sábado, 12 de abril de 2014

Capítulo quarenta e quatro

A próxima sala é mais como um corredor: é ampla, mas não profunda, com azulejos azuis, paredes azuis, e um teto azul, tudo do mesmo tom. Tudo brilha, mas não posso dizer de onde a luz está vindo.
No começo eu não vejo nenhuma porta, mas uma vez que meus olhos se ajustam ao choque de cor, vejo um retângulo na parede à minha esquerda, e outro na parede à minha direita. Apenas duas portas.
— Nós temos que nos dividir — falo. — Não temos tempo para experimentar cada uma juntos.
— Qual você quer? — Marcus pergunta.
— Direita — respondo. — Espere, não. A da esquerda.
— Tudo bem. Eu vou na da direita.
— Se for eu a achar o computador, o que devo procurar?
— Se você encontrar o computador, vai encontrar Jeanine. Suponho que você saiba algumas maneiras de forçá-la a fazer o que você quer. Ela não está, afinal, acostumada à dor — ele diz.
Concordo com a cabeça. Nós andamos no mesmo ritmo em direção a nossas respectivas portas. Um momento atrás, eu teria dito que a separação de Marcus seria um alívio. Mas ir sozinha é um próprio fardo. E se eu não conseguir passar através dasmedidas de segurança que Jeanine sem dúvida tem no local para impedir a entrada de intrusos? E se, de alguma forma, se eu conseguir passar por elas, não conseguir encontrar o arquivo certo?
Coloco minha mão na maçaneta da porta. Não parece haver uma tranca. Quando Tori disse que havia medidas de segurança insanas, pensei que ela queria dizer scanners de olho e senhas e bloqueios, mas até agora, tudo está aberto.
Por que isso me preocupa?
Abro a porta, e Marcus abre a sua. Nós compartilhamos uma olhada. Eu entro na sala ao lado.

+ + +

A sala, como o corredor, é azul, mas aqui está claro de onde a luz está vindo. Ela brilha a partir do centro de cada painel, teto, piso e paredes.
Assim que a porta se fecha atrás de mim, ouço um barulho como uma tranca se deslocando. Pego a maçaneta da porta de novo e empurro para baixo o máximo que posso, mas ela não se move. Eu estou presa.
Pequenas luzes penetrantes vêm para mim de todos os ângulos. Minhas pálpebras não são suficientes para bloqueá-las, então tenho que pressionar as palmas das mãos sobre os meus olhos.
Eu ouço uma voz calma e feminina:
— Beatrice Prior, segunda geração. Facção de origem: Abnegação. Facção selecionada: Audácia. Divergente confirmada.
Como é que esta sala sabe quem eu sou?
E o que a segunda geração significa?
— Status: Intrusa.
Ouço um clique, e puxo meus dedos apenas o suficiente para ver se as luzes sumiram. Eles não sumiram, mas acessórios no teto soltam um vapor de spray colorido. Instintivamente coloco minha mão sobre a boca. Em questão de segundos, olho através de uma névoa azul. E então encaro o nada.
Agora estou na escuridão tão completa que quando seguro a mão na frente do nariz, não posso nem ver a sua silhueta. Eu deveria andar para frente e procurar uma porta do outro lado da sala, mas tenho medo da mudança – quem sabe o que poderia acontecer para mim aqui, se eu fizer?
Então as luzes se acendem, e eu estou na sala de treinamento da Audácia, no círculo em que usamos para treinar. Tenho tantas memórias dentro deste círculo, algumas triunfantes, como bater em Molly, e algumas assombrosas – Peter me socando até eu cair inconsciente. Faço uma careta, e o ar cheira a suor e a poeira.
Do outro lado do círculo há uma porta azul que não pertence a ali. Eu faço uma carranca para ela.
— Intrusa — diz a voz, e agora parece que é Jeanine, mas poderia ser a minha imaginação. — Você tem cinco minutos para alcançar a porta azul antes de o veneno entrar em ação.
— O quê?
Mas eu sei o que ela disse. Veneno. Cinco minutos. Eu não deveria estar surpresa, este é um trabalho de Jeanine, tão vazio de consciência quanto ela é. Meu corpo estremece, e me pergunto se é o veneno, se o veneno já está fechando meu cérebro.
Foco. Eu não posso sair, tenho que seguir em frente, ou...
Ou nada. Eu tenho que seguir em frente.
Começo em direção à porta, e alguém aparece no meu caminho. Ela é pequena, fina e loira, com olheiras sob seus olhos. Ela sou eu.
Um reflexo? Eu aceno para ela para ver se ela vai se espelhar em mim. Ela não faz.
— Olá — eu digo.
Ela não responde. Realmente não achei que responderia.
O que é isso? Eu engulo em seco para estalar meus ouvidos, que parecem estar recheados com algodão. Se Jeanine projetou isto, provavelmente, é um teste de inteligência ou lógica, o que significa que tenho que pensar com clareza, o que significa que tenho que me acalmar. Fecho as mãos sobre o peito e pressiono para baixo, esperando que a pressão me faça sentir segura, como um abraço.
Isso não acontece.
Eu passo para a direita para obter um melhor ângulo na porta, e minha cópia dá saltos duplos para o lado, os sapatos raspando a sujeira, para bloquear meu caminho novamente.
Acho que sei o que vai acontecer se eu for em direção à porta, mas tenho que tentar. Começo a correr, com a intenção de desviar em torno dela, mas ela está pronta para mim: ela agarra meu ombro ferido e me joga para o lado. Eu grito tão alto que machuco a garganta; sinto como se facas estivessem apunhalando mais e mais no meu lado direito. Quando começo a afundar de joelhos, ela me chuta no estômago e eu caio no piso, inalando a poeira.
Isso, percebo quando agarro meu estômago, é exatamente o que eu teria feito se estivesse em sua posição. O que significa que, a fim de derrotá-la, tenho que pensar em uma maneira de derrotar a mim mesma. E como eu posso ser uma lutadora melhor do que eu mesma, se ela conhece as mesmas estratégias que eu, e é exatamente engenhosa e inteligente como eu sou?
Ela caminha para mim novamente, então luto para ficar de pé e tento colocar de lado a dor no meu ombro. Meu coração bate mais rápido. Quero dar um soco, mas ela consegue primeiro. Eu desvio no último segundo, e seu punho bate em minha orelha, deixando-me sem equilíbrio.
Recuo alguns passos, na esperança de que ela não vai me perseguir, mas ela o faz. Ela vem para mim de novo, desta vez agarrando meus ombros e me puxando para baixo, em direção ao seu joelho dobrado.
Coloco minhas mãos para cima, entre meu estômago e seu joelho, e empurro tão forte quanto posso. Ela não esperava isso; ela tropeça para trás, mas não cai.
Eu corro para elae quando o desejo de chutá-la desliza em minha mente, percebo que é também seu desejo. Eu me desvio para longe de seu pé.
No segundo em que quero algo, ela também quer isso. Ela e eu só podemos estar, na melhor das hipóteses, em um empate – mas eu preciso ganhar dela para passar pela porta. Para sobreviver.
Eu tento pensar nisso, mas ela está vindo para mim de novo, sua testa franzida em concentração. Ela agarra meu braço, e eu pego o dela, de modo que estamos agarrando antebraço com antebraço.
Ao mesmo tempo, nós puxamos nossos cotovelos para trás e empurramos para frente. Eu me inclino no último segundo, e esmago meu cotovelo em seus dentes.
Nós duas gritamos. Sangue derrama sobre seu lábio, e corre no meu antebraço. Ela range os dentes e grita, mergulhando em mim, mais forte do que eu esperava.
Seu peso me derruba. Ela me prende no chão com os joelhos e tenta dar um soco no meu rosto, mas eu cruzo os braços na frente de mim. Seus punhos batem em meus braços em vez disso, cada um como uma pedra atingindo minha pele.
Com uma exalação pesada, pego em um de seus pulsos, e noto que os pontos estão dançando nos cantos dos meus olhos. Veneno.
Foco.
Enquanto ela luta para libertar-se, trago meu joelho até o peito. Então eu empurro, grunhindo com o esforço, até que eu possa pressionar meu pé em seu estômago. Eu a chuto, meu rosto fervendo quente.
O quebra-cabeça lógico: em uma luta entre dois iguais perfeitos, como um pode ganhar?
A resposta: não pode.
Ela fica de pé e limpa o sangue do lábio.
Por isso: não devemos ser perfeitamente iguais. Então, qual a diferença entre nós?
Ela anda em direção a mim de novo, mas preciso de mais tempo para pensar, então, para cada passo que ela toma a frente, eu vou para trás. A sala balança, e depois torce, e dou uma guinada para o lado, escovando meus dedos no chão para me equilibrar.
Qual a diferença entre nós? Nós temos a mesma massa, nível de habilidade, padrões de pensamento...
Vejo a porta por cima do ombro, e percebo: nós temos objetivos diferentes. Eu tenho que passar por aquela porta. Ela tem que protegê-la. Mas, mesmo em uma simulação, não há nenhuma maneira de ela estar tão desesperada como eu estou.
Corro em direção à borda do círculo, onde há uma mesa. Um momento atrás, ela estava vazia, mas conheço as regras das simulações e como controlá-las. Uma arma aparece assim que penso que apareça.
Eu bato na mesa, as manchas dificultando minha visão. Nem sinto dor quando colido com ela. Sinto meu coração batendo em meu rosto, como se meu coração tivesse se soltado de suas amarras em meu peito e começasse a migrar para o meu cérebro.
Do outro lado da sala, uma arma aparece no chão antes do meu salto duplo. Nós duas alcançamos nossas armas.
Eu sinto o peso da arma, e sua suavidade, e a esqueço; esqueço o veneno; esqueço tudo.
Minha garganta aperta, e sinto como se houvesse uma mão em torno dela, apertando. Minha cabeça lateja pela súbita perda de ar, e sinto meu coração em todos os lugares, em todos os lugares.
Do outro lado da sala, não é mais minha cópia entre eu e meu objetivo; é Will. Não, não. Não pode ser Will. Eu me forço a respirar, o veneno está cortando o oxigênio para o cérebro. Ele é apenas uma alucinação dentro de uma simulação. Eu exalo um soluço.
Por um momento, vejo a minha cópia novamente, segurando a arma, mas visivelmente trêmula, a arma tão longe de seu corpo quanto ela pode segurá-la. Ela é tão fraca como eu. Não, não tão fraca, porque ela não está ficando cega e perdendo ar, mas quase tão fraca, quase.
Então Will está de volta, com os olhos mortos da simulação, seu cabelo como um halo amarelo ao redor de sua cabeça. Edifícios de tijolos aparecem em cada lado, mas atrás dele está a porta, a porta que me separa do meu pai e do meu irmão.
Não, não, é a porta que me separa de Jeanine e meu objetivo.
Eu tenho que passar por aquela porta. Tenho.
Eu levanto a arma, embora doa meu ombro para fazê-lo, e enrolo uma mão ao redor da outra para segurá-la.
— Eu... — Eu sufoco, e lágrimas mancham minhas bochechas, correm em minha boca. Sinto o gosto de sal. — Eu sinto muito.
E faço uma coisa que a minha cópia é incapaz de fazer, porque ela não está desesperada o suficiente.
Eu disparo.

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