Nellie Gomez nunca tinha se dado muito bem com gatos. E isso foi antes de ela virar responsável por um Mau Egípcio em regime de inanição. Ela desligou o iPod e olhou preocupada para Saladin. Sua expectativa era de que, a essa altura, o gato já tivesse comido. Mas, pelo jeito, Saladin era mais durão do que parecia. Ela ouvira histórias sobre a monumental força de caráter de Grace Cahill. Obviamente, a avó de Amy e Dan tinha conseguido incutir esse traço de personalidade no bicho de estimação.
O que era ainda mais preocupante, Saladin estava coçando compulsivamente o pescoço e as orelhas. Ela o apanhou do chão.
— Que foi, amiguinho? Está com pulgas?
Ela pensou nas pulgas por um instante e pôs o gato de volta no chão com cuidado. Nellie tinha topado dar um tempo na faculdade e acompanhar duas crianças numa fabulosa caça ao tesouro ao redor do mundo. Mas não encarava insetos.
Nellie ouviu o som da chave na fechadura, e Amy e Dan entraram, arrastando os pés.
— Ops. Tiveram uma manhã difícil?
— Ah, foi superdivertido — Dan respondeu com sarcasmo. — Imagine uma casa de 1 milhão de anos, sem videogame, e quando você finalmente encontra um livro pra olhar, o livro não está lá. Que bando de idiotas! Quase chamaram o exército só por causa de um diário que provavelmente foi comido por cupins cem anos atrás.
— Os cupins comem madeira, não papel — Amy lembrou a ele, cansada e abatida demais para começar uma discussão. Ela ergueu um saquinho. — Enfim, trouxemos o almoço.
Nellie olhou fixo para ela.
— Hambúrguer? Estamos na Áustria, terra do Schnitzel, do Sauerbraten, do aspargo branco e das melhores confeitarias do mundo, e vamos almoçar fast-food americano? Eu já esperava isso do Dan, mas você, Amy?
Dan pegou um hambúrguer, ligou a tevê e se jogou no sofá.
— Aspargo branco! Como se o verde já não fosse nojento. Parece um charuto molhado.
A tela clareou. A imagem tremeu e ficou mais nítida. Três queixos caíram.
Em dose, bem no meio da tela, estava um adolescente bonito, reluzindo na última moda hip-hop. Sorrindo com todos os 32 dentes branquíssimos, ele estava dando uma coletiva de imprensa. Uma penca de repórteres e um enxame de fãs enlouquecidos estavam se esbaldando. O adolescente parecia muito à vontade com a fama, e por que não? Ele tinha o reality show de maior audiência no mundo inteiro, o single número 1 na lista dos mais vendidos, uma grife de roupas que estava bombando, uma série de livros infantis, além de bonecos com a imagem dele, uma linha de panelas com seu nome e até sua própria marca de balas.
Era Jonah Wizard: celebridade internacional e milionário, primo dos Cahill, e um dos rivais na busca pelas 39 pistas.
— Jonah! — exclamou Amy, franzindo a testa de preocupação.
Ela ficava abatida quando pensava na concorrência. Os outros pareciam ter tantas coisas a seu favor: fama, músculos, experiência, prática e rios de dinheiro. Que chance teriam dois órfãos anônimos de competir com eles? Ela espremeu os olhos para ver a data marcada no canto inferior da tela.
— Isso foi gravado ontem! O que ele está fazendo em Viena?
— Está fazendo uma turnê de divulgação — respondeu Nellie. — O DVD europeu deGansgta Life sai esta semana.
— Isso é só um pretexto! — Dan exclamou. — Ele está aqui porque sabe que a próxima pista tem a ver com Mozart. Talvez Jonah tenha encontrado alguma coisa que nós não vimos em Paris.
— Ou está colaborando com os Holt — acrescentou Nellie. — Eles devem ter descoberto que era o destino final do nosso trem.
Amy olhou seu primo famoso na tevê. Por que aquela rua parecia tão familiar? De repente, ela entendeu.
— Dan... é aquela rua, a Domgasse!
Dan ficou encarando a tela.
— Tem razão! Olha, lá está a Casa de Mozart, uns dois prédios adiante! E veja! É aquela velha bibliotecária, a que chamou a SWAT por causa de um diário que sumiu.
Nellie franziu a testa ao ver a austríaca idosa na escadaria.
— Ela não parece uma fã de hip-hop muito típica.
Amy deu de ombros.
— Acho que qualquer pessoa se interessaria em conferir pessoalmente uma celebridade tão famosa... — o fôlego dela ficou preso na garganta. — Gente, entendi! E se não foi por acaso que Jonah escolheu esse lugar para a coletiva de imprensa? E se ele fez isso para distrair as pessoas enquanto roubava o diário de Nannerl da Casa de Mozart?
— Isso faria sentido — cogitou Dan — se não fosse pelo fato de ele estar aparecendo na tela, com vinte câmeras em cima dele, e não estar roubando nada.
Amy fez que não com a cabeça.
— Quando é que nós vimos Jonah sem o pai do lado, falando em dois celulares e fazendo negócios pelo BlackBerry? Então, cadê o papaizinho nessa coletiva de imprensa?
Dan deu um palpite:
— Jonah deu essa coletiva pro pai dele ter a chance de entrar escondido na Casa de Mozart e roubar o diário! Amy, você tinha razão! O diário é mesmo importante!
— Pois é, e agora está com o inimigo.
— Que droga! — concordou Dan. — Se tivéssemos chegado um dia antes... E mesmo assim... — Uma faísca de inspiração brilhou nos olhos dele. — Eles roubaram o diário do museu; por que nós não podemos roubar o diário deles?
— Peraí — Nellie se intrometeu. — Tem uma grande diferença entre procurar pistas e roubar pessoas. Vocês não são trapaceiros.
— Mas Jonah e o pai dele são. Se vamos competir com eles, temos que estar dispostos a fazer o que eles fazem — argumentou Dan.
Nellie não se convenceu.
— Enquanto eu for a babá de vocês...
— Nossa au pair! — Dan corrigiu, acalorado.
— ... não vou ficar parada assistindo aos dois passarem pro lado do mal.
— Mas assim nós vamos perder! — retrucou Dan.
Amy se pronunciou. Ela tinha uma expressão solene no rosto.
— Por mais que eu odeie concordar com o Dan, o que ele disse faz sentido. Eu sei que roubar é errado, mas essa busca é grande demais para ficarmos tentando ser os mocinhos. Uma chance de influenciar os rumos da humanidade... Nós podemos mudar o mundo inteiro, se vencermos!
— Talvez seja uma chance de mudar o mundo — emendou Nellie.
Isso foi o que o senhor Mclntyre disse. Ele também disse pra não confiar em ninguém, nem mesmo nele.
De repente, as lágrimas encheram os olhos de Amy e ela piscou, teimosa, para espantar o choro. Não ia deixar que sua choradeira estragasse uma coisa tão importante.
— Nós mal conhecemos nossos pais antes de eles morrerem. Grace era a única pessoa que tínhamos, e ela também se foi. A busca às pistas é uma coisa séria para todo mundo, mas, para nós, é tudo o que temos. Não podemos fazer isso pela metade. Precisamos ir até o fim. E isso significa procurar as pistas onde quer que elas estejam... até mesmo dentro de um quarto de hotel alheio.
Nellie ficou em silêncio. Amy engoliu o choro com dificuldade e continuou.
— Você não é da família Cahill, por isso não deveria ter se arriscado tanto. Mas, se você não consegue aceitar o que precisamos fazer, vamos ter que dar um jeito de ir em frente sem você.
Dan encarou a irmã com olhos arregalados. A jornada que eles tinham pela frente ficaria instantaneamente vinte vezes mais difícil, mais complicada e mais perigosa sem Nellie. A cobertura de um adulto era essencial para cada passo que eles davam, cada fronteira que cruzavam, cada quarto de hotel que alugavam. Os dois já eram os azarões daquela busca. Sozinhos, precisariam de milagres só para avançar de um lugar para outro, de um dia para outro.
Nellie ficou olhando os irmãos Cahill. Estava acostumada com a impulsividade de Dan, mas Amy era a menina de 14 anos mais sensata que já conhecera.
De repente, ela foi tomada por uma onda de afeto e orgulho.
— Vocês acham que podem se livrar de mim assim tão fácil? — ela perguntou. — Vão achando. Esta aventura pode ser de vocês, mas ainda sou eu quem dita as regras. Até parece que eu vou deixar vocês roubarem um superstar sem a minha ajuda. Puxem uma cadeira, precisamos planejar um esquema.
***
O Hotel Royal Habsburg ficava no coração do bairro Landstrasse, em Viena, o centro da poderosa elite da Áustria. Durante o Império Austro-Húngaro, o prédio já tinha sido um palácio real, e os holofotes faziam o mármore branco e as folhas de ouro reluzirem no céu noturno.
— Como vamos saber se o hotel dele é este? — Dan perguntou enquanto eles davam a volta no quarteirão.
— É simples — Amy respondeu. — É o hotel mais sofisticado, mais chique e mais caro da cidade. Onde mais ele poderia estar? — Ela apontou para a suntuosa entrada do hotel, onde havia uma multidão de repórteres e fotógrafos. — Convencido, agora?
— A festa de lançamento do novo DVD do Jonah é às oito horas — disse Nellie. — Ele provavelmente vai descer, falar com os repórteres por uns minutos e, depois, ir direto para a balada que o canal de TV está patrocinando. No jornal, disseram que todas as pessoas importantes vão estar lá.
Dan fez uma careta.
— Achei que você tivesse deixado de ser fã do Jonah Wizard depois que ele te esnobou em Paris.
— Estou ajudando vocês a roubar o cara, não estou? O que estou dizendo é que o momento mais seguro pra entrar no quarto do Jonah vai ser quando ele aparecer aqui embaixo.
Assim que ela acabou de dizer isso, uma limusine encostou na sarjeta e ficou parada ali, esperando seu passageiro VIP. Houve um alvoroço na multidão de jornalistas, e o superstar em carne e osso saiu do hotel, com seu onipresente pai meio passo atrás dele. Flashes de câmeras iluminaram a noite.
— Rápido! — disse Amy. — Ele não pode ver a gente!
Os três se agacharam atrás de uma banca de revistas e observaram Jonah atravessar a multidão.
— Yo! Beleza?... Valeu pela presença de vocês... Valeu mesmo... De coração.
Atrás dele, os polegares do pai furiosamente digitavam mensagens de texto em seu BlackBerry, provavelmente compartilhando com o mundo toda a eloquência do filho.
O enxame da mídia começou a disparar perguntas para o superstar.
— Jonah, vai ter alguma surpresa na versão europeia do DVD?
— É verdade esse boato que você está namorando a Miley Cyrus?
— Você ficou sabendo que o golpe de kung fu do boneco Jonah Wizard não passou no teste de segurança?
Jonah respondeu às perguntas do jeito de sempre, de alguma forma conseguindo parecer descolado e camarada ao mesmo tempo.
Amy não gostava dele, mas não podia deixar de admirar a facilidade e a habilidade com que Jonah lidava com os paparazzi. Ia além de apenas pensar nas coisas certas para dizer. Ele fazia a imprensa amá-lo.
Eu sou exatamente o oposto disso, ela refletiu. A simples ideia de falar com um monte de gente a deixava apavorada.
— Ei, Jonah! — gritou um repórter. — Com apenas 15 anos Você está no topo do mundo. Você não tem medo de que daqui para a frente seja só ladeira abaixo?
O astro abriu um sorriso.
— Pega leve, brow. Quem disse que eu tô no topo? Eu nem sou o cara mais VIP desse hotel. Aí, o grão-duque de Luxemburgo também tá ficando aqui. Tipo, não tô dizendo que eu não tô bombando. Mas ser da realeza não é melhor do que ter seu próprio rosto estampado em um pacote de balas?
— Vamos embora — resmungou Nellie. — A modéstia dele está me embrulhando o estômago.
Enquanto Jonah continuava a encantar a multidão, os irmãos Cahill e Nellie dobraram discretamente a esquina e entraram escondidos no hotel por uma porta lateral Eles passaram por um monte de elevadores dourados e decorados e passaram sorrateiramente por uma porta que tinha um aviso em alemão.
— Apenas funcionários — Nellie traduziu com um sussurro.
— Você entende tudo em alemão? — Amy cochichou.
— Digamos que eu sei me virar — ela respondeu, dando de ombros. — Vejam, o elevador de carga.
Eles desceram até o porão, onde encontraram um labirinto de corredores.
Amy temia ser abordada em cada canto e atrás de cada porta. Seu medo lhe dava calafrios, como se alguém tivesse enchido a espinha dela de nitrogênio líquido, O porão era frio, mas nada que justificasse aquela tremedeira toda.
— Por que está tão vazio? — ela perguntou.
— A maioria dos funcionários trabalha no turno do dia — supôs Nellie. — Bingo! — ela acrescentou, conduzindo-os por uma portinha para dentro de um lugar que parecia um vestiário.
Nellie tirou um uniforme de camareira de uma prateleira enorme, se agachou atrás de uma divisória e vestiu-se depressa.
— Talvez fosse bom tirar o piercing do nariz — Amy sugeriu timidamente.
— Nada feito — respondeu Nellie. — Os almofadinhas deste lugar precisam de um pouco de vida. Vamos lá.
Ela jogou suas roupas num carrinho de limpeza, depois enfiou Amy e Dan lá dentro também. Então pôs um punhado de lençóis e toalhas em cima para esconder os passageiros.
— Como vamos saber em que quarto ele está? — Dan sussurrou das profundezas da pilha, enquanto Nellie os empurrava em direção ao elevador.
— Na suíte real, é claro — Nellie murmurou. — Até parece que aquele babaca metido ia aceitar menos que isso. E fiquem quietos. Roupa suja não fala.
O elevador os levou para o último andar, o 17°. Nellie seguiu pelo corredor empurrando o carrinho e parou na frente da suíte 1700, a que ostentava uma coroa dourada em cima da porta. Sabendo que os Wizard estavam a caminho da festa, ela audaciosamente tirou o cartão magnético do bolso e o inseriu no leitor junto à porta.
O leitor fez um bipe, uma luz verde se acendeu, e eles entraram.
— Uau! — exclamou a au pair. — Então este é o estilo de vida dos ricos e famosos.
O quarto parecia um palácio, com móveis que poderiam estar em museus e peças decorativas – como sofás e divãs – estilo século XIX, macios e ricamente estofados em veludo; delicados abajures e vasos de porcelana; tudo exalando muito luxo.
Ela estendeu os braços e estava prestes a puxar os irmãos Cahill para fora do esconderijo, quando uma voz com sotaque forte perguntou:
— Uma empregada não bate na porta de Sua Alteza?
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