O cômodo é bastante pequeno, pensou Ian, para ter uma feiura tão grande.
Ele sorriu. Era uma antiga piada da família Kabra.
O menino Cahill – Dan – olhava para aquela salinha mofada, coberta de painéis de madeira, como se estivesse prestes a chorar.
— É pra isso que você tem uma fera assassina devoradora de gente? — ele gritou. — Pra proteger uma biblioteca?
Amy estava deslumbrada contemplando o santuário.
— Que... lindo!
Aquela menina era modesta e atenciosa. Que bizarro. Era tão raro lan notar essas qualidades em outras pessoas... principalmente na busca pelas 39 pistas. Naturalmente, ele tinha sido ensinado a evitar tais características a qualquer custo, e nunca se associar a alguém que as possuísse. Eram sinais de mau gosto... PPP, como costumava dizer seu pai. Próprio Para Perdedores. E os Kabra jamais perdiam.
E, no entanto, Amy o fascinava. A alegria da menina enquanto corria no minúsculo gramado de Alistair, seu deslumbramento com aquela saleta cafona – não parecia ser possível alguém ficar tão feliz com tão pouco. Aquilo despertava nele um sentimento curioso, que havia experimentado pouquíssimas vezes. Algo parecido com indigestão, ainda que um pouco mais agradável.
Enfim. Deve ser culpa da calça rasgada, ele pensou. A humilhação amolece a alma.
lan passou os olhos pelas prateleiras abarrotadas, as paredes de carvalho mofadas, a poltrona de couro rachado, as horrendas lâmpadas fluorescentes, os excrementos de rato nos cantos, os frisos lascados, e os objetos de arte que pareciam ter sido comprados numa liquidação para daltônicos. Lindo?
— São livros — resmungou Dan. — Pessoal de Jornada nas Estrelas, me tirem daqui, pelo amor de Deus!
Pela primeira vez, lan era obrigado a concordar.
— Livros raros — disse Alistair, apontando com um gesto grandioso um conjunto de quatro prateleiras envidraçadas. — E, além disso, uma das mais completas coleções de documentos secretos sobre a família Cahill do mundo todo. É uma paixão de uma vida inteira, pois poucos itens chegaram a ser reproduzidos. Aqui está nossa maior esperança de decifrar o pergaminho!
lan pensou em se sentar, mas lembrou de como aquilo faria doer sua retaguarda. Ficar em pé também não era agradável, já que a calça de tecido barato raspava em suas pernas como uma lixa. E os resmungos de Dan colaboravam para fazer daquilo uma experiência insuportável.
Ele teria que evitar o menino. A irmã, pelo menos, era interessante. lan imaginou se a falta de cinismo dela seria contagiosa.
Que mau gosto. Mas mesmo assim...
— Talvez fosse bom nós formarmos equipes — sugeriu lan. — Uma corrida. Amy e eu vamos olhar o material nas duas estantes de cima, Natalie e Dan ficam com as duas de baixo.
— Excelente — disse Alistair. — Você concorda, Amy?
— Hã... — Amy tentou responder, desviando os olhos depressa. — É...
Que pena, pensou lan. Tantas garotas reagiam a ele daquele jeito. Aquilo limitava bastante a conversa.
— Nunca participei de uma equipe extrakabricular antes — disse Natalie, sorrindo com o próprio trocadilho. — Mas acho que posso tentar.
Dan estava olhando fixamente para um quadro horrível, em que fora retratado um casal que lan conhecia bem. O homem tinha cabelo grisalho, arrepiado e embaraçado, sobrancelhas grossas e um olhar intenso. A mulher tinha um rosto com feições fortes, que lembrava um cavalo: um maxilar comprido e orelhas grandes. Acima dos dois pairavam vários tipos de símbolos de aspecto peculiar.
— Quem é esse lindo casal? — perguntou Dan.
— Ah, sim, são os elegantes Gideon e Olivia, os Cahill originais, pintados no começo do século XVI — respondeu Ian. — Seus ancestrais.
— Os Kabra melhoraram os genes da família — ponderou Natalie.
— Estão prontos? — Alistair estendeu o pergaminho numa mesa, depois pegou um livro da prateleira. — Vou ajudar a equipe dos mais novos, Natalie e Dan. Um, dois, três, já!
lan passou os dedos pela fileira de livros, alguns com títulos manuscritos nas lombadas: Historicus Cahilliensis: Ekaterina, vols. I e II, Joias da arquitetura Ekat, Crítica da literatura Cahill do século XVIII... Alguns pareciam livretos, anotações arrancadas de fichários de três aros. Ia ser difícil encontrar alguma coisa de útil ali.
Amy tirou da estante um livro grosso, intitulado Origens dos Cahill: um compêndio de estudos contemporâneos.
— Viemos aqui procurar uma pista, não estudar história — reclamou Dan.
— Mas sabemos tão pouco sobre a nossa família...
Natalie ergueu o olhar de um livro que estava vendo.
— Não sei por que seus pais nunca lhes contaram a que clã vocês pertencem. Nós conhecíamos nossa história inteira antes mesmo de aprendermos a andar.
lan viu a cara de Amy quase cair no chão. Sentiu um formigamento por dentro. Percebeu que era compaixão, uma emoção que muitas vezes já tinha sentido pelo banqueiro dos Kabra, nos dias em que o mercado de ações ia mal. Aquela sensação, entretanto, de alguma forma era um pouco mais... vívida.
Ele deu um chute na irmã.
— Natalie, você perdeu o senso de... nobreza?
Ela virou o rosto e olhou feio para o irmão.
***
— “A família Cahill remonta à Dublin do começo do século XVI, com o brilhante e excêntrico Gideon Cahill e sua esposa Olivia” — Amy leu em voz alta.
Alistair confirmou com a cabeça, num gesto de incentivo. Sua sobrinha estava tão entusiasmada que mal conseguia pronunciar as palavras.
— “Alguns dizem que Cahill havia, de fato, feito uma descoberta que mudaria os rumos da humanidade” — continuou Amy. — “Porém, nunca se soube qual era a natureza dessa descoberta. Em 1507, um incêndio repentino devastou o lar dos Cahill. Todos escaparam, menos Gideon, que, no desespero de salvar a obra de sua vida, foi encontrado carbonizado em sua escrivaninha.”
— Que lance é esse que os Cahill têm com o fogo? — sussurrou Dan.
Alistair sentiu um aperto no peito. As crianças tinham vivido tantas tragédias... o incêndio que matara seus pais, o que destruíra a casa de Grace.
Ele lembrou por que ele próprio nunca quisera ter filhos. Corria-se o risco de sentir amor por eles. E esse tipo de sentimento podia ser perigoso na busca pelas 39 pistas.
— “De acordo com fontes contemporâneas, na época de sua morte, Gideon estava estudando os segredos da alquimia, na tentativa de transformar metais comuns em ouro.” — Amy prosseguiu. — “Ele procurava uma substância chamada ‘pedra filosofal’. O problema era que a substância ainda não existia. Era considerada a chave da busca final. Sendo mais perfeita que o ouro, a pedra filosofal, também conhecida como alcaeste, seria poderosa o bastante para transformar outras substâncias em ouro.”
— Valeu, professora — disse Dan, folheando enfurecido uma pilha de livretos. — Pode continuar, mas desta vez tente ler em silêncio.
— Vocês não entenderam? — gritou Amy, pulando da cadeira. — Nós descobrimos!
— Descobrimos o quê? — perguntou Dan.
Amy agarrou o irmão e o virou de frente para ela, como fazia quando ele tinha 3 anos.
— Gideon fez esta “descoberta que mudaria os rumos da humanidade”! Ele decifrou o segredo da pedra filosofal. Nós descobrimos o segredo das 39 pistas!
— Você decifrou o código do pergaminho? A pista?
— Não, lan! Uma coisa mais importante que a pista.
Natalie largou o corpo numa cadeira, irritada.
— Então nós perdemos? Eu odeio formar equipes.
Alistair olhou por cima do ombro de Amy, empurrando os Kabra, que insistiam em tapar a visão dele. Amy folheou as páginas até chegar a um diagrama de símbolos alquímicos:
Amy tirou uma moeda do bolso.
— O desenho da pedra filosofal está nesta moeda!
— Legal — respondeu Dan. — Mas o que tem de tão importante nisso?
— Não estão vendo? — repetiu Amy. — Esta página é o segredo de tudo... da soma das 39 pistas!
— Então... quando conseguirmos todas elas... — disse Dan, com um sorriso lentamente se abrindo no rosto.
— Vamos possuir o segredo da alquimia: a pedra filosofal! — Amy pôs a moeda de volta no bolso e olhou para o livro. — Também vamos descobrir como a moeda se encaixa na história. Mas ouçam... “Após o incêndio de 1507, Thomas e Kate fugiram da Irlanda para a Inglaterra, contrabandeando componentes da obra de Gideon, à qual juraram dar continuidade. Thomas se casou e gerou uma família, porém começou a negligenciar a irmã e a missão. Irritada, Katherine fugiu, levando consigo algo tão importante que Thomas largou tudo para procurá-la. Depois de tentar encontrá-la em Paris, em Veneza e no Cairo, Thomas desistiu. Atraído pela severa cultura dos samurais, ele se instalou no Japão e adotou um estilo de vida modesto. Seu filho mais novo, Hiyoshimaru, cresceu e se tornou Toyotomi Hideyoshi.”
— O Rato Careca era filho do Thomas... do Thomas original? — perguntou Dan. — Isso é interessante.
Alistair olhou de relance para os Kabra, preocupado. Conseguia ler seus rostos secos, sarcásticos – a impaciência com o fato de Dan e Amy estarem descobrindo coisas que as outras equipes já conheciam havia muito tempo. Ele sabia que os Kabra estavam se esforçando para suportar a espera até que os irmãos Cahill superassem esse déficit de aprendizagem. Afinal, Dan e Amy tinham se mostrado ótimos em achar novas pistas que haviam passado despercebidas a todos os outros. E pareciam estar no caminho certo.
— Será que não dá pra pular a introdução e chegar logo às partes que ainda não sabemos? — indagou Natalie, bocejando.
— Levanta essa bunda da cadeira, Natalie, e vamos continuar procurando — disse Dan. — Estamos a... 37 pistas de distância do segredo da alquimia!
Ele virou de costas, na tentativa de enfiar um livro de volta numa prateleira ao mesmo tempo em que estendia a mão para pegar outro. Um velho livro surrado, cambaleando na borda da prateleira, caiu no chão.
Alistair franziu o rosto.
— Tome cuidado, alguns destes livros são valiosíssimos! — ele avisou, agachando-se para recolher o exemplar delicado e examinando os ideogramas japoneses manuscritos na capa. — Este tem cinco séculos. Foi achado por um líder guerreiro inimigo. Foi a única coisa encontrada na barraca de Hideyoshi durante um ataque-surpresa.
— O que diz aí? — perguntou Dan.
Alistair ajustou os óculos.
— Na capa está escrito: HIDEYOSHI, NOVE. Talvez seja um caderno de rabiscos ou desenhos de quando ele era criança.
— Peraí, mas então por que estaria escrito HIDEYOSHI? — perguntou Amy. — Ele não tinha outro nome quando era criança?
Alistair arregalou os olhos.
— Sim... Hiyoshimaru! Bem pensado. Se o livro fosse mesmo da infância dele, esse seria o nome escrito.
Amy pegou o livro com cuidado. Enquanto ela folheava as páginas, que mostravam paisagens, cenas de batalha e monstros, os outros se amontoaram ao seu redor. Alistair notou que lan Kabra encostara de leve no ombro da menina.
— Est-t-tes... estes desenhos são b-b-bons demais pra uma criança de 9 anos...
Com as mãos trêmulas, Amy abriu o exemplar numa página que mostrava um rabisco estranho, de aspecto moderno, com estrelas e linhas aleatórias.
— Uma criança poderia perfeitamente ter feito isso — disse Natalie.
— Hideyoshi... nove... — repetiu Dan. — Ei, esta é a página 9!
De repente, sem dizer uma palavra, Amy pôs a mão no livro e arrancou a página.
Alistair achou que fosse ter um ataque cardíaco.
— Amy! — exclamou ele. — Isto é uma relíquia!
Amy rapidamente se debruçou na mesa, colocando a página arrancada em cima do pergaminho.
As duas imagens se encaixavam. A maioria das linhas formava uma paisagem detalhada de uma área rochosa. Outras linhas, contudo, mais próximas e menores, pareciam formar caracteres coreanos.
E Alistair entendeu que a loucura da menina fazia todo o sentido.
— Os três chifres... — ele disse.
— Como é que é? — perguntou Dan.
— Haha! — Alistair deu um abraço na sobrinha. Ela era mesmo uma garota extraordinária. — Graças a Amy, agora sei onde fica este lugar. E vamos para lá amanhã cedinho.
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