Outro documento vital; outra língua estrangeira.
— Não é alemão — anunciou Nellie.
— Não? — Amy ficou confusa. — Eu imaginei que fosse, afinal estamos na Áustria... Então que língua é?
O quarto de hotel em Salzburgo era pequeno, e não muito agradável. Dan estava convencido de que a administração usava lâmpadas fracas para que os hóspedes não percebessem a espelunca em que estavam.
A au pair espremeu os olhos para examinar melhor o documento.
— Italiano, eu acho. Essa língua eu não falo.
— Então como você sabe que é italiano? — perguntou Dan.
— Espanhol e italiano são meio parecidos. E esta palavra: Veneza. Tenho quase certeza que significa Veneza, que fica na Itália.
Amy indicou a data: 1770.
— Mozart devia ter 14 anos. Você não se lembra do que vimos no museu? Naquela época, ele se apresentou por toda a Itália. O pai dele o levou para uma turnê pelo país.
Dan franziu a testa.
— Então isto é um cartaz de um show do século XVIII, estrelando Mozart?
— Em Veneza — completou Amy. — É lá que a próxima pista deve estar escondida.
Nellie sorriu.
— Eu sempre quis ir a Veneza. Dizem que é a capital mundial do romance.
— Legal — disse Dan. — Pena que o único “gatinho” que vai aparecer no pedaço é um Mau Egípcio em greve de fome.
A au pair deu um suspiro.
— Melhor do que um menino bocudo de 11 anos.
***
A viagem de carro até Veneza levou mais de cinco horas. Dividindo o banco traseiro com Saladin, Dan quase foi à loucura. E a frustração de ficar implorando para o gato comer o deixava ao mesmo tempo preocupado e com raiva. Tão pouca coisa lhes restava da avó. Era uma dívida que eles tinham com Grace, cuidar direito do seu amado bicho de estimação.
Para atormentá-lo ainda mais, o menino teve que ouvir um longo e severo discurso da irmã, lembrando-o da grande importância da missão e de tudo o que estava emjogo.
— Suas piadinhas não estão ajudando, Dan! Você precisa crescer e levar isso mais a sério!
— Mais a sério? — ele repetiu. — Já estamos afundados em coisas sérias! O que precisamos é relaxar um pouco! A próxima pista pode estar bem debaixo do seu nariz, mas você não enxerga porque está ocupada demais sendo séria!
— Parem com isso! — berrou Nellie. — Vocês vão acabar fazendo eu bater o carro! Eles dirigem na velocidade da luz nessas rodovias!
— Mas você dirige na velocidade da luz até quando está dando ré pra manobrar — retrucou Dan.
— Não estou brincando! Enquanto eu for a babá... — ela olhou feio para Dan — a au pair, vocês dois vão ter que se entender. Eu aguento a loucura; eu aguento seus parentes desmiolados; eu aguento até quando vocês somem durante horas. Mas sem brigas. Entenderam? Vocês estão na mesma equipe. Parem de agir como se fossem inimigos.
Fez-se silêncio, e a discussão terminou tão de repente quanto começara. Com a paz veio um alívio da tensão da aventura em Salzburgo. Nellie quase conseguiu sentir os irmãos despertando novamente, se preparando para os perigos que tinham pela frente. Sim, eles eram Cahill. Provavelmente as duas únicas pessoas decentes em toda aquela raça.
Finalmente, estavam perto de Veneza. Mas, antes que alcançassem a cidade, o trânsito na estrada ficou bem mais lento.
— Ah! — Dan olhou feio para a nuca da irmã no banco do passageiro. Amy nem tinha percebido a lentidão. Estava estudando o anúncio do concerto de Mozart desde que eles tinham partido da Áustria. — O que você está fazendo? Aprendendo italiano por osmose?
Ela ignorou a piada.
— Tem um nome aqui que eu não sei de quem é. Quem é Fidelio Racco?
— Outro músico? — sugeriu Nellie.
Amy fez que não com a cabeça.
— Mozart e a irmã não tocavam com mais ninguém. Nunca li nada que falasse de um terceiro músico nas turnês deles.
— Bem, se isso for mesmo um cartaz de concerto — especulou Dan — esse tal de Fidelio Racco podia ser, tipo, um empresário.
Sua irmã refletiu a respeito.
— Faz sentido. Mas não um empresário como os que existem hoje. Naquela época, músicos vindos de fora davam concertos particulares em mansões de pessoas ricas. Pode ser que Fidelio Racco tenha hospedado Mozart e Nannerl. Seria bom dar um jeito de descobrir onde ele morou.
— É fácil — disse Dan, sarcástico. — É só procurar na lista telefônica do ano 1770. Moleza.
— Estamos na Itália — Nellie lembrou. — Aqui é mollezza! Veja a nossa saída — ela acrescentou, deixando a rodovia, passando por uma placa onde se lia VENEZIA e que levava a uma avenida larga. Eles pararam atrás de uma van de um canal de tevê com um símbolo familiar.
Dan apontou.
— Vejam só, é a Eurotainment TV. São os caras que deram aquela festa para o Jonah Wizard lá em Viena.
De repente, a van embicou à esquerda, cortando duas pistas movimentadas, deu uma guinada repentina e começou a seguir uma limusine prateada.
Nellie esmurrou a buzina e latiu:
— Seu louco!
— Siga a van! — Amy mandou.
— Por quê?
— Vai! — ela insistiu.
Com o volante dançando nas mãos, a au pair conseguiu costurar o trânsito em movimento, ficando bem atrás da van.
— Uhu! Legal! — comemorou Dan. — Perseguição de paparazzi!
Ele tinha razão. A limusine estava tentando fugir da Eurotainment TV, mas não era tão fácil despistar o motorista da van. Nessa brincadeira de pega-pega em alta velocidade, o carro de Amy e Dan seguia sacolejando, passando por carros e faróis em movimento, desviando de pedestres azarados.
— Quando disse que queria ver Veneza, não era bem isso que eu tinha em mente! — reclamou Nellie, debruçada no painel. — Quem será que está dentro do carro? O Brad Pitt? O príncipe William?
— Continue atrás deles! — insistiu Amy. — Tenho uma leve suspeita de que sei muito bem quem é.
Tudo aconteceu num piscar de olhos. A limusine ia a toda velocidade em direção a uma ponte, com a van logo atrás. O carro deu uma guinada, cruzou a rampa e pegou uma rua lateral. O motorista da van tentou fazer o mesmo, mas ficou preso no trânsito. A van desapareceu do outro lado da ponte.
— Quem eu sigo? — perguntou Nellie, aflita.
— A limusine! — disseram Amy e Dan, em coro.
Nellie desviou da ponte e dobrou a esquina. A limusine agora estava avançando em velocidade normal. Os passageiros achavam que a perseguição tinha terminado. Nellie ficou a uma boa distância do veículo.
Eles continuaram atrás da limusine até ela pegar uma rampa, subindo num longo elevado que passava por cima de uma lagoa ensolarada.
— E agora? — perguntou Nellie.
— Não a perca de vista! — mandou Amy.
— Espere — disse Dan. — Achei que estávamos indo para Veneza. A placa diz... — ele espremeu os olhos — TRONCHETTO. Mandou bem, Amy. Agora estamos indo para a cidade errada.
— Acho que não — disse Nellie. — Vejam!
Diante deles estendia-se uma fabulosa paisagem. Os contornos de uma cidade reluzente de cúpulas e torres erguiam-se da água trêmula.
— Veneza — disse Amy, estupefata. — É igualzinha nas fotos.
Até Dan estava impressionado.
— Bem legal este lugar — ele admitiu. — Pena que não é pra lá que estamos indo.
Nellie dirigia pela ponte comprida, tomando o cuidado de manter alguns carros de distância entre a limusine o tempo todo. Por fim, eles começaram a descer na direção de Tronchetto. Mas, em vez de uma cidade, eles estavam se aproximando de uma ilha baixa e plana, quase totalmente coberta por milhares de veículos.
Dan ficou desnorteado.
— Um estacionamento?
— É tipo o tataravô dos estacionamentos — emendou Nellie.
— Mas quem leva uma limusine para um estacionamento?
Uma placa gigante se erguia à direita. Amy procurou entre as muitas línguas e por fim encontrou o inglês.
— Entendi. Veículos não são permitidos em Veneza! Temos que deixar o carro estacionado aqui e tomar uma balsa para a cidade.
O irmão dela franziu a testa.
— Então como as pessoas vão de um lugar para o outro em Veneza?
— De barco — explicou Nellie. — A cidade é entrecortada por dezenas de canais.
Logo antes da entrada do estacionamento, a limusine parou. Um motorista de uniforme surgiu e abriu a porta de trás. Duas pessoas saíram, uma delas esbelta, a outra mais alta e mais robusta. Usavam bonés de beisebol com as abas abaixadas e óculos escuros. Mas o jeito “hip-hop” de andar do adolescente era inconfundível.
Jonah Wizard. Com o pai, como sempre.
— É aquele pentelho arrogante? — exclamou Nellie, consternada.
Dan também estava confuso.
— Se nós estamos com o papel que fala de Veneza, como Jonah sabia que tinha que vir para cá?
Amy apenas balançou a cabeça.
Eles observaram os Wizard caminharem até um grupo de pessoas que aguardavam para embarcar numa balsa para a cidade. O motorista voltou para a limusine e partiu com o carro.
Nellie franziu as sobrancelhas.
— O grande magnata do hip-hop esperando na fila junto com simples mortais? Quem poderia imaginar?
Dan sorriu.
— Estou começando a gostar dessa história de proibir carros. Isso iguala as pessoas.
Amy não se convenceu.
— Jonah tem dinheiro para comprar essa balsa inteira e expulsar todo mundo, se ele quiser. Se está pegando um barco público, é porque quer entrar na cidade sem ser notado. Rápido, Nellie, estacione o carro. Vamos ver aonde ele está indo.
O complexo de Tronchetto era enorme, por isso eles tiveram que avançar mais meio quilômetro até conseguirem encontrar uma vaga livre. Nessa hora a balsa já tinha atracado no cais, e os passageiros começavam a embarcar.
— Vamos logo! — Dan pegou Saladin nos braços e começou a correr na direção do terminal de embarque. — Se tivermos que esperar o próximo barco, vamos perder Jonah de vista para sempre!
— Prrr! — reclamou o Mau Egípcio, descontente com a viagem agitada.
O som profundo e grave de um apito estremeceu Tronchetto, fazendo vários alarmes de carro dispararem. A balsa estava pronta para partir.
Os três atravessaram o estacionamento correndo, com as mochilas balançando loucamente nas costas. Por sorte, a fila de passageiros era longa, o que atrasou a partida. Dan jogou Saladin na prancha de embarque no instante em que um marinheiro de uniforme fechou a corrente atrás do último passageiro. O gato disparou para o convés, e o tripulante exasperado não teve escolha senão permitir que os irmãos Cahill e sua au pair embarcassem junto com o bicho.
A viagem até Veneza levou menos de dez minutos. Amy, Dan e Nellie mantiveram uma boa distância dos Wizard, escondendo-se atrás de uma antepara. Eles nem precisavam ter se dado o trabalho. Jonah e o pai também pareciam determinados a passar despercebidos. Passaram o curto trajeto na amurada, com as cabeças abaixadas, olhando para a água. E, quando a balsa aportou em Veneza, foram os primeiros passageiros a desembarcar, abrindo caminho com pressa pelas ruas de paralelepípedos apinhadas de gente.
Os irmãos Cahill e Nellie os seguiam mantendo uma certa distância.
— Ele pegou transporte público e andou a pé. As duas coisas no mesmo dia — Dan estava maravilhado.
— Se Jonah ficar mais humano que isso, vão ter que parar de vender o porta-balas dele.
Era fácil andar sem ser notado pelos Wizard nas movimentadas ruas principais. Mas, após dobrarem algumas esquinas, Jonah e o pai começaram a descer uma viela deserta, ladeada de lojinhas. Amy puxou Dan e Nellie para se esconderem numa porta recuada.
Na metade do quarteirão, os Wizard entraram numa loja.
Os irmãos Cahill e Nellie esperaram. Dez minutos. Depois vinte.
— O que será que eles estão fazendo ali dentro? — especulou Amy.
Dan deu de ombros.
— Talvez os ricos demorem mais para fazer compras, afinal eles podem comprar mais coisas.
— Vamos olhar mais de perto — Amy decidiu.
Dan entregou Saladin para Nellie, e os dois irmãos se aproximaram cautelosamente da loja.
DISCO VOLANTE, era o que alardeava um letreiro de neon com a imagem dançante de um CD se transformando num disco voador.
Dan fez uma cara estranha.
— Uma loja de música? Jonah é o queridão da indústria fonográfica. Quando quer ouvir alguma coisa, eles transmitem digitalmente para o home theater na mansão dele. Por que ele ia querer comprar seus próprios CDs?
Amy chegou na borda da vitrine e espiou dentro da Disco Volante. Era como qualquer loja de discos nos Estados Unidos: estantes de CDs e discos de vinil antiquados, pôsteres de artistas e capas de álbuns, um funcionário jovem, meio desgrenhado, atrás da caixa registradora. E...
Ela piscou. Era verdade. O funcionário estava sozinho. Amy conferiu outra vez, aventurando-se mais longe na frente da vitrine até ficar bem no meio. A menina procurou em todos os corredores e na cabine de escuta à prova de som nos fundos. Não havia ninguém.
Dan percebeu a expressão de perplexidade no rosto de Amy.
— Que foi? Você está vendo Jonah e o pai dele?
— Eles não estão aqui.
Ele foi para junto da irmã na vitrine.
— Nós acabamos de ver eles entrando!
Amy deu de ombros.
— Também não sei explicar.
Voltando para a porta recuada, eles puseram Nellie a par de suas descobertas.
A au pair foi prática.
— Ok, ele pode encantar as garotas, mas não é um mágico de verdade. Ele não pode se teletransportar para fora de uma loja de CD.
— Exatamente — concordou Amy. — Ou Jonah e o pai dele ainda estão ali dentro, ou eles saíram por uma porta secreta. Precisamos entrar e procurar dentro dessa loja.
— É lógico — Dan disse. — Mas como vamos fazer isso com o funcionário olhando?
Amy virou-se para Nellie.
— Você pode distrair o funcionário e atraí-lo aqui para fora?
A au pair ficou ressabiada.
— Como assim?
— Você podia fingir que está perdida — propôs Dan. — O cara sai da loja para ensinar o caminho e nós entramos escondidos.
— Essa é a ideia mais machista que eu já ouvi — disse Nellie, ríspida. — Eu sou mulher, por isso tenho que ser desorientada. Ele é homem, por isso tem um ótimo senso de direção.
— Finja que você é de outra cidade — Dan sugeriu. — Aliás, você é de outra cidade.
Nellie escondeu as mochilas embaixo de um banco e colocou Saladin sobre o assento, dizendo num tom muito sério:
— Você é o gato de guarda. Se alguém encostar nessas mochilas, libere o seu tigre interior.
O Mau Egípcio examinou a rua, titubeante.
— Prrr.
Nellie deu um suspiro.
— Sorte nossa que não tem ninguém por perto. Está bem, vou entrar lá. Estejam a postos.
O funcionário disse alguma coisa para ela, provavelmente Posso ajudar?. Ela deu um sorriso e pediu desculpas por não falar italiano.
— Ah, você é americana. — O sotaque dele era forte, mas ele parecia estar querendo agradar. — Eu te ajudo. — Ele olhou para o esmalte preto nas unhas dela e o piercing no nariz. — Sua preferência é punk, talvez?
— Mais tipo um punk-reggae — Nellie respondeu, pensativa. — Com um leve toque country. E vocais de ópera.
O funcionário encarou Nellie confuso.
Nellie começou a passear pelos corredores, tirando CDs daqui e dali.
— Ah! Arctic Monkeys, é disso que eu estava falando. E um pouco de Bad Brains também, dos anos 1980. Foo Fighters... Vou levar uns dois desses caras. E não posso esquecer o Linkin Park...
Ele observou espantado enquanto ela fazia uma pilha enorme de CDs.
— Pronto — ela concluiu, pondo o Frank Zappa’s greatest hits no topo da pilha. — Acho que já está bom para começar.
— Você é mesmo apaixonada por música — disse o funcionário de olhos arregalados.
— Não, eu sou cleptomaníaca.
E ela saiu correndo pela porta.
Ele ficou tão chocado que demorou um instante para começar a correr atrás dela.
Acenando com a cabeça para os estupefatos irmãos Cahill, ela saiu em disparada pela rua de paralelepípedos, carregando o produto do roubo.
— Fermati! — gritou o funcionário atrapalhado e sem fôlego, logo atrás.
Nellie deixou cair uns CDs e viu com satisfação, por cima do ombro, o funcionário parar para recolhê-los. A ideia era prolongar a perseguição apenas o suficiente para que Amy e Dan procurassem dentro da loja.
Cruzes, ela refletiu de repente, estou começando a pensar como um Cahill!
Se ela era louca o bastante para conviver com aquela família, as coisas só tendiam a piorar.
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