quinta-feira, 17 de abril de 2014

Capítulo 17

Amy não estava mais em Veneza.
Estava de pé numa estranha câmara subterrânea esculpida em calcário nativo sob uma igreja no bairro de Montmartre, Paris. Na parede à sua frente havia um mural desbotado retratando quatro irmãos de nome Cahill. Luke, Thomas, Jane e Katherine – os ancestrais dos clãs da família, Lucian, Tomas, Janus e Ekaterina. E ao longe, umacasa em chamas. Mesmo naquela época, séculos atrás... conflito, violência, tragédia.
Ainda estamos estrangulando uns aos outros... Desta vez pelas 39 pistas. Pelo que eles brigavam naquela época?
A imagem mudou para outra casa em chamas. Com uma fisgada de dor, Amy reconheceu o próprio lar de sua infância. Coitados de seus pais, presos lá dentro, no incêndio...
Em meio à angústia, ela lutava por uma lógica. Como eu posso lembrar disso? Eu não estava assistindo àquele incêndio de fora! Precisei ser resgatada dele!
Amy e Dan tinham sido salvos. A mãe e o pai...
O golpe de tristeza foi forte demais, como uma ventania que não aceita resistência.
Faz isso parar...
A imagem mudou para uma coisa que ela lembrava muito bem. O funeral – nuvens escuras, ternos escuros, véus escuros. Lágrimas – tantas, e no entanto não bastavam, nem de longe. Rostos sombrios – Dan com 4 anos, pequeno demais para entender a magnitude da desgraça que se abatera sobre eles; Grace, agora também morta; a terrível tia Beatrice; o senhor Mclntyre, amigo ou inimigo? Não tinha como ter certeza...
Muito além do túmulo, indistinta em meio à neblina, ela mal conseguiu discernir outra figura, toda vestida de preto.
Impossível! Até parece que eu ia lembrar disso!
Porém o inimigo estava entrando em foco. Seus cabelos grisalhos, seus olhos atentos. Seus lábios se mexiam. Ele estava falando com ela. O que estava dizendo?
— Amy...
Ela acordou assustada. Dan estava debruçado sobre ela, sacudindo seu braço de leve. O cabelo e as roupas dele estavam molhados. A camiseta e o jeans dela estavam frios e úmidos, e os dedos de seus pés faziam barulho dentro de meias e tênis ensopados. Ela estava com o corpo doído por causa das inúmeras batidas e pancadas. Os lábios de Dan estavam inchados. Um corte enorme no rosto dele parecia muito recente.
A lancha. O acidente...
Ela se sentou e percebeu que estava num beliche estreito.
— Onde estamos?
O aposento era minúsculo, mas estranhamente luxuoso, com painéis escuros nas paredes, aparelhos de latão brilhante, gavetas e armários embutidos.
— Quieta — sussurrou o irmão. — Acho que estamos no iate.
Trêmula, ela conseguiu ficar de pé. O convés se inclinou um pouco. A água fazia barulho lá embaixo.
— A porta está trancada — informou Dan, ao ver os olhos dela pousarem sobre a maçaneta fechada. — Ouvi vozes lá fora. Mas não acho que um deles seja Jonah.
Amy parecia nervosa.
— Estou com um mau pressentimento, Dan. E se nós escapamos dos Janus só para sermos capturados por alguém ainda pior?
— Pior? — repetiu Dan.
Ela mordeu o lábio.
— Você acha que podem ser os Madrigal?
Na busca pelas 39 pistas, os misteriosos Madrigal eram o curinga. Amy e Dan não tinham informação alguma sobre eles além da funesta advertência do senhor Mclntyre: Cuidado com os Madrigal. O advogado se recusara a fornecer mais detalhes, mas seu rosto sombrio e seu tom de urgência diziam muita coisa. Não havia dúvida de que o grupo era extraordinariamente poderoso, e possivelmente fatal.
A porta se abriu de repente.
— O que vocês sabem sobre os Madrigal?
Cabelos escuros, pele morena, belos traços. Amy sempre se sentia culpada por achá-lo bonito. lan Kabra. Sua irmã, Natalie, entrou no compartimento logo atrás dele.
Então não eram os Madrigal, mas era quase tão ruim quanto. De todas as outras equipes, os Kabra eram os mais inescrupulosos. Assim como Irina Spasky, eles eram Lucian, o clã do sangue-frio e da intriga na família Cahill.
Dan fez uma careta.
— Nós sabemos mais sobre eles do que vocês!
Natalie revirou os olhos.
— Ninguém entende os Madrigal. Nem se sabe direito quem eles são.
— Ninguém além de Grace — cuspiu Dan — e ela contou pra nós!
— Mentira! — A pele de lan ficou avermelhada.
Dan sorriu.
— Ui, irritadinho! Acho que você não gosta quando alguém sabe alguma coisa que você não sabe.
— Nossos pais nos contam tudo — lan disse num tom arrogante. — Não são como sua querida Grace, que deixou vocês dois no escuro e depois os soltou para estragar a busca!
— Relaxa — Natalie disse para o irmão. — Ele só está tentando provocar você, e está conseguindo. Para alguém mais inteligente que um supercomputador, às vezes você é um verdadeiro imbecil.
— O que vocês querem? — perguntou Amy.
— Só o que vocês roubaram da base secreta dos Janus — Natalie respondeu num tom razoável.
— Não sei do que vocês estão falando — respondeu Dan, teimoso.
— Não banque o idiota — disse lan. — Embora naturalmente você seja um...
— Nós sabemos que a base secreta tem uma saída para algum lugar na rede de canais — interrompeu Natalie. — Colocamos câmeras de vigilância em toda a cidade de Veneza. Mas quando vimos Jonah perseguindo vocês... Bem, não foi difícil juntar os pontinhos.
— Nós estivemos na base secreta — Amy admitiu — mas não pegamos nada. Lá embaixo só tem um museu com obras de arte.
— Podem nos revistar, se não acreditam — acrescentou Dan.
— Como se já não tivéssemos feito isso — disse Natalie, num tom exasperado de tédio. — Você perdeu peso, Amy. Acho que a caça às pistas não está fazendo bem para a sua saúde.
Amy ignorou a alfinetada.
— Então vocês sabem que estamos dizendo a verdade — retrucou.
— Vocês dois me dão nojo — lan cuspiu. — Parecem criaturas saídas de um bueiro.
— Nós saímos mesmo de um bueiro! — devolveu Dan em tom defensivo.
— Não teria sido exatamente uma grande perda se vocês não tivessem conseguido escapar daquela explosão no túnel em Salzburgo.
— Foram vocês! — acusou Amy.
lan deu um sopro de desprezo.
— Você acha que foi difícil enganar Alistair, fazê-lo pensar que era nosso aliado? Devíamos ter dado uma bomba maior para aquele varapau. Assim teríamos nos livrado de vocês todos.
Natalie deu um suspiro.
— Esqueça, lan. Eles não têm nada. Capitão! — ela chamou, ríspida.
Um marinheiro musculoso surgiu no corredor.
— Sim, senhorita?
— Estes clandestinos precisam ser imediatamente despejados do iate.
— Nós não somos clandestinos! — protestou Dan. — Vocês afundaram nosso barco e nos tiraram do canal!
— Tem razão — concordou lan. — Jogue os dois de volta no canal. Sem delicadeza, por favor.
O capitão manteve uma expressão imperturbável no rosto enquanto arrastava os irmãos CahiIl para cima. Ele tinha mãos de ferro, que lembraram a Dan seus encontros com a família Holt.
A noite caíra e as luzes de Veneza os rodearam. Eles estavam no Grande Canal, a uns seis metros da costa, avançando devagar.
— Vamos, amigo — implorou Dan. — Dá um desconto pra gente.
O homem não deixou transparecer emoção alguma em suas feições.
— Apenas cumpro ordens — ele disse e, num único gesto, jogou Dan por cima da amurada.
O menino dobrou os joelhos e caiu na água feito uma bala de canhão. Segundos depois, Amy atingiu a superfície a poucos metros de distância, agitando os braços e lutando para respirar.
Nenhum dos dois estivera consciente durante a batida da lancha, por isso não lembravam da sensação da água. Ela estava gelada e provocou um tranco em ambos os corações, que começaram a bater em velocidade de britadeira. Movidos pela adrenalina, eles se debateram até a margem e escalaram para fora.
Dan se sacudiu como um cachorro molhado.
— Certo, vamos pegar nossas páginas do diário.
— Não podemos. — Amy cruzou os braços para controlar a tremedeira. — Não vamos encontrar as 39 pistas se nós dois tivermos hipotermia. Precisamos de Nellie e de roupas secas.
Dan lançou um olhar de rancor para o iate que se afastava ao longe.
— Um lançador de granadas também seria legal.
— Ignore os Cobra. O melhor jeito de se vingar deles é vencendo a busca.
— Nisso eu concordo — Dan disse. — Mas onde vamos procurar Nellie? Aquela loja de CD parece ter ficado cem anos pra trás.
— Não importa — disse Amy, confiante. — Ela é fiel. Não vai embora sem a gente. O nome da loja era Disco Volante. Espero que os taxistas aquáticos tenham ouvido falar.
Dan pôs a mão no bolso ensopado.
— Espero que os taxistas aquáticos aceitem euros molhados.

***

Nellie Gomez jamais tinha ficado tão preocupada. Ela estava curvada no banco de madeira, espremendo os olhos sob a luz fraca do poste em frente à Disco Volante. O funcionário em quem ela tinha dado um cansaço havia fechado a loja e ido embora uma hora atrás, sem perceber que ela ainda estava ali, rondando a área.
Onde estavam Amy e Dan? Como duas crianças podiam entrar em uma loja de CD e não sair mais?
— Prrr — foi o comentário de Saladin no colo dela.
— É fácil falar — respondeu Nellie. — Não é você que está tomando conta daqueles dois malucos.
Já haviam se passado quase quatro horas. Quatro horas para ruminar um único e simples dilema: quando seria o momento de chamar a polícia?
Eles nunca haviam discutido esse assunto porque sempre parecera impensável. Chamar a polícia significava serem descobertos, o que mais cedo ou mais tarde colocaria as crianças sob custódia do Serviço Social. Eles ficariam fora da busca para sempre. Mas agora estava começando a parecer que “polícia” queria dizer “resgate”, ou seja, salvar a vida dos dois, não importava onde eles fossem parar.
— Espere aqui — disse a Saladin, como se o gato tivesse alguma escolha.
Nem ela sabia ao certo o que estava planejando fazer. Jogar um tijolo pela janela, provavelmente, e vasculhar a loja. Agora ela podia ser presa em duas cidades da Europa, em vez de apenas uma.
Conforme ela chegou mais perto da loja, duas figuras envoltas em sombras viraram a esquina. Ela se escondeu no recuo de uma porta, espiando os recém-chegados que se aproximavam da Disco Volante, arrastando-se, cansados. Um menino e uma menina, pelo tamanho não eram adultos...
Quando ela reconheceu Amy e Dan, correu até eles e os apertou com abraços.
— Vocês dois! Graças a Deus! Eu estava prestes a... Credo, por que vocês estão molhados assim?
— É uma história muito comprida — Amy disse, cansada. — Precisamos vestir roupas secas, depois temos que buscar uma coisa.
— Nós explicamos no caminho — prometeu Dan.
Eles encontraram um canto que oferecia alguma privacidade. Amy e Dan estavam tão gelados que trocar de roupa ao ar livre foi pura agonia. Mas eles sentiram a circulação voltar quando vestiram a roupa seca. Agora vinha a parte difícil: localizar a igreja de Santa Lucia a pé, e não pelos canais. Eles rodaram por um tempo antes de encontrar um quiosque para turistas com um mapa da cidade.
— Incrível! — admirou-se Amy enquanto eles traçavam o trajeto. — Os fundadores de Veneza pegaram um agrupamento de rochas e transformaram numa das cidades mais bonitas do mundo.
— Vou estar mais a fim de saber a história da cidade quando estivermos com as páginas do diário de Nannerl nas mãos — anunciou Dan.
Percorrer as ruelas estreitas e tortuosas de Veneza os fez sentir como ratos num labirinto. Várias vezes eles enxergavam o lugar aonde queriam ir, mas não conseguiam alcançá-lo porque havia um canal no caminho. Além disso, o céu de Veneza é repleto de cúpulas e campanários, e eles estavam procurando no escuro. Depois de mais de uma hora, os três pararam ao lado de uma pequena igreja de pedra.
— É esta — disse Dan. — Estão vendo? Olha a ponte lá atrás.
A noite estava tranquila, ouvia-se apenas o som distante de barcos a motor. Nellie e Saladin se postaram nos degraus da frente da igreja, enquanto Amy e Dan contornaram a construção e chegaram ao canal.
Amy apontou.
— Olhe!
Uma antiga escada de pedra conduzia à água. Eles desceram correndo e gelaram.
Ali estava o píer embaixo da ponte. O Royal Saladin não estava mais lá.

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