Quando a porta do elevador se abriu, os irmãos Cahill estavam correndo tão depressa que quase passaram batido por ela. Amy freou primeiro, agarrou o irmão e o puxou para dentro do elevador. Ela apertou o botão do térreo. Eles ficaram parados, ofegantes, enquanto desciam. Seus olhos agoniados seguiam a numeração que diminuía no mostrador, a partir do 16.
De repente, Dan esticou o braço e apertou o botão do primeiro andar.
— Podem estar esperando a gente na entrada — ele explicou, tenso.
— Mas é lá que fica a saída! — disse Amy numa voz estridente. — Não dá para sair do hotel pelo primeiro andar!
— É claro que dá.
As portas se abriram, e Dan puxou a irmã para o corredor do primeiro andar, entre salões de baile e salas de conferência.
Ela estava quase histérica.
— Como? — Amy perguntou.
— Pulando.
Amy encarou o irmão.
—Você está ma...?
Eles seguiram até o fim do corredor e depararam com um vidro que ia do teto ao chão, que dava para a rua. Ali, logo abaixo, estava a entrada do hotel.
Dan empurrou as portas envidraçadas, e os dois saíram para uma mureta estreita de pedra.
— De jeito nenhum, Dan! Não vou pular! Nós vamos quebrar as pernas!
— Olhe pra baixo! — ele mandou.
Uns dois metros abaixo se estendia um toldo de lona que cobria toda a entrada principal.
Ele passou a perna por cima da mureta.
— Vai ser moleza — disse o menino, tentando transmitir mais segurança do que de fato sentia. — Uma queda menor que de um trampolim alto de piscina.
— É, mas sem água!
Ele pulou. Amy observou horrorizada, esperando que ele fosse rasgar o tecido e se espatifar no concreto. No entanto, o toldo aguentou.
Sorrindo para ela lá de baixo, ele engatinhou até a beirada da lona, encontrou umsuporte de aço, e por ele desceu até a calçada. Dan acenou para Amy lá de baixo, com o diário de Nannerl na mão.
Amy nunca tinha sentido medo de tantas coisas diferentes ao mesmo tempo: medo de ser capturada; medo do que podia acontecer com Nellie; medo pelo irmão maluco que era imbecil demais para saber o que podia e o que não podia fazer; e um medo muito real de pular do primeiro andar de um prédio em cima de um frágil pedaço de pano.
— Depressa! — Dan chamou a irmã, impaciente.
Não consigo fazer isso... Não consigo mesmo...
A onda de vergonha que ela sentiu foi quase tão poderosa quanto seu terror. Que tipo de Cahill era ela? O futuro do mundo inteiro estava em jogo, e ela era incapaz de enfrentar uma queda de 2 metros... nem mesmo após ver seu irmão de 11 anos fazer isso. Talvez fosse melhor deixar que Jonah ficasse com o diário, afinal. Ou então os Holt ou os Kabra. A avó estava enganada a respeito dela. Amy não era páreo para a busca às 39 pistas.
Desculpe, Grace...
Esse pensamento de repente deu um tranco em Amy, fazendo com que tomasse uma atitude impetuosa. Ela já estava caindo no vazio antes que chegasse a decidir de fato.
Amy atingiu o tecido feito uma trapezista de circo caindo numa rede de segurança. Segundos depois, Dan estava ajudando a irmã a descer para a rua.
Os dois só tiveram coragem de abrir a boca quando já estavam dentro de um táxi, a vários quarteirões de distância do hotel.
— A Nellie... — Dan começou a dizer.
— Eu sei...
O pequeno quarto deles no Hotel Franz Josef parecia pobre e ainda menor depois de terem visto os aposentos do Royal Habsburg. A recepção de Saladin não colaborou muito para melhorar o humor deles. O Mau Egípcio ainda se recusava a comer a comida para gato, e tinha espalhado o jantar por todo o carpete. Um cheiro de peixe pairava no ar. Além disso, ele se coçava com mais força do que nunca, e seu pescoço estava começando a ficar todo pelado.
Os irmãos Cahill estavam exaustos, porém nenhum deles conseguiria pensar em dormir. Nellie era a única coisa que importava agora. Os dois estavam tão concentrados nas 39 pistas que não tinham levado em conta os sacrifícios que a au pair estava fazendo para continuar junto com eles naquela aventura. Ela tinha largado tudo, viajado milhares de quilômetros para longe de casa, e até debitado várias despesas em seu próprio cartão de crédito. É claro que eles pretendiam reembolsá-la. Amy e Dan tinham joias de Grace que provavelmente valiam uma fortuna. Mas joias podiam ser perdidas ou roubadas, e não havia garantia alguma de que eles venceriam a busca. Não havia garantia sequer de que sobreviveriam a ela.
Agora Nellie estava desaparecida. Tinha sido pega, provavelmente detida. E não havia nada que Amy e Dan pudessem fazer a respeito disso. Nada além do que estavam fazendo: esperar.
***
Às duas da manhã, eles ainda estavam sentados olhando para a tevê, que apresentava um episódio de A ilha dos birutas dublado em alemão. As batidas repentinas na porta foram um susto tão grande para seus nervos esfrangalhados que eles quase se atropelaram enquanto corriam para abri-la.
— Nellie! — Amy gritou. — Graças a...
Ali no corredor estava Irina Spasky, a prima russa da família Cahill. Era outra concorrente na busca pelas 39 pistas, e não era de brincar em serviço. Corriam rumores de que ela era uma ex-agente da KGB, impiedosa, eficiente e potencialmente mortal.
Ela foi direto ao ponto.
— Sua babá foi detida pelas autoridades de Viena.
Dan ficou irado.
— Como você sabe disso? — ele disse.
O rosto de Irina se contorceu, esboçando algo que de longe lembrava um sorriso.
— Eu já atravessei um túnel secreto sob o Muro de Berlim carregando plutônio para a fabricação de armas. Acho que sou capaz de olhar pela janela de uma viatura de polícia. Mas se vocês não precisam de ajuda...
Amy gostou da ideia.
— Você pode ajudar Nellie? Como?
Irina pareceu incomodada.
— Faz diferença saber como eu posso ajudá-la, desde que eu a traga de volta?
— Não faz diferença nenhuma! — Amy concordou na hora. — Apenas tire ela de lá! Obrigada!
— Palavras não bastam para me agradecer. Quero o objeto que vocês furtaram do quarto de hotel de nosso seboso primo Jonah Wizard.
— De jeito nenhum! — cuspiu Dan.
— Permita que eu lhe dê um conselho — Irina disse a Amy. — Você não devia deixar esse menininho impetuoso falar por você. Talvez fosse melhor nunca deixá-lo abrir a boca. Na KGB usávamos fita adesiva, um método eficiente e econômico.
Amy ficou cabisbaixa. Eles tinham arriscado a vida para pegar o diário. Sem contar que o fato de Irina querer o diário só comprovava a suspeita de que se tratava de algo importante. Mas não podiam deixar que Nellie fosse para a cadeia por culpa deles. Se a prima russa podia libertá-la, eles não tinham escolha senão aceitar o acordo.
— Eu pego ele para você — Amy concordou, triste.
— Deixa que eu pego — suspirou Dan.
Amy ficou observando, surpresa, enquanto o irmão ia até a mochila dela no criado-mudo. Mas em vez de pegar o diário de Nannerl, ele pôs a mão no bolso da jaqueta e tirou o bonequinho de Jonah Wizard que roubara da suíte 1600.
Ele está tentando dar a coisa errada para ela! Amy lutou para conter seu terror enquanto Dan oferecia o brinquedo a Irina.
A ex-agente da KGB continuou estática não fazendo menção alguma de aceitar.
— Um brinquedo de criança? Você não pode estar falando sério.
Dan deu de ombros.
— Você pediu o que nós pegamos no quarto de Jonah. Foi isto.
Não tente fazer isto! Amy queria gritar. E se Irina souber o que está procurando? Ela encarou o irmão com um olhar de súplica.
Dan não captou a mensagem.
— Só parece um boneco comum — ele disse a Irina. — Mas veja isto.
Ele segurou o brinquedo, fazendo com que a mãozinha do boneco prendesse o dedinho de Irina, e apertou o botão nas costas para ativar o golpe de kung fu.
A ex-espiã não deu um pio com o golpe em seu dedo, mas uma veia em sua testa saltou, como se estivesse prestes a explodir. Seus olhos ávidos fixaram-se no código, iluminado atrás da faixa na cabeça de Jonah.
— Está vendo? — perguntou Dan. — É...
— Não é preciso fazer rodeios numa transação comercial — ela agarrou o boneco da mão de Dan e olhou para ele com certo respeito. — Tínhamos um aparelho parecido na KGB — ela admitiu, examinando seu dedo mindinho, que estava inchando depressa. — É grosseiro, mas eficiente. Sua babá será devolvida em breve.
E ela sumiu tão rápido quanto tinha aparecido.
Amy tremia enquanto brigava com o irmão.
— Não acredito que você fez isso! E se Irina soubesse do diário?
— Ela não sabia — retrucou Dan.
— Mas podia saber! Ou se ela soubesse do código! Ela podia ter visto a propaganda na televisão!
Ele estava inabalável.
— Duvido que Irina assista aos canais de desenhos animados.
— Você enganou uma espiã russa! Isso podia ter custado a vida de Nellie, e a nossa também!
Dan ficou indignado.
— Por que você está gritando comigo por uma coisa que não aconteceu? Caso você não tenha percebido, eu fiz uma coisa boa! Ainda estamos com o diário, e Irina vai trazer Nellie de volta. Você acha que vai ser uma verdadeira fuga cinematográfica? É pena que não dá para nós assistirmos.
Amy parecia emburrada.
— Eu sinceramente não quero nem pensar no que uma agente da KGB é capaz de fazer. Esse método que ela vai usar com a polícia de Viena, ela pode usar contra nós a qualquer momento.
Dan não conseguiu conter um sorriso.
— Mas hoje, fomos nós que levamos vantagem em cima dela. Isso merece uma comemoração!
— Quem está comemorando? — veio da porta uma voz cansada.
— Nellie! — Amy deu um pulo e se jogou nos braços da au pair. Ela deu um passo para trás, franzindo a testa. — Como a Irina libertou você tão depressa? Não faz nem cinco minutos que ela saiu daqui.
— Ninguém me libertou — Nellie respondeu. — Eles simplesmente me soltaram. Acharam que eu era uma fã desmiolada do Jonah Wizard. Pelo jeito, o hotel está cheio de gente assim. Dois idiotas chegaram a pular da sacada da frente. Vocês conseguem imaginar isso?
— Ao vivo e em cores — disse Amy amargamente.
— Aquela rejeitada da KGB, espiã meia-boca! — Dan estava furioso. — Não acredito que ela me enganou... justamente quando eu acreditei que estava enganando ela!
— Enfim, foi uma longa noite — Nellie bocejou. — Aqueles pentelhos do hotel não queriam abrir mão do precioso uniforme de camareira, por isso os policiais precisaram me arrastar até o porão para procurar minha roupa no carrinho de limpeza... que tinha sido devolvido junto com outros cinquenta. Depois eu não queria atrair eles até vocês, por isso pedi para me deixarem no Hotel Bundes. De lá eu vim pra cá a pé. Mas não se preocupem, só choveu nos últimos quinhentos metros — ela enxugou o cabelo com a manga. — É impressão minha, ou está fedendo peixe aqui?
— Nós pegamos o diário — Amy contou, empolgada.
— Vamos dormir um pouco, e podemos dar uma olhada nele amanhã de manhã. Nós sabemos que os Holt, Irina e Jonah estão na nossa cola. Precisamos avançar depressa se quisermos continuar na vantagem.
***
Quando Jonah Wizard e seu pai voltaram animados com o sucesso da festa de lançamento do DVD, encontraram uma equipe de funcionários da manutenção varrendo cacos de vidro do chão de mármore da suíte.
Os dois correram e pararam bem embaixo do lustre onde tinham escondido o diário de Nannerl. A silhueta escura não estava mais lá. Umas poucas fileiras de cristais pendiam quebradas.
— Você prometeu segurança extra para o Jonah! — O senhor Wizard estava espinafrando o gerente do hotel, que tinha acordado só para pedir desculpas ao hóspede VIP.
— Achamos que foi uma invasão inofensiva, mein Herr. — O gerente tentou acalmá-lo. — Uma garota apaixonada. Seu talentoso filho produz esse efeito nas mocinhas, não é?
Os Wizard não acreditaram numa palavra daquilo. Não tinha sido uma simples fã que entrara na suíte e roubara o diário de Nannerl Mozart. Aquilo só podia ter sido obra de um de seus concorrentes na busca das 39 pistas. Um serviço interno da família Cahill.
— Aí, mano — o astro de tevê falou com o gerente do hotel. — Dá pra você descrever essa mina doida que me adora tanto a ponto de invadir meu quarto?
O gerente mostrou uma foto tirada no departamento de polícia de Viena.
O rosto famoso se contorceu. Para quem convivia com a nata de Hollywood e um monte de gigacelebridades, era difícil reconhecer uma pessoa comum, da ralé. E no entanto a mulher na foto parecia familiar. De onde Jonah a conhecia?
Ele notou o piercing no nariz. Era a babá dos irmãos Cahill: Nancy ou Netta, algo assim.
Então Amy e Dan estavam em Viena também. Pior que isso, na verdade estavam um passo à frente dele. Jonah Wizard não gostava de ficar em segundo lugar em nada. Nem nos índices de audiência, nem na lista dos álbuns mais vendidos e, principalmente, não na busca às 39 pistas.
Quando você está por cima, você fica confiante. Estar confiante gera atitude. E atitude é o que faz você continuar por cima.
Uma pontada de inquietude vibrou na parte mais escondida, mais escura de sua mente. Sim, ele era o número 1 nas paradas de sucesso, ele era o cara que dominava quase todas as categorias da indústria do entretenimento. E ele merecia esse sucesso. Tinha trabalhado por ele. Suor e esforço, cara. Talento. Esse lance mágico dos Wizard.
Mas fica bem mais fácil quando sua mãe é Cora Wizard, que tem uma pá de contatos em todos os ramos artísticos...
O superstar fez uma careta. Era por isso que ele nunca podia baixar a guarda! Bastava um pequeno contratempo, e ele já começava a duvidar de si mesmo.
Se você perder mesmo que seja uma única vez, isso acaba virando um hábito. E antes que você perceba, já virou um perdedor.
Ele não podia permitir que os irmãos Cahill levassem vantagem sobre ele.
Por sorte, Jonah sabia uma coisa sobre o diário que Amy e Dan ainda precisavam descobrir.
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