segunda-feira, 12 de maio de 2014

Capítulo 17

Quando Amy correu para se esconder atrás da árvore, Dan sabia que ela estava vomitando. E ele não teve nojo nenhum, pois estava fazendo a mesma coisa.
Alistair morrera, a centímetros de distância deles. Logo ali abaixo. Ele tinha dado às crianças sua confiança, seu dinheiro, seus conselhos, seu conforto. E, no final, sua vida.
Não parecia real. Ele devia estar atrás de um arbusto, espanando as roupas, andando na direção deles, vestindo suas calças impecavelmente engomadas. Puxa vida, isso foi uma aventura, ele diria.
Mas Dan só conseguia ver pó. Pó, turistas e montes de escombros e as luzes piscantes das viaturas de polícia.
E a sensação no fundo do estômago de já ter passado por aquilo. De que sua vida inteira se resumia a perdas. De que ele tinha jurado nunca se apegar aos adultos, porque era muito doloroso perdê-los.
E tinha acontecido outra vez.
O menino percebeu, vagamente, que a irmã estava lhe abraçando. Um policial estava falando inglês com um sotaque forte, contudo Dan não conseguia entender direito.
— O nome dele é... — Amy estava dizendo. — Era... Alistair Oh.
— Idade? — perguntou o policial.
As palavras “sessenta e quatro” saíram da boca de Dan. Ele não tinha ideia de como sabia daquilo, mas lhe ocorreu que Alistair jamais teria 65. Que algum dia ele, Dan, seria mais velho do que Alistair.
— Que roupa estava vestindo? — pressionou o policial, embora a pergunta parecesse incrivelmente estúpida naquelas circunstâncias.
— Paletó de seda... uma camisa muito bonita — respondeu Dan. — Ah, ele sempre usava umas luvas brancas, também. E, tipo, um chapéu redondo...
— Co... — disse Amy. Seu lábio estava tremendo. — Co...
— Coco — completou Dan em voz baixa.
O policial estava anotando tudo, mas Dan sabia que ele não podia estar tratando daquilo como uma operação de resgate. Era uma busca por um corpo. Ninguém podia ter sobrevivido a um desabamento como aquele.
Quando ele se afastou, murmurando umas poucas palavras de condolência, Amy olhou por cima dos escombros.
— Dan...? Olhe...
Bem à direita, um pequeno grupo de homens acabara de chegar. Não se pareciam com os outros turistas e visitantes do parque. A maioria deles vestia ternos azul-marinhos com óculos escuros e sapatos pretos, e em seus ouvidos havia fones conectados a fios embaraçados.
No centro estava um homem idoso e magro, com um sobretudo jogado nos ombros, uma gravata de seda enfiada numa camisa de aparência cara e um chapéu de feltro levemente torto para um lado. Ele avançava num passo apressado, usando uma bengala crivada de joias.
— É aquele cara... — disse Dan. — O que nós vimos em Tóquio, em frente ao metrô.
— O que ele está fazendo aqui? — perguntou Amy.
Dan arregalou os olhos ao ver alguém atrás do velho, uma pessoa que ele e Amy conheciam ainda melhor. Ele aparecera no incêndio que destruíra a casa de Grace. Em Paris e Salzburgo. Ele nunca dissera uma só palavra, mas de algum modo sempre estava por perto.
Não foi preciso que Dan mostrasse a ela. Amy também o viu.
— O Homem de Preto... — ela murmurou, recuando.
Os irmãos se agacharam atrás de um arbusto, rentes ao chão.
— Você consegue ouvir o que o velho está falando pra ele? — perguntou Amy.
Dan ficou de pé. Cobriu a cabeça com o capuz e se aproximou um pouco, tomando o cuidado de ficar no meio da multidão de curiosos que crescia cada vez mais. Eles também falavam sem parar, mas, quando Dan chegou mais perto do homem idoso, conseguiu vê-lo trocando cumprimentos com o policial que acabara de conversar com eles.
O Homem de Preto não parecia estar interessado na conversa. Estava avançando devagar rumo à rocha desabada, de costas para Dan.
O velho e o policial estavam conversando, e Dan conseguiu ouvir trechos do que eles falavam, mas era tudo em coreano. Eles não disseram muita coisa, e o velho parecia irritado e impaciente. Por fim, após se curvar mais algumas vezes, o policial foi embora.
Fazendo um gesto brusco para seu séquito, indicando que deviam ficar onde estavam, o velho começou a caminhar sozinho até o misterioso estranho vestido de preto.
Os dois homens ficaram em silêncio, olhando para os escombros. Dan olhou de relance para Amy, que tinha no rosto uma expressão de terror e gesticulava para que ele voltasse.
Os homens, contudo, estavam virados de costas para ele, por isso Dan chegou mais perto.
Quando o velho começou a falar, suas palavras foram claras.
— Meu sobrinho estava aqui.
O Homem de Preto virou a cabeça, e sua boca mexeu de leve, registrando apenas uma sombra de reação... Mas qual? Compaixão? Vitória? Era impossível decifrar.
Eles pareciam estar discutindo alguma coisa, no entanto Dan não conseguiu entender as palavras.
Então o velho se virou, andando num passo ligeiro até o lugar em que estava sua equipe. Ele acenou com a cabeça, sem olhar para ninguém em particular, mas todos se postaram atrás de sua figura. A comitiva inteira partiu dali em direção à entrada do parque.
Enquanto Dan voltava discretamente para junto de Amy, viu o Homem de Preto se aproximando das ruínas. Andando por entre os escombros, ele parou e agachou. Parecia ter encontrado alguma coisa, talvez uma das relíquias de Hideyoshi, pensou Dan. Não ia demorar muito até que as pedras fossem retiradas dali e todos descobrissem os tesouros. Haveria saques, talvez brigas para decidir a quem eles pertenciam. Todas aquelas cenas que apareciam no noticiário sempre que havia muito dinheiro em jogo.
Mas, por enquanto, tudo parecia apenas um amontoado de pedras. E o objeto que o Homem de Preto tirou dos escombros não pertencia a Hideyoshi.
Quando Dan viu o que era, um grito raspou em sua garganta.
Era um chapéu-coco, amassado e deformado

***

— Oh, meu Deus, crianças, achei que vocês tivessem morrido! — gritou Nellie. — Eu fiquei sabendo do que aconteceu. Vocês estão com uma cara horrível!
Nellie correu até Amy e Dan, carregando Saladin no colo, quando eles chegaram se arrastando ao estacionamento do Parque Nacional de Bukhansan. Ela e o senhor Chung estavam sendo interrogados pela polícia.
Amy ficou com pena do senhor Chung. Ele não parecia nada bem.
Nellie deu um forte abraço em Dan e Amy com um braço só, esmagando o gato, que reclamou com um Prrr abafado.
Distraída, Amy acariciou com os dedos o pelo prateado de Saladin.
— Nós escapamos. É uma longa história, mas o tio Alistair...
A voz dela foi ficando distante. Atrás de Amy, Dan enxugou uma lágrima.
— Pois é, eu sei — disse Nellie. Ela colocou a mão sobre o ombro de Dan, num gesto de condolência. — Vamos lá, é melhor a gente voltar.
No caminho até a casa do tio Alistair, Amy contou a Nellie o que tinha acontecido, relatando tudo até o momento em que viu o chapéu-coco. Nellie assentia com a cabeça, escutando com atenção, e então todos ficaram em silêncio durante o resto da viagem. Dan pensou em alguma coisa para dizer, porém todas soavam estúpidas. Ele era um grande homem. Era muito apegado à família Cahill. Vamos sentir saudade dele.
Ele se deu conta de que não conhecia o tio Alistair de verdade. O tio sabia mil vezes mais coisas sobre eles do que eles sabiam sobre o tio. Ele os traíra, mas no fim havia salvado suas vidas.
Na casa de Alistair, os pássaros trinavam nas árvores, e o horizonte estava pontilhado de nuvens brancas e fofas. Era como se nada tivesse acontecido. Harold, o mordomo de Alistair, foi encontrá-los na porta, com o rosto sombrio e atormentado.
— Sinto muito — disse Amy.
Dan, Amy e Nellie deixaram seus sapatos na entrada e se arrastaram cansados até a cozinha, onde Harold tinha preparado sanduíches. Enquanto Nellie comia, Dan empurrou seu prato para o lado. Ele pôs a mão no bolso e tirou uma folha de papel amassado e um grande dobrão de ouro.
— Esta moeda foi a última coisa que ele me deu...
— O que tem no papel? — perguntou Amy.
Dan alisou a folha em que tinha decifrado a última charada.


— Era isso? — perguntou Amy. — Alkahest era a pista, em vez de Lake Tash?
Dan confirmou com a cabeça.
— Pois é. Alcaeste, o nome da pedra filosofal.
— É uma palavra da alquimia — observou Amy. — Como isso pode ser uma pista se não existe de verdade?
Dan deu de ombros, jogando a moeda no ar.
— Como eu vou saber? Hideyoshi era um nerd da alquimia.
A moeda caiu de volta na mão dele, revelando uma deusa egípcia e algumas palavras incompreensíveis.
Amy arregalou os olhos.
— Peraí! Oh, meu Deus! Me dá essa lapiseira!
Ela agarrou a lapiseira da mão de Dan e rabiscou uma palavra no papel, embaixo das que Dan escrevera:


— Que é isso? — perguntou Nellie.
Amy estava quase saltando por sobre a mesa para alcançar Dan.
— Nós tivemos uma matéria sobre o Egito no ano passado! “Al” significa “de”. “Sakhet” é uma antiga deusa egípcia.
Nellie inclinou a cabeça.
— Sério?
— A mensagem no espelho... — Dan murmurou. Ele precisava admitir que, para uma menina burra, às vezes ela era até bem esperta. — Hideyoshi estava apontando para a próxima pista...
— Nellie — perguntou Amy — nós temos dinheiro para viajar para o Egito?
— Bom, os Kabra abandonaram vocês, mas não voltaram para pegar de volta a grana que me deram. Então é hora de selar os camelos, vamos viajar!
Fez-se um estranho silêncio no recinto.
Dan deu de ombros.
— É... difícil pensar em fazer isso. Depois do que acabou de acontecer...
— Não precisamos pensar nisso agora — disse Nellie. — Olha, se vocês não estão com fome, pelo menos vão tomar banho. Vocês estão fedendo ovo podre. Os dois. Dan, você pode usar o chuveiro de Alistair e Amy pode usar o do banheiro de hóspedes.
Dan precisava admitir que aquilo parecia uma boa ideia. Ele recolheu o guardanapo e se dirigiu para o quarto de Alistair.
O Egito podia esperar. Por enquanto.
Aquele lugar tinha um cheiro gostoso, um cheiro que lembrava o velho Alistair, com fragrância de colônia e roupa limpa. Tudo estava muito arrumado, o que não era surpresa – as fotos alinhadas na cômoda, a pilha de livros de capa dura no criado-mudo, os travesseiros dispostos no ângulo certo – com apenas uns poucos toques casuais, como um par de luvas jogadas do outro lado da cama...
Um par de luvas brancas imundas.
Dan desviou do caminho do banheiro e pegou as luvas. Estavam cobertas de terra e grama e mais alguma coisa... Carvão.
— Amy...? — Dan gritou. — AMY, VEM AQUI!
Um grito de felicidade brotou na sua garganta, mas não chegou a sair quando sua alegria foi esmigalhada por uma constatação que turvou sua vista.
De algum modo, o tio Alistair estava vivo.
E tinha abandonado os dois outra vez.

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