Dan não era muito fã de diários – nem mesmo quando eram escritos em inglês e por pessoas por quem ele se interessava. Por isso manteve distância, tentando convencer Saladin a experimentar uma lata de atum, enquanto Nellie e Amy se debruçavam sobre o diário encapado em couro. Nellie estava traduzindo a escrita rebuscada e antiquada de Maria Anna Mozart.
— Conseguiram alguma coisa? — ele perguntou.
— É uma tragédia — respondeu Amy. — Nannerl foi uma das maiores musicistas da época. E, no entanto, pouquíssimas pessoas ouviram falar a seu respeito. Ela era um grande gênio, tão brilhante quanto o irmão. Mas naquele tempo as mulheres eram criadas só para casar, cozinhar, limpar e ter filhos.
Dan não parecia interessado.
— Eu nunca tinha ouvido falar do irmão dela, também. Não antes desta busca. Eu achava que Mozart era só o cachorro daquele filme.
Nellie fez uma careta para ele.
— O cachorro chama Beethoven, não Mozart! E mesmo assim você ia reconhecervárias músicas dele. Estamos falando de algumas das melodias mais famosas de todos os tempos. A melodia de “Brilha, brilha, estrelinha”, por exemplo, foi composta por Mozart.
— Só nos resta imaginar como poderia ter sido grande a contribuição de Nannerl para a música, caso tivessem permitido que ela desenvolvesse seus talentos — Amy acrescentou.
— Que se dane a música! — retrucou Dan. — Ela contribuiu com pistas?
Amy fez que não com a cabeça.
— Não tem anotações rabiscadas nas margens, nem nada desse tipo.
— Tem uma carta do irmão dela colada aqui. Mas parece que ele está falando da vez em que pediu demissão. Ele disse que queria usar o contrato como papel higiênico.
— É mesmo? — Dan de repente ficou interessado. — Mozart escreveu isso? Me mostra!
— Está em alemão, seu besta — Amy disse a ele. — Eles também têm uma palavra para papel higiênico.
— É, mas não achei que um cara chique como Mozart conhecesse essa palavra.
— Peraí! — Amy pediu numa voz alarmada. Ela virou a página seguinte, examinando atentamente a lombada do caderno. — Estão faltando páginas aqui! Pelo menos duas. Olhem!
Os três examinaram o diário de perto. Amy estava certa. O ladrão tomara muito cuidado para disfarçar o crime: o material que tinha sido retirado havia sido cortado com uma lâmina muito afiada. A incisão era quase imperceptível.
— Você acha que foi Jonah quem fez isso? — Dan perguntou, quase perdendo o fôlego.
— Duvido — respondeu Amy. — Por que ele se daria ao trabalho de esconder o diário no lustre se já tivesse tirado as partes importantes?
— Para nos despistar? — sugeriu Dan.
— Talvez, mas lembre que o diário tem mais de 200 anos. Essas páginas podem ter sido arrancadas em qualquer momento entre aquela época e hoje. A própria Nannerl pode ter cortado as páginas simplesmente porque derramou tinta nelas.
— Sem ofensa, pessoal — Nellie se intrometeu — mas estou convivendo com a família de vocês o suficiente para saber que isto é bem a cara dos Cahill. Nunca vi tantos traíras juntos na minha vida inteira.
— Ela tem razão — admitiu Dan, desanimado. — Sempre que achamos que estamos progredindo, descobrimos que alguém está um passo à nossa frente.
— Calma — Amy pediu. — A verdadeira pista não é o diário; é a música. E nós somos os únicos que temos a música. Vamos levar a partitura para o saguão. Eu vi um piano lá.
***
Eles compunham uma cena adorável – a menina americana tocando piano e o irmão mais novo ao seu lado. Teria sido implicância notar que a partitura estava escrita no verso de um guardanapo e que a menina tocava com certa hesitação.
— A boa e velha tia Beatrice — Amy murmurou para Dan — cortou minhas aulas de piano para economizar um dinheirinho.
A tia Beatrice era irmã da avó deles e responsável legal pelos dois. Era graças à tia Beatrice que Amy e Dan eram considerados fugitivos do Serviço Social no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos.
— Toque a parte nova — sugeriu Dan. — A parte que não está na música de verdade. Talvez se abra um alçapão, ou vamos invocar o gênio dos Cahill, ou alguma coisa assim.
Ela experimentou a parte nova, uma melodia leve, aérea, muito diferente da composição clássica mais pesada do resto da música. De repente uma mulher parou ao lado do piano e ergueu a voz cantarolando. A letra era em alemão, mas era óbvio que se tratava de uma melodia familiar e que estava agradando bastante àquela senhora.
— A senhora conhece esta música! — exclamou Amy. — É do Mozart?
— Nem.., não é do Mozart. É uma antiga canção folclórica da Áustria, chamada “Der Ort, wo ich geboren war”. No seu idioma significa “O lugar onde eu nasci”. Obrigada por tocar esta música, querida. Fazia muitos anos que eu não a ouvia.
Amy agarrou Dan e o arrastou até um cantinho reservado com uma lareira.
— É isso! Essa é a pista!
— O quê? Uma música velha?
— Era uma mensagem entre Mozart e Benjamin.
Dan ficou com os olhos esbugalhados.
— Certo, mas o que significa a mensagem?
— Diz “venha para o lugar onde eu nasci”. Mozart nasceu na cidade de Salzburgo, nos Alpes austríacos. E é para lá que temos que ir.
***
O carro alugado era um modelo velho. Todas as suas articulações rangiam quando estava na subida, enquanto que, na descida desembestava morro abaixo. Em parte, era culpa de Nellie. Ela nunca tinha dirigido um carro com câmbio manual antes.
— Isso ajuda muito numa viagem às montanhas — reclamou Dan.
— Ei, quer assumir o volante? — Nellie perguntou, ofendida.
E Dan aceitou tão prontamente que ela se arrependeu de ter perguntado.
Saladin passou toda a viagem de três horas enjoado com o movimento do carro. Mas, por sorte, como o gato não estava comendo nada, também não tinha nada para vomitar.
A viagem poderia ter sido mais confortável e muito mais agradável num trem. Entretanto, o encontro com os Holt na vinda de Paris os deixara avessos a viagens ferroviárias. Num trem público, era muito fácil avistá-los. Num carro, o anonimato era mais garantido. Como eram os únicos que tinham em mãos a informação mais recente, com certeza todas as outras equipes deviam estar na cola deles.
Apesar da viagem desconfortável, a paisagem era estonteante. A Autobahn, o nome alemão para rodovia, serpenteava pelos Alpes austríacos como uma fita se retorcendo entre os pés de gigantes. O pescoço dos três logo estava doendo de olhar pelas janelas, contemplando picos nevados que davam até vertigem.
— Agora sim está bem melhor — aprovou Nellie. — Eu topei a viagem para conhecer o mundo, não para visitar delegacias em Viena.
Até Dan estava impressionado com aquelas montanhas enormes.
— Aposto que, se alguém rolasse uma bola de neve lá de cima, quando ela chegasse aqui embaixo, poderia destruir uma cidade inteira!
Um pouco depois das 14h eles chegaram a Salzburgo, uma pequena cidade de torres reluzentes, arquitetura barroca e jardins pitorescos aninhados em colinas verdejantes.
— Que bonito! — exclamou Nellie.
— É maior do que eu esperava — Amy disse, desanimada. — Não fazemos ideia do que estamos procurando, nem mesmo por onde começar.
Nellie deu de ombros.
— Parece bem óbvio. A canção chama “O lugar onde eu nasci”. Vamos arranjar um guia e encontrar a casa onde Mozart cresceu.
O gemido de Dan foi ainda mais alto e mais desesperado do que as queixas constantes de Saladin.
— Ah, não, não faça isso, por favor. Você não vai me arrastar pra outra casa do Mozart. Ainda nem me recuperei da última!
— Cresça — disse Amy, ríspida. — Não somos turistas. Vamos aonde as pistas estão.
— Mas por que é que as pistas nunca estão em lugares legais? — resmungou Dan. De repente ele endireitou o corpo. — Cuidado!
Um pedestre atravessou a rua correndo, bem na frente do carro. Nellie pisou fundo no freio, com toda a força que tinha. As rodas travaram e o carro derrapou, parando a poucos centímetros de atropelar o transeunte idoso.
Nellie ficou furiosa.
— Idiota!
Ela já tinha levantado o braço para sentar a mão na buzina, quando Amy agarrou o pulso dela.
— Não! — ela chiou, tentando se esconder atrás do painel. — Vejam quem é!
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