Dan sempre quisera andar num carro de polícia, mas não daquele jeito.
Seu peito ainda doía por causa da fumaça. Ele estava sentado no banco de trás da viatura com Saladin no colo e tentava acalmar o chiado em seu peito, porém cada vez que respirava parecia que estava inalando areia.
— Se você tivesse trazido sua bombinha... — Amy o repreendeu.
Mas ele odiava a bombinha. Sentia-se um Darth Cahill ou algo assim. Além disso, fazia um tempão que não tinha um ataque de asma e ele não sabia que iam ficar presos num maldito incêndio.
Dan não conseguia acreditar que a mansão da família tinha sido destruída. Naquele mesmo dia, de manhã, tinha acordado convencido de que Amy e ele herdariam a mansão. Agora não restava nada, só uma montanha fumegante de entulho.
Os detetives da polícia não deram muitas respostas. Parecia um incêndio premeditado, disseram. O fogo se espalhou com muita rapidez para ser um acidente. Eles disseram que William Mclntyre ficaria bem. Incrivelmente, ninguém mais tinha se ferido. Dan contara e Amy retorcia seus cabelos num nó.
— Precisamos de alguém que nos deixe fazer o que quisermos sem fazer muitas perguntas. Alguém adulto o bastante para parecer que está tomando conta de nós, mas não tão rigoroso que vá se tornar um obstáculo. Alguém que seja flexível.
— “Flexível” significa que podemos mentir para ele?
— Prrr — disse Saladin, como se achasse uma boa ideia, contanto que ele ganhasse peixe fresco.
O carro de polícia virou na Rua Melrose e parou em frente ao velho e surrado prédio marrom onde eles moravam.
— É este o endereço? — perguntou a policial.
Ela parecia entediada e irritada.
— É — respondeu Amy. — Quer dizer, sim senhora.
— Tem certeza de que tem alguém em casa? A pessoa que toma conta de vocês?
— Nellie Gomez — disse Dan. — Ela é nossa au p...
Seus olhos se arregalaram. Ele olhou para Amy e soube que ela estava pensando a mesma coisa. Era tão óbvio que até um Holt teria percebido.
— Nellie! — eles disseram juntos.
Os dois saíram da viatura carregando o gato e a caixa de joias e subiram a escada correndo.
***
Nellie estava bem onde Dan imaginou que ela fosse estar: jogada no sofá com os fones de ouvido, sacudindo a cabeça com a música bizarra que ouvia enquanto digitava mensagens de texto no celular. Havia uma pilha de livros de culinária ao seu lado no sofá. No do topo da pilha estava A exótica cozinha mandarim. Dan soltou Saladin para que o gato explorasse o apartamento. Então notou o pote vazio de sorvete, sabor cereja e chocolate – o sorvete dele – jogado na mesinha de centro.
— Ei! — protestou Dan. — Isso era meu!
É claro que Nellie não escutou. Continuou sacudindo a cabeça e digitando no celular até Amy e Dan se postarem bem na frente dela.
Nellie franziu a testa, como se estivesse sendo incomodada porque teria que trabalhar de verdade. Ela tirou um dos fones de ouvido.
— Já voltaram? Opa, mas o que aconteceu? Vocês estão sujões.
— Precisamos conversar — Amy disse.
Nellie piscou, o que era bem legal de se ver, pois seus olhos estavam maquiados com sombra azul e glitter. Ela tinha um piercing novo no nariz, no formato de uma cobra prateada. Dan ficou se perguntando por que ela gostava de ter uma cobra enrolada dentro da narina.
— Precisamos conversar sobre o quê, garota? — ela perguntou.
Amy teve vontade de acertar Nellie com a caixa de joias. Dan sabia que ela odiava quando Nellie a chamava de garota, mas respondeu numa voz educada:
— Nós... nós temos uma proposta para você. Um novo esquema de au pair. Pode dar bastante dinheiro.
Nellie tirou o outro fone de ouvido. Agora eles tinham prendido a atenção dela. Três palavras que sempre funcionavam com Nellie: homens, comida e dinheiro.
Ela ficou de pé. Vestia sua camiseta rasgada da bandeira da Inglaterra, jeans desbotados e sapatos plásticos cor-de-rosa. Seu cabelo parecia um monte de palha molhada – metade preto, metade loiro.
Nelly cruzou os braços e olhou para Amy.
— Ok. Que tipo de esquema?
Dan temeu que Amy fosse congelar, mas ela parecia estar controlando muito bem os nervos. Nellie não era tão intimidadora quanto algumas das au pairs que eles tiveram.
— Há... é uma viagem — disse Amy. — Você seria nossa acompanhante.
Nellie franziu a testa.
— Por que não é sua tia que está me pedindo isso?
— Ah, ela quebrou o pescoço — respondeu Dan num impulso.
Amy fez para ele uma cara de Cala a boca!
— Quebrou o pescoço? — Nellie perguntou.
— Não é grave — disse Dan. — Foi só uma quebradinha. Mas ela... hã, vai ficar no hospital por um tempo. Por isso ela achou melhor nós fazermos uma viagem. Nós falamos com nosso tio Alistair. Ele disse que precisamos de um adulto para ir com a gente.
Essa última parte, pelo menos, era verdade. Dan não sabia direito no que isso ia dar, mas continuou falando. Imaginou que se apenas conseguisse manter Nellie confusa, ela não poderia chamá-lo de mentiroso.
— É essa coisa que nossa família faz — ele disse. — Tipo uma caça ao tesouro. Nós visitamos vários lugares e nos divertimos.
— Lugares tipo quais? — Nellie perguntou.
— Ah, tipo vários. — Dan pensou no mapa na biblioteca secreta de Grace, em todos aqueles alfinetes. — Isso faz parte da brincadeira. Não sabemos todos os lugares no começo. É possível que viajemos pelo mundo inteiro.
Nellie ergueu as sobrancelhas.
— Quer dizer, tipo, de graça?
Amy confirmou com a cabeça, adotando o mesmo método de Dan.
— É, e pode levar meses! Viajar para lugares exóticos cheios de... hã... comida e homens. Mas você não precisa ficar com a gente o tempo todo... só para as coisas de adulto, como comprar passagens de avião e se hospedar em hotéis e coisas assim. Você teria muito tempo livre.
Sim, por favor, pensou Dan. Nellie era legal, mas a última coisa que ele queria era que ela os seguisse muito de perto.
— Quanto vocês vão me pagar? — Nellie disse num tom de suspeita.
Amy abriu a caixa de joias e virou tudo na mesa. A pulseira de pérolas, o anel de diamante e os brincos de esmeralda brilharam.
O queixo de Nellie caiu.
— Oh... meu... Deus. Vocês roubaram isso?
— Não! — disse Amy. — Era da nossa avó! Ela queria que nós fizéssemos essa viagem. Disse isso no testamento dela.
Dan ficou impressionado. Aquilo também não era exatamente uma mentira.
Nellie olhou as joias. Então pegou o celular e discou.
Dan ficou tenso. Teve visões do Serviço Social – o que quer que isso fosse – arrombando a porta, talvez homens com aventais brancos e redes, levando-os para um lar adotivo.
— Alô? — Nellie disse ao telefone. — Pois é, pai, olha só, peguei um serviço novo para a família Cahill.
Pausa.
— É, vão pagar muito bem. Por isso não posso fazer o jantar hoje como prometi. — Nellie pegou o anel de diamante, mas Amy o arrancou da mão dela. — Quanto tempo? Hmmm... nós vamos viajar. Umas semanas. Talvez... meses?
Ela afastou o telefone do ouvido. Do outro lado da linha, seu pai gritava sem parar em espanhol.
— Pai! — disse Nellie. — No, claro. Mas o semestre só começa daqui a um mês, e são só uns cursos meio pentelhos. Eu poderia compensar na primavera e...
Outro jorro de espanhol furioso.
— Ué, se você deixasse eu estudar culinária em vez de fazer essa faculdade imbecil...
Os berros do pai dela ficaram um pouco mais altos que uma explosão nuclear.
— Que, papá? — Nellie gritou. — Lo siento, a ligação está cortada. Eu ligo quando o sinal estiver melhor. Te amo!
Ela desligou.
— Ele deixou. Estou dentro, crianças.
***
Seguindo as ordens de Amy, Dan deveria levar uma única mala. E era para ser uma mala de roupas, mas Dan não estava interessado em roupas. Ele passou os olhos pelo quarto inteiro, tentando decidir o que levar de suas coleções.
Seu quarto já estava pequeno demais para as suas coisas. Encostados na parede estavam seus decalques de túmulos. Ele teria que os enrolar ou dobrar para guardar na mala, e isso os estragaria. O armário estava abarrotado de cestos de plástico com sua coleção de cards e seus fichários de moedas – tantos que ele nunca conseguiria escolher. Embaixo da cama havia caixas cheias de velhas armas da Guerra Civil Americana, seus gessos, suas fotos autografadas de celebridades e uma tonelada de outras coisas.
Ele pegou o laptop que comprara do professor de informática na escola por 300 dólares. Ele precisava levar aquilo, pois usava o computador para descobrir coisas e ganhar dinheiro. Dan sabia o valor exato de cada card na internet. Aprendera a vender seus cards repetidos na escola e na loja de cards do bairro por um pouco mais do que havia pago. Não era muito, mas com sorte conseguia ganhar uns 100 dólares por mês. E ele tinha sorte. Infelizmente, gastava o dinheiro em coisas raras tão depressa quanto o ganhava.
Enfiou o computador em sua sacola preta e nela jogou três camisetas extras, calças, cuecas, uma escova de dentes, sua bombinha e, por último, seu passaporte.
Seus pais tinham tirado passaportes para eles um pouco antes de morrerem, quando Dan tinha 4 anos. Dan não se lembrava por quê. Eles nunca tinham usado. Grace insistira em renová-los no ano passado, o que na época pareceu meio idiota. Agora ele se perguntava...
Ele enfiou o passaporte no fundo da sacola. Não sobrava lugar para quase nada.
Não ia caber nem um décimo de suas coisas.
Dan pôs a mão embaixo do colchão e tirou seu álbum de fotos. Era um grande fichário branco contendo sua coleção mais importante: as fotos de seus pais.
Por enquanto, havia apenas uma. Estava queimada nas bordas: a única foto que tinha sobrevivido ao incêndio. Sua mãe e seu pai estavam de pé no topo de uma montanha, abraçados, sorrindo para a câmera. Ambos vestiam parcas impermeáveis, calças térmicas e coletes de alpinismo. Em vez de capacetes, usavam bonés de beisebol, por isso seus olhos ficavam escondidos em sombras. Seu pai, Arthur, era alto e bronzeado com cabelo grisalho e um belo sorriso. Dan se perguntava se ficaria parecido com ele quando fosse mais velho. Sua mãe, Hope, tinha cabelo castanho-avermelhado como o de Amy. Era um pouco mais nova que o pai, e Dan a achava muito bonita. Seu boné era dos Orioles. O do pai era do Red Sox. Dan imaginou se eram os times para os quais eles torciam, e se alguma vez eles brigaram sobre qual era melhor. Ele não sabia. Não sabia nem se eles tinham olhos verdes como ele, pois os bonés escondiam seus rostos.
Dan queria arrumar outras fotos deles. Queria saber para onde mais tinham viajado e que roupas vestiam. Queria ver uma foto onde ele próprio aparecesse. Mas não havia nada para colecionar. Tudo o que estava na antiga casa tinha sido queimado, e Grace sempre insistira que não havia fotos deles, embora Dan nunca tivesse entendido por quê.
Ele olhou para a foto e sentiu o estômago remexer. Pensou no incêndio na mansão de Grace, no homem de preto, no senhor Mclntyre caído no cimento, no tio Alistair indo embora de carro feito um louco e na letra da mãe dele naquele livro de Benjamin Franklin.
O que um livro podia ter de tão importante? Dan sabia o valor de vários objetos colecionáveis, mas nunca ouvira falar de nenhum pelo qual valesse a pena incendiar uma casa.
Grace devia saber o que estava fazendo, armando essa competição. Ela não teria decepcionado ele e Amy. Dan disse isso a si mesmo várias vezes, tentando acreditar.
Alguém bateu na porta. Ele tirou do álbum o envelope plástico com a foto e enfiou na sacola. Fechou o zíper assim que a porta se abriu.
— Ei, idiota! — Amy disse, mas não parecia estar fazendo por mal. — Está terminando?
— Estou. Já terminei.
Ela tinha tomado banho e trocado de roupa. Tinha voltado a vestir os jeans e a camiseta verde de sempre. Amy franziu a testa quando viu a sacola cheia dele, então olhou para todos os cestos dentro do armário. Dan imaginou que ela perceberia que ele não tinha nem mexido nos cestos.
— Você podia... hã... levar uma mochila também — ela ofereceu. — Se isso for ajudar.
Vindo de Amy, aquilo era uma coisa realmente muito gentil. Mas Dan ficou olhando para o armário. De algum modo ele sabia que nunca mais voltaria àquele apartamento.
— Amy, quanto dinheiro você acha que vamos ganhar pelas joias?
Ela pôs a mão no pescoço, e Dan percebeu que ela estava usando o colar de jade de Grace.
— Hmmm... não sei.
Dan entendeu por que ela estava com aquela cara de culpada. Ele não era expert em preços de joias, mas imaginou que aquele colar fosse uma das coisas mais valiosas da caixa. Se ela ficasse com ele, receberiam muito menos.
— Eles vão nos pagar uma merreca — ele avisou. — Não temos tempo pra vender do jeito certo. E afinal, somos apenas crianças. Vamos ter que levar as joias pra alguém que possa nos dar dinheiro vivo sem fazer muitas perguntas. Provavelmente só vamos ganhar uns 2 ou 3 mil... nada comparado com o que isso realmente vale.
— Vamos precisar de transporte para três pessoas — Amy disse, incerta. — E hotéis. E comida.
Dan respirou fundo.
— Vou vender meus cards e minhas moedas. Tem uma loja lá na praça...
— Dan! Você passou anos colecionando essas coisas!
— Isso vai duplicar nosso dinheiro. A loja vai se aproveitar de mim, mas posso conseguir fácil uns 3 mil por tudo isto.
Amy olhou para o irmão como se ele tivesse acabado de sair de uma nave espacial.
— Dan, acho que a fumaça mexeu com o seu cérebro. Você tem certeza?
Por algum motivo estranho, ele tinha. Queria seguir essa caça ao tesouro mais do que queria sua coleção. Queria se vingar de quem quer que tivesse incendiado a casa de Grace. Queria descobrir o segredo das 39 pistas. Acima de tudo, queria finalmente usar aquele maldito passaporte e deixar seus pais orgulhosos. Quem sabe ao longo do caminho não encontraria fotos novas para o álbum?
— Tenho certeza.
Amy fez uma coisa completamente repulsiva. Deu um abraço nele.
— Que nojo! — Dan reclamou.
Ele a empurrou para longe. Amy estava sorrindo, mas tinha lágrimas nos olhos.
— Talvez você não seja tão idiota — ela disse.
— Pois é, então tá, para de chorar e vamos sair... Peraí, aonde nós vamos?
— Hoje vamos dormir num hotel no centro — ela disse. — E amanhã... tive uma ideia sobre Benjamin Franklin.
— Mas você não está mais com o livro.
— Não precisei do livro para isso. A anotação de mamãe dizia “Sigam Franklin”. Ben Franklin começou como impressor aqui em Boston, quando era adolescente e trabalhava para o irmão.
— Então vamos procurar na cidade inteira?
Amy negou com a cabeça.
— Isso é o que os outros devem estar fazendo. Mas nós vamos seguir para o lugar aonde ele foi depois, tipo seguir a vida dele. Benjamin Franklin não ficou em Boston. Quando tinha 17 anos, fugiu da oficina do irmão e abriu seu próprio negócio de impressão em outra cidade.
— Então nós vamos fugir também! Vamos seguir Franklin!
— Exatamente — disse Amy. — Só espero que mais ninguém tenha pensado nisso. Precisamos reservar três passagens de trem para a Filadélfia.
— Filadélfia — repetiu Dan. As únicas coisas que ele sabia que tinha na Filadélfia eram o Sino da Liberdade e os Phillies, o time de beisebol. — Então quando a gente chegar lá, o que vamos procurar?
Amy tocou o colar de jade, como se o objeto pudesse protegê-la.
— Acho que vamos procurar um segredo que pode nos levar à morte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário