Na escala de superstars endinheirados da família Cahill, Fidelio Racco com certeza estava na segunda divisão. Talvez até na quarta. O Google já tinha até ouvido falar dele, mas uma busca pelo sobrenome o colocou abaixo da Automecônica Racco, em Toronto, e da Trattoria Racco, em Florença, e só um pouco à frente da churrascaria irlandesa Rack O’Lamb, em Des Moines. O mercador milionário pode até ter sido um bambambã no século XVIII, mas o compositor que ele levara à falência havia se saído bem melhor aos olhos da História.
Embora não fosse nenhum Mozart, a grande riqueza de Racco o levara a fundar a Collezione di Racco, uma galeria particular em que eram exibidos os tesouros e obras de arte coletados por ele durante suas viagens pelo mundo. Foi ali que Amy e Dan decidiram continuar sua busca na tarde seguinte, enquanto Nellie ficava no hotel com Saladin e vários sabores de comida italiana para gato. Quem sabe com a mudança de país eles conseguiriam pôr fim à greve de fome.
A galeria ficava localizada na casa de Racco, uma construção do século XVIII que logo de cara deixou Dan desanimado.
— Casa de Racco, casa de Mozart — ele resmungou enquanto eles seguiam pelas ruas de pedrinhas. — Casa dos chatos seria um nome melhor.
Amy estava perdendo a paciência.
— Por que você sempre tem que dizer isso? Isto é chato, aquilo é chato! Se esta casa nos der a próxima pista, será o lugar menos chato do planeta.
— Amém, se isso for verdade — concordou Dan. — Vamos lá, quanto antes, melhor.
— Estamos chegando — prometeu Amy. — Já estou sentindo o cheiro.
Dan torceu o nariz.
— Eu só sinto cheiro da água do canal. Acho que esse cheiro nunca vai sair das minhas narinas.
Veneza era de fato uma ótima cidade para pedestres, desde que você soubesse aonde estava indo, refletiu Amy. A caminhada até a Collezione di Racco demorou só vinte minutos. Essa curta distancia os levou de seu hotel podre até uma grande mansão de pedra numa parte da cidade que obviamente era muito cara.
— Pelo jeito, essa coisa de explorar o Mozart deu muito certo — comentou Dan.
— Não foi só o dinheiro que ele ganhou com o Mozart — explicou Amy. — Esse cara foi uma figura muito importante no comércio internacional. Ele tinha frotas de navios no mundo inteiro.
Dan concordou com a cabeça.
— Nossos primos de antigamente eram tão poderosos. O que aconteceu com todos os Cahill derrotados? Tipo, zés-ninguéns como a gente que nunca ficaram ricos nem famosos.
Na entrada principal, eles foram recebidos por uma estátua do próprio Fidelio Racco. Se fosse em tamanho natural, então o mercador milionário tinha sido um homem muito baixo: só uns cinco centímetros mais alto que Dan. E o que era mais surpreendente, Racco estava dedilhando um bandolim, e sua boca aberta parecia sugerir que ele estava cantando.
Dan arregalou os olhos.
— Outro Janus?
A irmã confirmou com a cabeça.
— Isso explicaria por que Mozart recorreu a ele para importar aquele aço especial. Ele imaginou que estaria seguro com alguém de seu próprio clã.
— Mandou mal, Wolfgang. Nunca confie em nenhum Cahill.
Eles entraram na mansão e pagaram o salgado preço do ingresso: 20 euros. Mesmo hoje, séculos após sua morte, Fidelio Racco ainda explorava as pessoas.
Eles passearam pelas várias salas, que abrigavam preciosidades do século XVIII: seda, brocados e cerâmica do Oriente; prata e ouro das Américas, diamantes, marfim e esplêndidos entalhes em madeira da África; além de fabulosas tapeçarias da Arábia e da Pérsia.
— Que coisas lindas! — Amy sussurrou para Dan. — Só um Janus poderia ter um gosto tão incrível!
As artes decorativas eram realmente impressionantes, porém o texto informativo explicava que a maior parte da grande riqueza de Racco viera do comércio de produtos menos glamorosos: chás, especiarias e um aço japonês raro com liga de wolfrâmio, que tinha o ponto de fusão mais alto de todos os metais.
— Com certeza esse é o aço que Racco estava vendendo para Mozart — Amy disse num tom de certeza absoluta.
— Wolfrâmio — repetiu Dan, com um olhar distante no rosto. — Já ouvi essa palavra em algum lugar.
Amy estava cética.
— Tem certeza de que você não está pensando em Wolfgang?
— Não, é wolfrâmio, mesmo. Grace me falou disso. — Ele provocou a irmã. — Não era só pra você que ela contava coisas, sabia?
Amy deu um suspiro.
— Certo, o que foi que ela disse?
Ele parecia aflito.
— Eu não estava prestando muita atenção.
— É por isso que ela geralmente contava as coisas para mim, porque sabia que você ia esquecer tudo.
Eles percorreram um corredor com móveis finos entalhados e dourados de todos os cantos do mundo, que terminava num aposento circular. No centro, iluminado por uma luz azul, havia um cravo de mogno lustroso.
— Eu vou dar o fora — disse Dan. — Isto está começando a parecer coisa do nosso amigo Mozart.
Amy agarrou o braço do irmão com tanta força que deixou a marca dos seus dedos.
— Mas é o nosso amigo! Diz bem aqui: este é o instrumento que Mozart tocou em sua apresentação na casa de Racco em 1770!
— Só tem um problema: é um cravo. Isso não nos diz o que “ rede pois dodo final” significa. E não tem nada a ver com bolo, nem em francês nem em nenhuma outra língua.
— Mesmo assim — insistiu Amy. — Tudo o que descobrimos tem nos conduzido a este instrumento. Ele vai nos dar a próxima pista. Tenho certeza.
Dan pôs a mão no bolso da calça e tirou um guardanapo dobrado, amassado.
— Ainda bem que eu não estava usando esta calça quando caímos no canal.
Amy estava confusa.
— O que é isso?
Ele desdobrou o guardanapo, revelando o logotipo do trem.
— A única coisa que dá pra fazer num cravo é tocar música. Isto é música.
Ele desvirou o guardanapo, e lá estava a versão da peça KV 617 que ele tinha reproduzido no trem.
Amy precisou se controlar para não dar um grito de comemoração.
— Dan, você é um gênio! Nós pegamos uma pista musical de Benjamin Franklin e tocamos no instrumento de Mozart!
Eles olharam em volta. O cravo estava isolado por cordas de veludo. Um segurança de uniforme estava postado junto à porta.
— Bem, não podemos fazer isso agora — observou Dan. — Esse cara vai arrancar nossa cabeça se nós pusermos um dedo no precioso teclado dele.
— Tem razão — concordou Amy.
— A casa fecha às 17h — disse Dan. — Vamos ter que ficar escondidos até lá.
***
O banheiro em estilo art déco era velho, provavelmente dos anos 1920 ou 1930, com azulejos pretos e brancos e aparelhos imaculados de porcelana.
Como você pode pensar em azulejos e privadas numa hora dessas? Amy se repreendeu.
Bem, era justamente essa a intenção, não era? Se ela fosse se preocupar com as coisas reais, ficaria desnorteada. E se a mansão tivesse um alarme? Ou um exército de vigias noturnos? O que significava “rede pois dodo final”? Como era possível subtrair música da palavra francesa gâteau?
Era muita coisa para um cérebro de 14 anos.
E aquelas eram apenas as crises do momento. Aquela família! Descobrir que ela era parente de Benjamin Franklin e Mozart e Maria Antonieta...
Era uma sensação indescritível! Como se você tivesse nascido com sangue real! Como se de fato fizesse parte da História!
Mas aqueles grandes Cahill do passado eram justamente isso: passado. Estavam mortos e enterrados havia muito tempo. Quem eram os Cahill de hoje? Jonah. Os Holt. Tio Alistair. Os Kabra. Irina. Traidores, brutamontes, farsantes e ladrões. Pessoas que sorriam e chamavam você de primo enquanto estendiam o braço para cravar uma faca nas suas costas.
Aquela caça ao tesouro era para ser algo importante e grandioso, uma chance de escrever o futuro. Mas, na verdade, parecia um reality show chamado Quem quer ser um traidor? A disputa ficava mais sanguinária a cada instante. Será que todos os Cahill eram tão terríveis? Ela não conseguia imaginar Mozart envolvido em uma perseguição de barco. Nem detonando uma bomba num túnel. Até onde poderia chegar tanta falta de escrúpulos?
O incêndio que matou mamãe e papai foi considerado um acidente. Mas o tio Alistair diz que sabe a verdade. Será que com isso ele quer dizer que não foi um acidente?
Só de pensar naquilo, Amy já ficava sem forças. Palavras como “busca” e “prêmio” faziam com que tudo parecesse algum tipo de jogo, mas a tragédia de sete anos atrás não era jogo nenhum. Tinha arrancado dela os pais que ela tanto amava. Tinha arrancado de Dan até mesmo a memória de ter pais. A mais leve sugestão de que o incêndio talvez fosse proposital...
De repente ela se sentiu inesperadamente exausta. Talvez devêssemos simplesmente desistir. Voltar para Boston, dispensar Nellie. Nos entregar para o Serviço Social; ver se a tia Beatrice nos aceita de volta...
E no entanto, lá no fundo, Amy sabia que desistir era a última coisa que eles fariam. A última coisa que podiam fazer. Não com a próxima pista tão perto. Eles não tinham provas de que a morte dos pais tinha alguma coisa a ver com os Cahill. Mas mesmo se tivesse – principalmente se tivesse – então era cinquenta vezes mais importante vencer a caça ao tesouro.
Ela se reacomodou na tampa da privada e tentou relaxar. Do outro lado do corredor, no sanitário masculino, sabia que Dan estava fazendo o mesmo. Ou talvez ele fosse burro demais para ficar com medo.
Não, burro não. O irmão dela era inteligente. Brilhante até, considerando seu curto período de concentração. Foi ele quem tinha bolado aquele esquema de se esconderem nos banheiros até que a galeria fechasse. Ela apenas seguira a liderança dele enquanto os dois percorriam as alas da velha casa, prestando muita atenção na localização dos seguranças. E quando um dos guardas começara a olhá-los meio desconfiado, fora o instinto de Dan que os instruíra a se dispersar em outra sala.
Ela provavelmente ainda estaria ali, balbuciando desculpas esfarrapadas.
Dan precisava dela, porém ela também precisava dele. Querendo ou não, eles eram uma equipe: o idiota maluco e sua irmã gaga. Não parecia ser exatamente a receita para dominar o mundo.
O rebuliço no estômago de Amy ameaçou se transformar em um maremoto. Dan tinha seus talentos, mas não estava levando muito a sério o que podia dar errado no plano. Amy invejava isso nele. Às vezes era só nisso que ela pensava. Ela era o Albert Einstein do pessimismo.
Ela conferiu seu relógio de pulso, cheio de água, mas ainda funcionando. Tinha se passado meia hora desde que o anúncio – em seis línguas – de que a Collezione di Racco fecharia tinha sido dado.
Amy ouviu o estalo de um timer, e o banheiro de repente mergulhou na escuridão. Oh, não! Eles não tinham lanterna. Como chegariam até o cravo agora?
Com cuidado, ela tateou para sair da porta da cabine, fazendo esforço para lembrar como era o banheiro feminino. Precisava encontrar Dan, mas antes tinha que conseguir sair dali!
O som de passos gelou seu coração. Um segurança! Eles seriam pegos, presos, deportados para os Estados Unidos e...
— Amy?
— Dan, seu idiota! Você quase me mata do coração!
— A barra tá limpa. Vamos.
— Assim, no escuro? — ela perguntou.
Dan riu na cara dela.
— Só está escuro nos banheiros. No resto do prédio tem luz.
— Ah.
Envergonhada, ela seguiu a voz dele, passando pela porta pesada. Dan tinha razão. A Collezione di Racco estava no modo noturno, com as luzes dos mostradores apagadas, contudo uma em cada quatro lâmpadas fluorescentes estava acesa.
— Viu sinal de algum vigia noturno? — ela sussurrou.
— Não vi ninguém, mas a casa é grande. Talvez ele esteja vigiando o ouro e os diamantes. Eu, no lugar dele, estaria. Quem ia querer roubar um cravo?
Eles atravessaram depressa os suntuosos salões, agradecidos por seus tênis fazerem pouco barulho no piso de mármore.
A luz azul tinha sido apagada, mas mesmo na penumbra Amy conseguiu discernir o brilho de marfim do teclado que fora tocado pelo primo distante deles, o jovem Mozart, em 1770.
O entusiasmo invadiu seu corpo inteiro como uma corrente elétrica. A próxima pista estava perto, muito perto.
E então o silenciador frio de uma pistola de dardos encostado na nuca de Amy varreu de seu cérebro qualquer outro pensamento.
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