Depois de passarem pela alfândega no Aeroporto Charles de Gaulle, Amy sentiu como se tivesse acabado de perder uma briga com um tornado.
Havia aguentado oito horas no avião, enfiada entre Dan e Nellie, ambos com o volume do fone de ouvido alto demais. Dan assistia a filmes. Nellie ouvia música e folheava livros de culinária francesa com imagens coloridas de caracóis e fígados de ganso. Enquanto isso, Amy tentara se encolher e ler seus próprios livros. Ela comprara seis na Filadélfia, mas só conseguira terminar uma biografia de Benjamin Franklin e dois guias turísticos de Paris. Para ela, isso era péssimo. Cada músculo de seu corpo doía. Seu cabelo estava um ninho de rato. Suas roupas cheiravam a lasanha de avião, que Dan tinha derramado nela durante o voo. E o pior de tudo, não tinha dormido nada, pois quanto mais lia, mais começava a se formar em sua mente uma ideia a respeito de Franklin e de Paris – e essa ideia a amedrontava.
Na fila da alfândega, Amy teve certeza de que ia entrar em pânico quando o oficial perguntou pelos pais deles, mas balbuciou a mentira que tinha ensaiado com o irmão: que os pais estavam vindo num voo mais tarde. A presença de Nellie pareceu tranquilizar o oficial, principalmente quando ela começou a responder às perguntas dele em francês. O oficial concordou com a cabeça, carimbou os passaportes e deixou que eles passassem.
— Nellie! — disse Dan. — Você fala francês?
— Lógico. Minha mãe dava aula de francês. Ela era, tipo, francesa.
— Achei que sua família fosse da Cidade do México.
— Só meu pai. Eu cresci trilíngue.
— Que incrível — disse Amy.
Na verdade ela estava com inveja, pois gostaria de saber outras línguas, mas nem adiantava tentar aprender. Ela não conseguia lembrar nem as cores e números em espanhol, matéria da pré-escola.
— Não é tão difícil — Nellie garantiu. — Depois que você já sabe duas línguas, aprender três ou quatro ou cinco é fácil.
Amy não teve certeza se ela estava falando sério, contudo eles continuaram passando pela alfândega. Pegaram a bagagem, trocaram os dólares por euros num quiosque e avançaram pelo saguão do aeroporto.
Amy se sentiu totalmente perdida com tantas placas em francês. A luz da manhã entrava pelas janelas, embora ela ainda sentisse que era meia-noite. Mais adiante no corredor havia uma pequena multidão reunida. Pessoas disparavam flashes de câmera e gritavam perguntas para alguém que Amy não conseguia enxergar.
— Oh, paparazzi! — disse Nellie. — Vai ver é tipo o Kanye West!
— Peraí! — Amy disse, mas Nellie nem prestou atenção. Eles abriram caminho em meio à multidão com um monte de excusez-moi. Quando chegaram mais perto, Amy parou no meio do caminho. — É Jonah Wizard.
Ele estava atravessando a aglomeração, dando autógrafos, enquanto seu pai andava atrás como um guarda-costas. Jonah vestia jeans folgados, uma jaqueta de couro preto por cima de uma regata branca e, como sempre, meia tonelada de acessórios de prata. Parecia bem-disposto e descansado, como se o voo dele tivesse sido muito melhor que o de Amy.
— Le Wizard!
Os repórteres vieram com uma enxurrada de perguntas. Para a surpresa de Amy, Jonah respondeu em francês.
Havia tanta gente que Amy queria se fundir na parede, mas Jonah parecia relaxado. Abriu um sorriso brilhante para o povo e disse alguma coisa que fez todos darem risada, então vasculhou os rostos na multidão e fixou o olhar em Amy.
— Opa! — ele chamou. — Meus brothers!
Amy ficou morrendo de vergonha. Jonah começou a abrir caminho na direção deles e toda aquela gente virou para ver com quem ele estava falando.
— Ah, tá brincando? — disse Nellie. — Vocês conhecem Jonah Wizard?
— Somos parentes — Dan resmungou. — Distantes.
Pareceu que Nellie ia desmaiar. De repente, Jonah estava bem na frente deles, apertando a mão de Amy, batendo nas costas de Dan e autografando a camiseta de Nellie, e as câmeras começaram a tirar fotos deles.
Não olhem pra mim! Amy queria gritar. Estou coberta de lasanha! A voz dela não funcionou. Ela tentou recuar; mas suas pernas estavam congeladas.
— Jonah! — disse o pai dele. — Melhor a gente ir.
— Firmeza. — Jonah piscou para Amy. — Cheguem mais, primos. Preciso trocar uma ideia com vocês.
O pai de Jonah ameaçou protestar, porém Jonah colocou o braço sobre os ombros de Amy e a conduziu pelo terminal, com Dan, Nellie e uma multidão de paparazzifrenéticos em seu encalço, tirando fotos. Amy teve certeza de que ia morrer de vergonha a qualquer segundo, mas de algum modo eles conseguiram sair do aeroporto.
O dia estava quente e nublado. Nuvens de tempestade se agrupavam no horizonte. Uma limusine preta estava esperando na rua.
— Melhor... melhor não — Amy começou a protestar.
Ela se lembrou do aviso do senhor Mclntyre: Não confie em ninguém.
— Tá brincando? — Nellie disse. — Uma carona de limusine com Jonah Wizard? Vamos!
Ela praticamente mergulhou para o interior do carro. Alguns minutos depois, estavam todos seguindo rumo ao coração de Paris.
— Cara, eu adoro esta cidade — disse Jonah.
A limusine dele tinha assentos traseiros em que os passageiros ficavam de frente uns para os outros. Jonah e seu pai estavam sentados de um lado. Amy, Dan e Nellie, do outro. O pai de Jonah digitava anotações em seu BlackBerry e de vez em quando levantava o rosto e fazia cara feia para Amy, como se não conseguisse acreditar que ela ainda estava ali.
Lá fora passavam prédios de pedra dourada, as janelas transbordando de floreiras. Os cafés estavam lotados, com todas as cadeiras viradas para a rua como se as pessoas estivessem esperando um desfile. O ar cheirava a café e pão assado. O céu nublado dava a tudo uma luz insólita – como se a cidade não fosse completamente real.
— Sabiam que minha audiência na tevê é ainda melhor aqui que nos Estados Unidos? — Jonah disse.
— Mais precisamente 18 pontos mais alta — complementou o pai dele.
— E meu novo álbum, Gangsta Life, é o número 3 na lista dos mais vendidos na França.
— Número 2 — corrigiu o pai. — E está subindo.
— Oh, puxa, eu adoro seu álbum! — Nellie disse.
— Valeu — disse Jonah. — Agora fica quietinha.
Pareceu que Nellie tinha levado um tapa.
— Ei! — Dan gritou. — Isso não é legal!
— O quê? — disse Jonah. — Ela não é uma Cahill. Não vou falar com ela.
Amy ficou tão chocada que nem conseguiu responder, mas Jonah continuou contando vantagem.
— Como eu estava dizendo, esta cidade me pertence. Minha galeria de arte abriu semana passada na Rue de la Paix. Minhas aquarelas estão sendo vendidas a 6 mil euros cada. Estou até lançando um livro infantil.
O pai dele sacou uma cópia e mostrou para eles. Dan espremeu os olhos para ler a capa.
— Le... Li'l Gangsta livre instantané?
— Quer dizer “o livro pop-up do pequeno gângster” — disse o pai de Jonah com orgulho.
Jonah espalmou as mãos.
— Entenderam o que eu disse? Eu sou mais popular que... — ele deu um sorriso maroto — ... Benjamin Franklin.
Alguma coisa disparou dentro de Amy. Ela passara várias horas lendo sobre Benjamin Franklin e estava mais convencida do que nunca de que ele era a pessoa mais incrível que já existira. Pensar que eles talvez fossem parentes a deixava muito orgulhosa. Agora ouvir aquele imbecil; aquele convencido; aquela celebridade de tevê se comparar com... Ela ficou tão brava que se esqueceu de sua timidez.
— B-Benjamin Franklin era muito mais importante que você, Jonah! Ele foi o americano mais famoso que já esteve em Paris. Quando ele veio para cá, as pessoas usavam o retrato dele em colares...
— Tipo esse? — Jonah tirou um colar comemorativo com uma foto sua.
— E... vestiam roupas iguais às dele!
— Ahã. A grife Jonah Wizard está indo muito bem nos Champs-Élysées.
Amy rangeu os dentes.
— O rei Luís XVI até colocou o retrato de Franklin num penico!
Jonah olhou para o pai dele.
— Nós temos penicos promocionais?
— Não. — O pai dele tirou o telefone do bolso. — Vou dar um telefonema.
Jonah fez um gesto com a cabeça.
— Pois é, amigos, eu sou mesmo a maior sensação desde Benjamin Franklin, e é por isso que eu sou a pessoa que naturalmente vai descobrir os segredos dele.
— Se o seu ego fosse maior — resmungou Dan — poderíamos usá-lo como balão de ar quente.
Jonah ignorou.
— Veja, Amy, você é uma garota esperta. Você conhece os clãs da família, né? Os Cahill do bem. Os Cahill do mal. Eu sou...
— Jonah! — O pai dele cobriu o telefone com a mão. — Achei que já tínhamos discutido...
— Fica sussa, pai. Só tô dizendo que eu uso os meus talentos pra criar arte. Não sei o que é esse tesouro final, mas vou usar ele pra pôr mais beleza no mundo! Não sou que nem esses Lucian, cara. Eles são do mal!
— Mas... Benjamin Franklin era um Lucian. — A mente de Amy funcionava a mil. — Nós vimos o brasão das cobras...
— Certo, então de vez em quando um Lucian acerta em alguma coisa — Jonah fez um gesto de desprezo. — Mas hoje eu sou o cara do bem. Você precisa entender isso, Amy.
— Só porque você faz livros infantis de gângster? — Dan disse bufando.
— Exatamente! Olha, vocês acham que foi fácil pra mim crescer rico e famoso em Beverly Hills? — Jonah fez uma pausa. — Na verdade, foi fácil. A questão é que eu ralo muito pra continuar assim. A fama é uma coisa que você precisa estar sempre construindo, baby. Não é verdade, pai?
— É verdade, filho!
— Eu já tenho discos, um programa de tevê, uma grife e livros... Então pra onde eu posso crescer? Vou dizer pra onde: eu preciso ganhar essa competição. Vai ser demais pra minha carreira! Se nós trabalharmos juntos, descolo uma porcentagem pra vocês.
— Tio Alistair nos ofereceu ajuda também — Amy resmungou. — Não deu certo.
— Alistair Oh? — Jonah bufou de desprezo. — Aquele velho mané deve ter contado pra vocês como ele inventou o burrito pra micro-ondas, né? Mas ele não contou que perdeu a fortuna dele em investimentos ruins. Ele está quase falido, mina. Ele devia ter pegado o 1 milhão de dólares dele e ido embora, mas tem essa piração de que as 39 pistas vão reconstruir a reputação dele. Não prestem atenção no que ele diz. Se vocês se unirem a mim, podemos vencer todo mundo. Podemos até dar uma lição naqueles traíras do Ian e da Natalie. Você precisa tomar cuidado aqui, Amy. Paris é território dos Lucian, você sabe. Isso já faz séculos.
— Jonah — disse o pai dele — você não devia se envolver com essas pessoas. Eles não têm carisma e vão afundar sua audiência.
— Cuide dos penicos, pai. Eu cuido disso. — Ele lançou a Amy seu sorriso mais irresistível. — Vamos, gatinha. Nós dois sabemos que a próxima pista tem a ver com Ben Franklin. Poderíamos ajudar um ao outro.
O que a incomodava não era que Jonah fosse um imbecil arrogante, mas o fato de, no fim das contas, ela estar tentada pela oferta. Era difícil de resistir à ideia de dar o troco em Natalie e Ian. E Amy não conseguia deixar de se sentir lisonjeada com a atenção que alguém como Jonah Wizard estava dispensando a ela. Mesmo assim... lembrou do jeito como ele falara com Nellie e como ele tinha sido legal com eles no aeroporto, mas era tudo fingimento, como se eles fossem apenas objetos de cena para as câmeras.
— Por que... por que você quer fazer acordo com a gente? — ela perguntou, hesitante. — O que nós temos de tão especial?
— Nada! — Jonah riu. — Isso não é demais? Vocês são Cahill, mas não têm nenhum talento! Se eu for tentar procurar uma pista em qualquer lugar, a mídia vai ficar na minha cola, com a galera tirando fotos e me pedindo entrevistas. Eu não posso fazer nada em segredo. Vocês... vocês são tão insignificantes que podem ir a lugares que eu não posso. Ninguém se importa com vocês.
— Muito obrigado — resmungou Dan.
— O que foi que eu disse? — Jonah parecia surpreso. — Ei, se o problema é dinheiro, eu tenho um montão. Posso até dar de brinde um dia no estúdio de Quem quer ser um gangsta? Melhor que isso, impossível.
— Não, valeu — Amy e Dan disseram juntos.
— Ah, qual é. Pelo menos pensem a respeito, pode ser? Onde é o hotel de vocês? Vou deixar vocês lá.
Amy estava prestes a inventar uma desculpa qualquer quando olhou de relance pela janela. Ela viu uma coisa que gelou seu sangue. Era impossível. O que ela estava fazendo ali? E estava mesmo carregando...
— Bem aqui! — ela disse. — Pare o carro, por favor!
O motorista parou.
Jonah olhou pela janela e franziu a testa. Eles estavam em frente a um hotel de aspecto um tanto indecente, chamado Maison des Gardons. O toldo estava carcomido e o porteiro parecia bêbado.
— Aqui, é? Cara, vocês são roots. Eu vou ficar no Ritz. Se vocês mudarem de ideia, sabem onde me encontrar. — disse Jonah.
Amy arrastou Nellie e Dan para fora do carro. O motorista jogou as malas deles na calçada e a limusine dos Wizard partiu.
— Que cara chato! — disse Nellie. — Ele não é assim na tevê!
Dan olhou para a Maison des Gardons.
— Não diga que a gente vai ficar aqui de verdade...
— Precisei fazer ele parar o carro. Nellie, reserve quartos para hoje à noite.
— Aqui? — ela protestou. — Mas...
— O nome do hotel tem “gardens” no meio. Um hotel que tem jardins não pode ser tão ruim.
— Hmmm, isso não quer dizer...
— Faz isso, por favor! — Amy se sentia estranha sendo tão mandona, mas não tinha tempo para discutir. — Encontramos você aqui de novo, daqui a... Não sei, duas horas.
— Por quê? — disse Dan. — Aonde a gente vai?
— Acabei de ver uma velha amiga. Vamos!
Ela o puxou para atravessar a rua, torcendo para não ser tarde demais. Com alívio, ela avistou seu alvo.
— Ali! — Amy apontou. — De vermelho!
Meio quarteirão adiante, uma mulher de xale vermelho andava num passo apressado. Havia algo enfiado embaixo do braço dela. Alguma coisa fina, quadrada, vermelha e branca.
Dan arregalou os olhos.
— Essa não é...
— Irina Sposky — disse Amy — E ela está com o nosso Almanaque do Pobre Richard. Siga aquela russa!
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