até os degraus, ele para a faca e a joga na outra mão, que é retorcida com cicatrizes.
Seu tamanho, sua destreza com a arma, sua aparência suja cheia de cicatrizes – é tudo para supostamente me intimidar. Mas seus olhos são como os do animal da estrada, grandes, cautelosos e curiosos.
— Estamos aqui para ver Rafi — Nita fala. — Viemos do complexo.
— Podem entrar, mas suas facas ficam aqui — diz o homem.
Sua voz é alta, mas mais leve do que eu esperava. Ele talvez pudesse ser um homem gentil, se esse fosse um tipo diferente de lugar. Já que não é, vejo que ele não é gentil, nem sequer sabe o que isso significa.
Apesar de um mesmo ter descartado qualquer tipo de suavidade por sua inutilidade, eu me pego pensando que algo importante se perdeu se este homem foi forçado a negar sua própria natureza.
— Sem chance — Nita responde.
— Nita, é você? — uma voz fala de dentro. É expressiva, musical. O homem a quem pertence é baixo, com um largo sorriso. Ele vem para a porta. — Eu não te disse para deixá-los? Entrem, entrem.
— Oi, Rafi — ela responde, seu alívio óbvio. — Quatro, este é Rafi. Ele é um homem importante na fronteira.
— Prazer em conhecê-lo — diz Rafi, e ele acena para que nós o sigamos.
No interior há uma sala grande e aberta iluminada por fileiras de velas e lanternas. Há mobiliário de madeira espalhados em todos os lugares. Todas as mesas vazias, menos uma.
Uma mulher senta-se no fundo da sala, e Rafi desliza na cadeira ao lado dela. Apesar de não fazer terem a mesma aparência – ela tem o cabelo vermelho e uma figura generosa; as feições dele são escuras e seu corpo, magro como um cabo – eles têm o mesmo tipo de olhar, como duas pedras lavradas pelo mesmo cinzel.
— Armas sobre a mesa — diz Rafi.
Desta vez Nita obedece, colocando a faca na borda da mesa bem na frente dela. Ela se senta. Eu faço o mesmo. Do outro lado de nós, a mulher se entrega uma arma.
— Quem é este? — a mulher pergunta, sacudindo a cabeça em minha direção.
— Este é meu sócio — Nita responde. — Quatro.
— Que tipo de nome é “Quatro”? — Ela não pergunta com um sorriso de escárnio, da forma como as pessoas muitas vezes me fazem essa pergunta.
— O tipo que você tem dentro de uma cidade experimento — Nita responde — por ter apenas quatro medos.
Ocorre-me que ela poderia ter me apresentado com esse nome apenas para ter a oportunidade de compartilhar de onde eu sou. Isso lhe dá algum tipo de vantagem? Faz-me de mais confiança para estas pessoas?
— Interessante — a mulher bate na mesa com o dedo indicador. — Bem, Quatro, meu nome é Mary.
— Mary e Rafi lideram a filial Centro-Oeste de um grupo rebelde de GDs — diz Nita.
— Chamá-la de “grupo” nos faz parecer como velhinhas jogando cartas — Rafi diz suavemente. — Estamos mais para um levante. Nosso alcance se estende por todo o país – há um grupo para cada área metropolitana que existe, e os superintendentes regionais para o Centro-Oeste, Sul e Leste.
— Existe um Oeste? — Eu pergunto.
— Não mais — Nita responde calmamente. — O terreno era muito difícil de navegar e as cidades também se espalharam de modo que não era inteligente viver lá depois da guerra. Agora é terra selvagem.
— Então é verdade o que eles dizem — Mary comenta, com os olhos refletindo a luz como lascas de vidro enquanto olha para mim. — As pessoas nas cidade experimento realmente não sabem o que há lá fora.
— É claro que é verdade, por quê? — Nita pergunta.
Fadiga, um peso atrás dos meus olhos, se arrasta para cima de mim de repente. Tenho sido parte de muitos levantes em minha curta vida. Os sem facção, e agora estes GDs, aparentemente.
— Não é para cortar as gentilezas — diz Mary — mas não devemos gastar muito tempo aqui. Não podemos manter as pessoas fora por muito tempo antes que venham farejando.
— Certo — diz Nita. Ela olha para mim. — Quatro, você pode ter certeza de que nada está acontecendo lá fora? Preciso falar com Mary e Rafi privadamente por um tempo.
Se estivéssemos sozinhos, eu perguntaria por que não posso estar aqui quando ela fala com eles, ou por que ela se preocupou em me trazer quando eu poderia ter ficado de guarda do lado de fora o tempo todo. Suponho que eles não concordaram realmente em ajudá-la ainda, e devem ter querido me conhecer por algum motivo. Então, eu só levanto, pego a faca e caminho até a porta, onde o guarda de Rafi observa a rua.
A luta do outro lado da rua acabou. Uma figura solitária encontra-se na calçada. Por um momento, acho que ainda está se movendo, mas então percebo que é porque alguém está vasculhando seus bolsos. Não é uma figura – é um corpo.
— Morto? — pergunto, e a palavra é apenas um murmúrio.
— Sim. Se você não pode se defender aqui, não dura uma noite.
— Por que as pessoas vêm aqui, então? — Eu franzo a testa. — Por que apenas não voltam para as cidades?
Ele fica quieto por tanto tempo que acho que não deve ter ouvido a minha pergunta. Vejo o ladrão virar os bolsos do morto do avesso e abandonar o corpo, deslizando em um dos prédios próximos.
Finalmente, a guarda de Rafi fala:
— Aqui há uma chance de que, se você morrer, alguém vai se importar. Como Rafi, ou um dos outros líderes — o guarda diz. — Nas cidades, se você for morto, com certeza ninguém vai dar a mínima, não se você é um GDs. O pior crime que eu já vi um GP ser julgado foi matar um GD por “homicídio culposo”. Besteira.
— Homicídio culposo?
— Isso significa que o crime é considerado um acidente — a voz suave e melodiosa de Rafi diz atrás de mim. — Ou pelo menos não tão grave como, por exemplo, assassinato em primeiro grau. Oficialmente, é claro, somos todos tratados da mesma forma, não é? Mas isso raramente é colocado em prática.
Ele está ao meu lado, com os braços cruzados. Eu vejo, quando olho para ele, um rei que examina seu próprio reino, que acredita que é lindo. Olho para a rua, a calçada quebrada e o corpo mole com seus bolsos para fora e as janelas piscando com a luz do fogo, e sei que a beleza que ele vê é a liberdade – a liberdade de ser visto como um homem inteiro em vez de um deficiente.
Vi essa liberdade uma vez que, quando Evelyn acenou para mim dentre os facção, chamando-me para fora da minha facção para me tornar uma pessoa mais completa. Mas era uma mentira.
— Você é de Chicago? — Rafi me pergunta.
Concordo com a cabeça, ainda olhando para a rua escura.
— E agora que você está fora? Como o mundo parece para você?
— Quase o mesmo. As pessoas só estão divididas por coisas diferentes, lutando guerras diferentes.
Os passos de Nita fazem o assoalho ranger, e quando viro, ela está de pé bem atrás de mim, as mãos enterradas nos bolsos.
— Obrigado por organizar isso — diz Nita, acenando para Rafi. — É hora de ir.
Fazemos o nosso caminho para a rua de novo, e quando viro para olhar para Rafi, ele tem a mão para cima, dando um adeus.

+ + +

À medida que caminhamos de volta para o caminhão, ouço gritos de novo, mas desta vez são os gritos de uma criança. Passo por sons soluçantes e choramingantes e penso em quando eu era mais jovem, agachado no meu quarto, limpando o nariz em uma das mangas. Minha mãe costumava esfregar os punhos com uma escova antes jogá-las na lavadora. Ela nunca disse nada sobre isso.
Quando entro no caminhão, já me sinto entorpecido deste lugar e de sua dor, e estou pronto para voltar ao sonho do complexo, ao calor, à luz e à sensação de segurança.
— Estou tendo dificuldade para entender por que este lugar é preferível à vida da cidade — eu digo.
— Eu só estive em uma cidade que não era um experimento uma vez — Nita fala. — Há eletricidade, mas com um sistema racionado – cada família só recebe poucas horas por dia. O mesmo com a água. E há muitos crimes, todos atribuídos às deficiências genéticas. Há polícia, também, mas eles não podem fazer muito.
— Assim, o Centro é facilmente o melhor lugar para se viver, então.
— Em termos de recursos, sim. Mas o mesmo sistema social que existe nas cidades também existe no complexo, é apenas um pouco mais difícil de ver.
Vejo a fronteira desaparecer no espelho retrovisor, diferente dos edifícios abandonados em torno dele apenas pela sequência de luzes elétricas drapeadas sobre a rua estreita.
Nós dirigimos passando por casas escuras, as janelas fechadas com tábuas, e eu tento imaginá-las limpas e polidas, como devem ter sido em algum momento no passado. O jardim uma vez deve ter sido aparado e verde, as janelas uma vez brilharam à noite. Imagino que a vida vivida aqui fosse pacífica, calma.
— Sobre o que você veio até aqui conversar com eles, exatamente?
— Eu vim para solidificar nossos planos — Nita responde. Percebo, no brilho da luz do painel, que existem alguns cortes em seu lábio inferior, onde ela passou muito tempo mordendo. — E eu queria que eles o conhecessem, para dar um rosto às pessoas dentro dos experimentos nas facções. Mary costumava estar desconfiada que pessoas como você estavam na verdade em conluio com o governo, o que obviamente não é verdade. Rafi, sem dúvida... foi a primeira pessoa a me dar provas de que o Centro, o governo, estava mentindo para nós sobre a nossa história.
Ela faz uma pausa depois disso, como se fosse me ajudar a sentir o peso, mas eu não preciso de tempo, silêncio ou espaço para acreditar nela. Meu governo mentiu para mim durante toda a minha vida.
— O Centro fala sobre esta idade de ouro da humanidade antes das manipulações genéticas em que todos eram geneticamente puros e tudo estava em paz. Mas Rafi me mostrou antigas fotografias de guerra.
Espero uma batida.
— E então?
— Então? — Demanda Nita, incrédula. — Se as pessoas geneticamente puras causavam guerra e devastação total no passado com a mesma magnitude que as pessoas geneticamente deficientes supostamente fazem agora, então qual é a base para pensar que precisamos gastar tantos recursos e tanto tempo trabalhando para corrigir a deficiência genética? Qual é a utilidade dos experimentos, exceto para convencer as pessoas certas de que o governo está fazendo algo para tornar as nossas vidas melhores, apesar de não ser isso?
A verdade muda tudo – não foi por isso que Tris aliou-se com o meu pai, porque ela estava tão desesperada para obter o vídeo de Edith Prior? Ela sabia que a verdade, qualquer que fosse, mudaria a nossa luta, mudaria para sempre as nossas prioridades. E aqui, agora, uma mentira mudou a luta, uma mentira deslocou as prioridades para sempre. Em vez de trabalhar contra a pobreza ou o crime que surgiu desenfreado sobre este país, essas pessoas optaram por trabalhar contra as deficiências genéticas.
— Por quê? Por que gastar tanto tempo e energia lutando contra algo que não é realmente um problema? — Eu pergunto, de repente frustrado.
— Bem, as pessoas que lutam agora provavelmente lutam contra isso porque foram ensinados que é um problema. Essa é outra coisa que Rafi me mostrou – exemplos da propaganda do governo sobre danos genéticos. Mas inicialmente? Eu não sei. Provavelmente por dezenas de coisas. O preconceito contra GDs? Controle, talvez? Controlar a população geneticamente deficiente para ensiná-los que há algo errado com eles, e controlar a população geneticamente pura, ensinando eles que estão curados e inteiros? Essas coisas não acontecem durante a noite, e não acontecem por apenas uma razão.
Eu me inclino para o lado, minha cabeça contra a janela fria, e fecho os olhos. Há muita informação zumbindo no meu cérebro para me concentrar em qualquer parte individual, de modo que eu desisto de tentar e me deixo divagar.
No momento em que estou atravessando o túnel e acho a minha cama, o sol está prestes a nascer, e o braço de Tris está pendurado sobre a borda da cama de novo, a ponta dos dedos roçando o chão.
Sento-me em frente a ela por um momento, observando seu rosto adormecido e pensando no que nós concordamos naquela noite no Parque Millennium: sem mais mentiras. Ela me prometeu, e eu prometi a ela. E se eu não lhe disser sobre o que eu vi e ouvi hoje à noite, estarei indo contra essa promessa. E para quê? Para protegê-la? Para proteger Nita, uma menina que mal conheço?
Puxo o cabelo dela longe de seu rosto, delicadamente, para não acordá-la.
Ela não precisa da minha proteção. Ela é forte o suficiente por si própria.

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