sábado, 22 de março de 2014

Capítulo 23

Não volto para os dormitórios naquela noite. Dormir no mesmo quarto das pessoas que me atacaram só para parecer corajosa seria estupidez. Quatro dorme no chão e eu em sua cama, sobre sua colcha, respirando o perfume de sua fronha. Cheira a detergente e alguma coisa pesada, doce, e distintamente masculina.
O ritmo de sua respiração diminui e eu me ergo para ver se ele já adormeceu. Ele está deitado de bruços com um braço ao redor de sua cabeça. Seus olhos estão fechados, os lábios entreabertos. Pela primeira vez, ele parece tão jovem quanto é, e eu me pergunto quem ele realmente é. Quem ele é quando não é Audacioso, não é um instrutor, não é o Quatro, não é nada em particular?
Quem quer que ele seja, eu gosto dele. É mais fácil admitir isso para mim mesma agora, no escuro, depois de tudo que aconteceu. Ele não é doce, gentil ou particularmente delicado. Mas ele é esperto e corajoso, além disso, mesmo quando me salvou, me tratou como se eu fosse forte. Isso é tudo o que preciso saber.
Observo os músculos de suas costas expandindo e contraindo até que adormeço.
Acordo em meio a dores. Tremo enquanto me levanto, segurando minhas costelas, e caminho até o pequeno espelho na parede oposta. Sou quase baixa demais para ver meu reflexo, mas quando fico na ponta dos pés, consigo ver meu rosto. Como esperado, há um machucado azul escuro na minha bochecha. Odeio a ideia de escorregar para o refeitório desse jeito, mas as instruções de Quatro continuam em minha cabeça. Devo consertar minhas amizades. Eu preciso da proteção de parecer fraca.
Amarro meu cabelo em um nó atrás da cabeça. A porta se abre e Quatro entra, uma toalha na mão e seu cabelo brilhando com a água do banho. Sinto um arrepio em meu estômago quando observo a linha de pele que aparece acima de seu cinto quando ele levanta a mão para secar o cabelo, e preciso me obrigar a olhar para seu rosto.
— Oi — eu digo. Minha voz soa apertada. Desejo que não fosse assim.
Ele toca meu machucado com as pontas dos dedos.
— Nada mal — ele diz. — Como está sua cabeça?
— Bem.
É mentira – minha cabeça está latejando. Passo os dedos pelos inchaços e sinto arrepios de dor por todo couro cabeludo. Poderia ser pior. Eu poderia estar flutuando no rio.
Cada músculo do meu corpo se contrai quando ele corre as mãos pelas minhas costelas, onde eu levei chutes. Ele faz isso casualmente, mas não posso me mover.
— E suas costelas? — ele pergunta com a voz baixa.
— Só dói quando respiro.
Ele sorri.
— Não tem muito que você possa fazer a respeito disso.
— Peter provavelmente daria uma festa caso eu parasse de respirar.
— Bem — ele diz — eu só iria se tivesse bolo.
Eu rio, e estremeço, segurando sua mão para firmar minha caixa torácica. Ele retira sua mão devagar, seus dedos deslizando pela minha lateral. Quando seus dedos deixam minha pele, sinto uma dor no peito. Uma vez que esse momento acabar, terei que lembrar o que aconteceu noite passada. E quero ficar aqui com ele.
Ele balança a cabeça e lidera o caminho até a saída.
— Eu vou primeiro — ele diz quando paramos fora da sala de refeições. — Vejo você em breve, Tris.
Ele atravessa a porta e eu estou só. Ontem ele me disse que acredita que eu deveria fingir ser fraca, mas ele estava errado. Eu já sou fraca. Me apoio contra a parede e pressiono minha testa contra minhas mãos. É difícil respirar fundo, então eu tomo pequenos fôlegos. Não posso deixar isso acontecer. Eles me atacaram para me fazer sentir fraca. Eu posso fingir que eles conseguiram para me proteger, mas não posso deixar que isso se torne verdade.
Afasto-me da parede e caminho para dentro do refeitório sem pensar duas vezes. Alguns passos e me lembro de que preciso parecer acovardada, então diminuo minhas passadas e me apoio na parede, mantendo a cabeça baixa. Uriah, sentado à mesa próxima a Will e Christina, levanta a mão e acena para mim. E então ele a abaixa.
Sento perto de Will.
Al não está lá – ele não está em lugar algum.
Uriah desliza para o lugar perto de mim, deixando seu muffin meio comido e seu copo d’água na outra mesa. Por um segundo, os três apenas me encaram.
— O que aconteceu? — Will pergunta, baixando a voz.
Olho por cima de seu ombro, para a mesa atrás de nós. Peter está sentado lá, comendo uma torrada e cochichando alguma coisa para Molly. Minha mão aperta a borda da mesa. Eu quero que ele sofra. Mas agora não é a hora.
Drew está desaparecido, isso significa que ainda está na enfermaria. Uma satisfação doentia passa por mim devido a esse pensamento.
— Peter, Drew... — eu digo silenciosamente. Seguro minhas costelas enquanto me estico pela mesa para alcançar um pedaço de torrada. Isso dói. Então eu estico a mão e me deixo estremecer enquanto me inclino para frente. — E... — engasgo — e Al.
— Meu Deus! — Christina diz, seus olhos arregalados.
— Você está bem? — Uriah pergunta.
Os olhos de Peter encontram os meus através da sala de refeições, e eu preciso me forçar a olhar para longe. Mostrar a ele que ele me assusta traz um gosto amargo a minha boca, mas eu preciso fazer isso. Quatro estava certo. Preciso fazer tudo que puder para garantir que não serei atacada novamente.
— Na verdade não — respondo.
Meus olhos ardem, e não é fingimento, ao contrário da minha postura fingida. Dou de ombros. Agora acredito no aviso de Tori. Peter, Drew e Al estavam prontos para me jogar dentro do abismo por ciúmes – por que é tão inacreditável os líderes da Audácia cometerem assassinato?
Sinto-me desconfortável, como se estivesse usando a pele de outra pessoa. Se não for cuidadosa, posso morrer. Não posso sequer confiar nos líderes da minha facção. Minha nova família.
— Mas você é apenas... — Uriah franze os lábios. — Não é justo. Três contra um?
— É, e Peter acredita muito no que é justo. Por isso ele surpreendeu Edward enquanto ele dormia e o apunhalou no olho — Christina bufa e balança a cabeça. — Al também? Você tem certeza, Tris?
Encaro meu prato. Eu sou o próximo Edward. Mas ao contrário dele, eu não vou embora.
— Sim — eu digo. — Tenho certeza.
— Tem que ter sido por desespero — Will diz — ele tem agido... Eu não sei. Como uma pessoa diferente. Desde que o estágio dois começou.
Então Drew entra sorrateiramente na sala de refeições. Deixo minha torrada cair, e minha boca fica aberta.
Dizer que ele estava ferido seria eufemismo. Seu rosto está inchado e roxo. Seu lábio está partido e com um corte em sua sobrancelha. Ele mantém os olhos abaixados enquanto caminha até sua mesa, nem mesmo levantando-os para olhar para mim. Olho ao redor da sala para Quatro. Ele está com o sorriso de satisfação nos lábios que eu queria ter.
— Foi você quem fez aquilo? — Will sibila.
Balanço minha cabeça negativamente.
— Não. Alguém... não vi quem foi... me encontrou logo antes... — Engulo em seco. Dizer isso em voz alta torna ainda pior, faz com que seja real — ... de eu ser jogada no abismo.
— Eles iam matar você? — Christina diz em voz baixa.
— Talvez. Eles devem ter planejado me balançar sobre ele só para me assustar — dou de ombros. — Funcionou.
Christina me dá um olhar triste. Will apenas encara a mesa.
— Precisamos fazer alguma coisa a respeito disso — Uriah diz em voz baixa.
— O quê, tipo, bater neles? — Christina sorri. — Parece que isso já foi providenciado.
— Não. Essa dor eles podem superar — Uriah replica. — Temos que tirá-los do ranking. Isso vai prejudicar o futuro deles. Permanentemente.
Quatro se levanta e fica parado entre as mesas. As conversas param abruptamente.
— Transferidos. Nós vamos fazer uma coisa diferente hoje — ele diz. — Sigam-me.
Levantamos, e a testa de Uriah se enruga.
— Seja cuidadosa — ele diz para mim.
— Não se preocupe — Will diz. — Nós vamos protegê-la.

+ + +

Quatro nos leva para fora da sala de refeições e através dos caminhos ao redor da Caverna. Will está ao meu lado esquerdo e Christina à minha direita.
— Eu nunca realmente disse que sentia muito — Christina diz silenciosamente. — Por pegar a bandeira quando você merecia. Não sei o que havia de errado comigo.”
Não tinha certeza se era inteligente perdoá-la ou não, perdoar qualquer um deles, depois do que eles me disseram quando suas colocações apareceram ontem. Mas minha mãe me diria que pessoas são falhas e que eu deveria ser indulgente com eles. E Quatro me disse para contar com meus amigos.
Eu não sei com quem eu posso realmente contar, porque não sei quem são meus verdadeiros amigos. Uriah e Marlene, que estavam ao meu lado mesmo quando eu parecia forte, ou Christina e Will, que sempre me protegeram quando eu parecia fraca?
Quando seus grandes olhos castanhos encontram os meus, eu concordo.
— Vamos apenas esquecer isso.
Eu queria continuar com raiva, mas preciso deixar isso de lado.
Escalamos mais alto do que eu já tinha ido antes, até o rosto de Will ficar branco sempre que olha para baixo. Na maior parte do tempo eu gosto de alturas, então agarro o braço de Will como se precisasse de ajuda – mas na verdade, eu estou ajudando-o. Ele sorri para mim agradecidamente.
Quatro se vira e anda de costas alguns passos – de costas, em um caminho apertado sem nenhuma grade. Quão bem ele conhece esse lugar?
Ele olha para Drew, que fica para trás do grupo e diz:
— Pegue o ritmo, Drew!
É uma piada cruel, mas é difícil para mim suprimir um sorriso. Isso é, até os olhos de Quatro se deslocarem até o meu braço entrelaçado ao de Will, e todo o humor ser drenado deles. A expressão dele manda um calafrio através de mim. Ele está com... ciúmes?
Ficamos cada vez mais próximos ao teto de vidro, e pela primeira vez em dias, eu vejo o sol. Quatro caminha por um lance de escadas guiando-nos por um buraco no teto. As escadas rangem sob meus pés, e eu olho para baixo a fim de ver a Caverna e o abismo abaixo de nós.
Andamos através do vidro, que agora é mais um chão do que teto, até uma sala cilíndrica com paredes de vidro. Os prédios ao redor estão meio destruídos e parecem estar abandonados, o que é provavelmente o motivo para eu nunca ter descoberto onde era o complexo da Audácia antes. O setor da Abnegação também está bem longe.
Os membros da Audácia se espalham através da sala de vidro, conversando em grupos. No final da sala, dois membros lutam com gravetos, rindo quando um deles erra e acerta apenas o ar. Acima de mim, duas cordas se esticam atravessando a sala, uma alguns metros mais alta que a outra. Elas provavelmente têm alguma coisa a ver com as façanhas pelas quais os integrantes da Audácia são famosos.
Quatro nos guia por outra porta. Além dela, está um espaço enorme com paredes grafitadas e canos expostos. A sala é iluminada por uma série de antigos tubos fluorescentes com tampas de plástico – eles devem ser antigos.
— Isso... — diz Quatro, seus olhos brilhando na luz pálida — é um tipo diferente de simulação conhecido como a paisagem do medo. Ele foi desativado para nossos propósitos, então não será assim que estará da próxima vez que vocês o virem.
Atrás dele, a palavra Audácia está grafitada com letras vermelhas artisticamente elaboradas na parede de concreto.
— Através da simulação de vocês, nós coletamos dados sobre seus maiores medos. A paisagem do medo acessa esses dados e os apresenta a uma série de obstáculos virtuais. Alguns desses obstáculos serão medos que vocês já experimentaram em suas simulações. Alguns podem ser novos medos. A diferença é que você está ciente, na paisagem do medo, que isso é uma simulação, então vocês terão total juízo de vocês enquanto passam por ela.
Isso significa que todo mundo será Divergente na paisagem do medo. Não sei se isso é um alívio, porque eu não posso ser descoberta, ou um problema, porque eu não terei a vantagem.
Quatro continua:
— O número de medos que vocês enfrentarão na paisagem varia de acordo com quantos vocês tem.
Quantos medos eu tenho? Penso em enfrentar os corvos novamente e estremeço, apesar do ar quente.
— Eu lhes disse antes que o terceiro estágio da iniciação foca o preparo mental — ele diz.
Eu lembro quando ele falou sobre isso. No primeiro dia. Logo antes de colocar uma arma na cabeça de Peter. Gostaria que ele tivesse puxado o gatilho.
— Isso porque vocês precisam controlar tanto seus corpos quanto suas mentes, a fim de combinar as habilidades físicas que aprenderam no estágio um com o domínio emocional visto no estágio dois. Essa capacidade vai ajudar a vocês a manter a cabeça no lugar.
Um dos tubos fluorescentes acima da cabeça de Quatro se contrai e pisca. Quatro para de rastrear o grupo de iniciados e foca seu olhar em mim.
— Na próxima semana, vocês irão passar por suas paisagens do medo o mais rápido possível, para serem avaliados por líderes da Audácia. Esse será seu teste final, e irá determinar sua colocação no terceiro estágio. Da mesma forma como o estágio dois tinha um peso maior do que o estágio um, o estágio três contará mais pontos entre todos. Entenderam?
Todos nós concordamos. Mesmo Drew, que faz isso parecer doloroso.
Se eu for bem no meu teste final, tenho uma grande chance de conseguir passar para a lista dos dez melhores e, consequentemente, uma boa chance de me tornar membro. De me tornar uma integrante da Audácia. O pensamento quase me deixa tonta de alívio.
— Vocês conseguirão passar por cada um dos obstáculos de um dos dois jeitos. Achando uma forma de se acalmar o bastante até que o simulador registre uma frequência cardíaca calma e normal, ou encontrando uma forma de enfrentar seus medos, que poderá forçar o simulador a seguir em frente. Uma das formas de enfrentar o medo de se afogar é mergulhando cada vez mais fundo, por exemplo — Quatro dá de ombros. — Então, eu sugiro que vocês aproveitem a próxima semana para pensar sobre seus medos e desenvolver estratégias para enfrentá-los.
— Isso não parece justo — Peter diz. — E se alguém tiver apenas sete medos enquanto outro tem vinte? Não é culpa dele.
Quatro o encara por alguns segundos e então ri.
— Você realmente quer falar comigo sobre o que é justo?
Os iniciados se afastam, abrindo caminho enquanto ele caminha até Peter, dobrando os braços e dizendo com uma voz mortal:
— Eu entendo por que você está preocupado, Peter. Os acontecimentos da última noite certamente provaram que você é um covarde miserável.
Peter o encara de volta, sem expressão.
— Então agora todos nós sabemos — Quatro diz calmamente — que você tem medo de uma garota pequena e magra da Abnegação.
Sua boca se curva em um sorriso.
Will coloca seus braços ao meu redor. Os ombros de Christina tremem com uma risada suprimida. E, em algum lugar dentro de mim, eu também sorrio.

+ + +

Quando voltamos para os dormitórios naquela tarde, Al está lá.
Will fica atrás de mim e segura meus ombros – delicadamente, como que para me lembrar que ele está ali. Christina fica perto de mim.
Al tem sombras escuras embaixo dos olhos, e seu rosto está inchado de chorar. Dor apunhala meu estômago quando o vejo. Não consigo me mover. O cheiro de citronela e sálvia, uma vez agradável, torna-se azedo em meu nariz.
— Tris... — Al começa, sua voz partindo. — Posso falar com você?
— Você está brincando? — Will aperta meus ombros. — Você não pode nunca mais chegar perto dela.
— Não vou machucar você. Eu nunca quis... — Al cobre o rosto com as duas mãos. — Eu só queria dizer que eu sinto muito. Sinto muito mesmo. Eu não... Eu não sei o que tem de errado comigo, eu... por favor, me perdoe, por favor...
Ele estica o braço na minha direção como se fosse tocar meu ombro, ou minhas mãos, seu rosto molhado de lágrimas.
Em algum lugar dentro de mim existe uma pessoa misericordiosa e capaz de perdoar. Em algum lugar existe uma garota que tenta entender o que as pessoas estão passando, que aceita que pessoas fazem coisas ruins e que o desespero as leva para lugares sombrios inimagináveis. Posso jurar que ela existe, e ela sofre pelo rapaz arrependido que está na minha frente.
Mas se eu a visse, não seria capaz de reconhecê-la.
— Fique longe de mim — digo. Sinto-me dura e fria, e não estou com raiva, não estou magoada, não estou nada. Digo em voz baixa: — Nunca mais chegue perto de mim novamente.
Nossos olhos se encontram. Os dele estão escuros e opacos. Eu não estou nada.
— Se você o fizer, juro por Deus que vou matá-lo. Seu covarde.

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