Amy tomou um susto tão grande, que pareceu que haviam lhe sugado todo o ar.
— Ok. Não entre em pânico... — ela ordenou a si mesma.
— Por que não? — ele perguntou, amargo. — Se existe uma hora boa para entrar em pânico, é agora! O que aconteceu com o barco?
— Ai, Dan! Por que você tinha que esconder as páginas de Nannerl numa coisa que podia dar a partida e ir embora?
Dan ficou indignado. Angústia, decepção e frustração revolviam em seu estômago, uma mistura borbulhante, tóxica.
— Eu não tive muita escolha, senhorita Perfeita! Eu estava numa lancha a motor com metade do clã Janus atrás de nós! E como minha querida irmã estava ajudando? Ai, você não sabe dirigir um barco! É sempre só isso que eu ouço você dizer: não pode; melhor não; é impossível! Eu salvei a nossa pele lá atrás!
— Não é questão de salvar a nossa pele — disse Amy. — O que importa são as pistas, ou seja, as páginas do diário.
— Que os Cobra teriam roubado de nós se eu não tivesse escondido no Royal Saladin! — Dan retrucou. — Você acha que eu sou um moleque burro, imaturo demais para entender o que está em jogo! Mas é você que não entende! Uma busca, uma caça ao tesouro: quem é melhor nesse tipo de coisa, você ou eu?
Ela fez uma careta para ele.
— Não é a mesma coisa que bombardear a vizinhança com foguetes de garrafa.
— Você está me tratando que nem criança outra vez! — ele explodiu. — Eu sei que eu gosto de foguetes de garrafa! E balões de água! E bombas! Eu lambo pilhas! Eu experimento!
— Praticamente uma madame Curie.
— Pelo menos eu tento fazer as coisas — ele insistiu. — É melhor que ficar sentada roendo as unhas, perguntando, Devo ou não devo?
A irmã deu um suspiro infeliz.
— Está bem. Desculpa. Mas isso ainda não responde à pergunta de 1 milhão de dólares: o que vamos fazer agora?
Ele deu de ombros. Não estava pronto para aceitar o pedido de desculpas, mas de nada adiantaria continuar discutindo.
— Vamos esperar. Que mais podemos fazer? O barco atracou aqui uma vez. Talvez ele volte.
Ela pronunciou as palavras que ele estava temendo, a terrível possibilidade que o enchia de pavor.
— E se o barco só parou aqui uma vez? E se perdemos as páginas para sempre?
Dan não tinha resposta. De uma vez só, sentiu no corpo o ritmo alucinante de tudo aquilo. Cinco horas de viagem no carro apertado, a perseguição à limusine, a Disco Volante, a base secreta dos Janus, a fuga no canal, os Cobra.
E agora aquilo.
Ele sentiu vontade de desabar na passarela de pedra e dormir por um ano. Era uma exaustão esmagadora, que sugava a força de cada célula de seu corpo. Ele se sentiu um velho de 11 anos.
Amy deve ter percebido isso, pois colocou o braço no ombro dele num gesto de apoio, enquanto eles voltavam à igreja para contar à Nellie a mais recente desgraça que se abatera sobre eles.
— Pode ser que a gente tenha que esperar um tempão — Amy disse a ela. — Talvez fosse melhor você achar um hotel e dormir um pouco.
— Se vocês acham que vou deixar os dois sozinhos por um minuto que seja, então vocês beberam água do canal — disse a au pair num tom severo. — Vão lá esperar. Eu fico aqui.
— Prrr — acrescentou Saladin, sonolento.
A boa e velha Nellie. Aquela demonstração de apoio aliviou um pouco o clima. A ideia de ter alguém tomando conta deles – uma pessoa mais velha, mesmo que fosse só alguns anos – era quase parecida com a sensação de ter pais. Era apenas uma luzinha num vazio abissal. E, no entanto, fazia muito tempo que Amy e Dan Cahill não viam nada naquela escuridão.
Mas, quando os irmãos se acomodaram atrás da igreja, a funesta realidade começou a se mostrar para eles. Se não conseguissem recuperar os papéis que estavam escondidos na almofada de vinil no assento do Royal Saladin, estariam num beco sem saída.
Amy e Dan tinham apostado tudo naquela busca. Se fossem eliminados, seriam apenas fugitivos do Serviço Social de Massachusetts. Órfãos sem lar, sem passado nem futuro, perdidos a meio mundo de distância de qualquer pessoa ou coisa que lhes fossem familiar.
Os minutos demoravam a passar como meses, como se o próprio tempo tivesse sido desacelerado pela gravidade de buraco negro da situação deles. Os dois se abraçaram para enfrentar a umidade pegajosa da noite, ainda mais fria pelo medo e pela incerteza.
Amy contemplou as luzes de Veneza refletidas nas águas do canal.
— É estranho que tantas coisas ruins possam acontecer num lugar tão bonito, né?
Mas Dan não estava na mesma sintonia que ela.
— Talvez a gente pudesse roubar outro barco. Assim pelo menos poderíamos percorrer os canais. O Royal Saladin deve estar em algum lugar. — Ele fixou na irmã um olhar intenso. — Desistir não é uma opção.
— Mas como garantir que o Royal Saladin não vai voltar um minuto depois de partirmos? Já estamos aqui, e aqui vamos ficar.
Para Dan, aquela situação era especialmente torturante. Fazer alguma coisa – mesmo que fosse a coisa errada – era mais tolerável que ficar sentado, esperando.
A primeira hora foi um martírio. A segunda, uma dor física de verdade. Na terceira, eles estavam amortecidos, afundados em desespero, enquanto os sons da cidade e o barulho dos motores dos barcos diminuíam; restando somente o barulho da água e uma música de acordeão ao longe.
Eles sempre souberam que vencer a busca seria improvável. Porém nenhum dos dois estava preparado para que a derrota fosse daquela forma, por causa de uma escolha infeliz: colocar papéis importantíssimos num esconderijo motorizado que foi embora.
Ambos se inclinaram para a frente no caminho de pedra. A música estava mesmo ficando mais alta?
A melodia jovial encorpou, e um barco dobrou a esquina do canal, iluminado feito uma árvore de Natal. A popa aberta estava apinhada de foliões, dançando e comemorando loucamente.
Amy e Dan também sentiram vontade de festejar. Era o Royal Saladin.
Dan ergueu o olhar das sombras.
— Uma festa?
— Não é uma festa — Amy conseguiu dizer. — É um casamento!
Os noivos estavam abraçados junto à casa do leme, enquanto damas de honra faziam chover pétalas de rosa sobre eles. As risadas corriam soltas. Tilintavam brindes de champanhe. Deviam ser umas 15 pessoas espremidas na pequena embarcação, incluindo o tocador de acordeão, precariamente equilibrado numa plataforma de mergulho.
Dan fixou os olhos na almofada do assento, onde sabia que as páginas de Nannerl estavam escondidas.
— Tem 5 mil barcos em Veneza, e eu tinha que escolher justamente o do túnel do amor! O que nós vamos fazer? Essa palhaçada pode durar a noite inteira.
— Acho que não. Está vendo?
Dois homens de smoking faziam tentativas desajeitadas de amarrar o Royal Saladin ao píer da ponte. Foram necessárias várias, e por muito pouco o pai da noiva não despencou dentro do canal por cima da amurada. Finalmente, eles conseguiram atracar, e os convivas do casamento começaram a desembarcar.
Amy e Dan se agacharam atrás de um muro baixo enquanto os convidados subiam a escada até a igreja de Santa Lucia. O padrinho era o último da fila. Antes de sair do Royal Saladin, ao som do acordeão, ele agarrou a almofada do banco, a abraçou e começou a dançar com ela, como se fosse sua parceira.
Os irmãos Cahill sentiram o coração subitamente parar. Era a almofada que continha as preciosas páginas do diário de Nannerl.
Os outros davam risadas e vivas enquanto o padrinho valsava com a almofada em direção aos degraus.
Uma fina película de suor se formou na testa de Dan. O que este palhaço está fazendo? Será que ele é idiota o bastante pra levar uma almofada num casamento?
No último instante, o homem jogou a almofada de volta no Royal Saladin e seguiu o resto dos convidados escada acima.
Amy e Dan ficaram ali agachados, em silêncio, enquanto todos atravessavam o pátio e entravam na igreja de Santa Lucia. Mesmo quando eles ouviram a porta pesada se fechar com uma batida, permaneceram imóveis e escondidos. Depois das várias reviravoltas da sorte que tinham vivenciado naquele dia, estavam à espera que um meteorito despencasse do céu e os aniquilasse caso ousassem se mexer. Por fim, Dan ficou de pé.
— Vamos. Vamos pegar essas páginas antes que elas acabem indo no cruzeiro da lua de mel.
***
O hotel deles em Veneza era barato, principalmente porque não tinha vista para a água. Essa tinha sido a única exigência dos irmãos Cahill.
— Chega de canais — disse Dan, decidido. — Odeio canais.
Enquanto Amy e Dan tomaram longos banhos para se aquecer e tirar do corpo a água do canal, que não era lá muito limpa, Nellie se ocupou das páginas do diário. Eram apenas três folhas manuscritas. Porém continham informações surpreendentes.
— Vocês não vão acreditar nisso, meninos — disse Nellie. — Não foi à toa que alguém arrancou estas páginas. Elas mostram como Nannerl estava preocupada. Ela achava que Mozart estava ficando louco.
— Louco? — disse Dan. — Quer dizer, tipo, louco de plantar bananeira e comer sabão?
— Ele estava profundamente endividado — explicou Nellie, seguindo com o dedo a escrita alemã cheia de floreios. — Gastando mais dinheiro do que ganhava. Mas vejam só... As coisas que ele estava comprando eram sem sentido e estranhas. Ele estava importando ingredientes raros e caros de outros continentes.
As orelhas de Amy se empinaram ao ouvir a palavra ingredientes.
— Lembram-se da solução de ferro? Também é um ingrediente. Tudo isso deve estar relacionado com as 39 pistas de algum modo.
— Mozart estava envolvido nisso até o pescoço — concordou Dan. — Assim como Benjamin Franklin.
Nellie passou para uma página diferente.
— O diário também menciona Franklin... bem aqui. Mozart estava se comunicando com ele. Sabe como Nannerl o chama? “Nosso primo americano.” E vocês não vão acreditar quem também era uma Cahill... só a Maria Antonieta, pois é!
— Nós somos parentes da rainha da França! — exclamou Amy, estupefata.
— E da família real da Áustria também — continuou Nellie. — Essa era a conexão. Ela e Mozart se conheceram quando eram crianças. Quando Maria Antonieta se casou com o futuro rei Luís XVI e foi morar na França, tornou-se o contato entre Franklin e Mozart.
Amy ficou tão desnorteada com aquela sobrecarga de informações que quase não viu as linhas fracas escritas a lápis na margem junto à caligrafia pesada de Nannerl. Sua surpresa foi prosseguida por um jorro de emoção.
— Foi Grace quem escreveu isto! — ela disse numa voz chorosa. — Eu reconheceria a letra dela em qualquer lugar.
Dan encarou a irmã.
— Foi nossa avó que arrancou as páginas do diário de Nannerl?
— Não necessariamente, mas estas páginas passaram pelas mãos dela em algum momento. Ela viajou pelo mundo inteiro. Está envolvida nesta busca de uns cinquenta jeitos diferentes.
Amy espremeu os olhos para entender a escrita rebuscada ao lado do nome de Maria Antonieta, e leu em voz alta: A palavra que custou a vida dela, menos a música.
Dan deu um suspiro, fingindo incômodo.
— É, sem dúvida essa é Grace. Sempre esclarecedora, clara como a lama.
Nellie ficou exasperada.
— Qual é o problema de vocês, família Cahill? Por que tudo tem que ser uma charada? Por que vocês não podem simplesmente dizer o que querem dizer?
— Aí não seriam as 39 pistas — disse Dan. — Seriam as 39 afirmações.
Amy parecia pensativa.
— O que fez Maria Antonieta ficar famosa foi isto: quando alguém contou a ela que os camponeses estavam se revoltando porque não tinham pão, ela disse: Que comam bolo.
Dan fez uma careta.
— Uma pessoa pode ficar famosa por isso?
Amy revirou os olhos.
— Você não entende? Não tinha bolo! Não tinha comida nenhuma! Isso virou um símbolo de como os ricos estavam totalmente por fora das necessidades dos pobres. Essas palavras ajudaram a desencadear a Revolução Francesa. E foi durante essa revolução que Maria Antonieta morreu na guilhotina.
— Guilhotina... Legal! — aprovou Dan. — Agora está ficando interessante.
Nellie ergueu a sobrancelha.
— Então você tá dizendo que a palavra que custou a vida dela foi... bolo?
— Menos a música — acrescentou Amy. — O que isso pode significar?
— Bem — especulou Nellie — Maria Antonieta falava francês, portanto...
— Peraí! — exclamou Amy. — Essa eu sei! Grace me falou disso quando eu era garotinha!
— Como você sempre consegue desenterrar alguma conversa bizarra que teve com Grace 1 milhão de anos atrás? — perguntou Dan, deixando suas emoções de repente virem à tona. — Só faz umas semanas que ela morreu, e eu mal consigo lembrar da voz dela.
— Essas coisas de antigamente eram importantes — insistiu Amy. — Nós conhecíamos Grace como uma avó bacana. Mas todos estes anos, acho que ela também tinha um plano secreto. Estava nos treinando para a caça ao tesouro... plantando informações de que íamos precisar. Esta talvez seja uma delas.
— Esta é exatamente o quê? — perguntou Nellie.
— A fala de Maria Antonieta – Que comam bolo – geralmente é citada com a palavra francesa brioche no lugar da palavra bolo. Só que Grace teve o cuidado de me contar que ela usou o termo mais comum para bolo em francês: gâteau.
Dan franziu a testa.
— Bolo é bolo. Não é?
— Só que isso não tinha nada a ver com bolo — sugeriu Nellie. — De acordo com Nannerl, Maria Antonieta estava enviando mensagens secretas entre Franklin e Mozart. Talvez seja algum tipo de código.
— Então gâteau é uma mensagem, e brioche não é... E as duas palavras significam a mesma coisa? — disse Dan, duvidando.
Amy balançou a cabeça.
— Não sei o que isso quer dizer, mas tenho certeza de que é uma peça do quebra-cabeça.
Dan estava estudando as páginas do diário de Nannerl por cima do ombro de Nellie.
— Tem outra anotação... olhem!
As linhas a lápis eram ainda mais fracas, porém não havia dúvida de que era a letra de Grace. Desta vez estava bem no meio da página.
Rede pois dodo final.
Dan franziu a testa.
— REDE POIS DODO FINAL? Será que ela estava maluca?
— Olha... a anotação está bem em cima de um nome. — Amy espremeu os olhos para ver melhor. — FIDELIO RACCO.
— Esse é o nome do cara que estava no cartaz do tio Alistair! — disse Dan, empolgado. — Mozart se apresentou na casa desse cara!
Nellie traduziu do alemão.
— Aqui diz que ele era um poderoso comerciante e figurão dos negócios. Mozart o contratou para importar algum tipo de aço supercaro que só era feito no Oriente. Nannerl culpa Racco por cobrar caro demais do irmão dela e o afundar em dívidas. E adivinhem como ela o chama?
— Sanguessuga devorador de dinheiro? — sugeriu Dan.
— Ela o chama de “primo”.
Dan arregalou os olhos.
— Outro Cahill?
Amy abriu o zíper da mochila de Dan e de dentro dela tirou o laptop do irmão.
— Vamos ver o que conseguimos descobrir sobre nosso parente italiano.
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