sábado, 31 de maio de 2014

Capítulo 4

Assim que o táxi se misturou à furiosa correnteza de veículos em uma rua principal e eles tiveram certeza de que não estavam sendo seguidos, Nellie disse ao motorista o nome do hotel. Então, se jogou no encosto do assento e deu um suspiro.
— Vocês dois ainda me pagam. Acabei de deixar minha alma gêmea esperando eu voltar do banheiro.
— Não se preocupe — disse Dan. — Você ainda tem aquele seu tempero, o caramono.
— Cardamomo — corrigiu Nellie.
— Nós vamos te compensar por isso — prometeu Amy. — Enfim, acho que encontramos uma coisa.
Amy mostrou o tubo de couro. Desenrolou as velhas fitas gastas e abriu a tampa. Virou o cilindro e sacudiu de leve. Eles prenderam o fôlego quando um pequeno fragmento de pergaminho enrolado caiu na palma da mão de Amy.
O pergaminho estava ressecado e esfarelando nas bordas. Era tão frágil que Amy temia que fosse se desintegrar com um sopro.
— Acho que é uma velha carta — ela disse. — Ou pelo menos parte de uma.
Ela desenrolou o papel devagar.
— Ah, não! Francês de novo? — Dan resmungou.


— Tradução? — Amy pediu a Nellie.
— “E para a grandíssima glória dos descendentes de Luc e de meu Imperador, a pista agora segue caminho para o Palácio do...” — Nellie parou de falar, baixando os óculos de sol para ler. — “... du La Paris”? Palácio do A Paris? Isso não faz sentido. A não ser que a letra L seja uma inicial.
— Então, quem pode ser esse L? — especulou Dan.
— Bom, teve um montão de reis da França que se chamaram Luís — Nellie respondeu. — Um deles perdeu a cabeça, mas ele tinha um palácio chamado Versalhes.
— De qualquer modo, alguma pista foi enviada pelos Lucian para algum palácio — concluiu Amy. — Mas quem será esse B.D.? — Ela deu um suspiro. — Eu esperava que fosse uma mensagem de Napoleão.
— Isso quer dizer que a pista está lá na França? — Dan perguntou.
Amy guardou o papel na pochete, com cuidado.
— Se a gente continuar procurando, mais cedo ou mais tarde isso vai fazer sentido.
Eles estavam tão absortos lendo a carta que nem notaram quando o táxi deixou a rua principal e entrou num bairro mais tranquilo. Palmeiras enfeitavam o boulevard. Flores brotavam em explosões de rosa e roxo.
— Uau! — disse Nellie, abrindo a janela do veículo e colocando a cabeça para fora. — Sinto o cheiro de gente rica.
O táxi entrou numa rua comprida e curva. Amy e Nellie levaram um susto e Dan gritou Legal! quando o hotel surgiu diante deles.
Era uma vasta mansão branca. Longos gramados verdes estendiam-se até o pórtico da entrada. Um casal vestindo roupões felpudos caminhava num pátio lateral, em direção a uma piscina azul-turquesa e um garoto de uniforme foi correndo conduzi-los a uma cabine. Garçons contornavam as cadeiras, equilibrando bandejas com bebidas geladas. Do outro lado do Nilo, assomavam as grandes pirâmides de Gizé, surgindo como um sonho naquela atmosfera amarelada.
Nellie deu um assobio.
— Uau, estou pronta pra me acostumar com esse estilo de vida.
— Como vamos pagar um hotel desses? — perguntou Amy.
— Ainda temos o dinheiro que os Kabra me deram — Nellie respondeu. — Que agora nos pertence totalmente. Nós merecemos.
— Merecemos mesmo — concordou Amy, lembrando a traição de lan.
O senhor Mclntyre, advogado de Grace, lhes dissera desde o começo: Não confiem em ninguém. Ela não devia ter esquecido aquilo nem por um instante. Em vez disso, tinha se perdido nos olhos escuros de lan e caído em sua lábia. Burra. Muito burra, Amy. Ela ia muito bem nas matérias da escola, mas em matéria de emoções da vida real só tirava zero.
— Mesmo assim, podemos torrar nossa grana rapidinho aqui — disse Nellie. — Talvez a gente devesse ficar em outro lugar.
O táxi já estava parado em frente ao hotel. Um funcionário elegante correu para abrir a porta. Outro, para buscar a bagagem. Antes que pudessem protestar, foram conduzidos para fora do veículo e o carro já tinha ido embora.
O funcionário do hotel acomodou no carrinho suas mochilas maltrapilhas e malas surradas como se fossem bagagens delicadas. Ninguém olhou feio para suas camisetas e jeans amassados.
— Bem-vindos ao Hotel Excelsior — cumprimentou o primeiro funcionário. — Acompanhem-me, por favor.
Eles foram atrás do homem enquanto Nellie arrumava o cabelo, Amy ajeitava a camiseta e Dan tentava pegar sua mochila do carrinho.
Surgiram mais atendentes com largos sorrisos no balcão de recepção. Um cavalheiro magro e bonito acenou para que se aproximassem do balcão.
— Por favor, sejam bem-vindos ao Hotel Excelsior. Poderiam me informar em nome de quem está a reserva?
— Hã... — Nellie hesitou.
— Oh... — disse Dan.
— Oh?
— Oh — Dan afirmou.
— Sinto muito, a reserva não está aparecendo — o atendente explicou, consultando o computador. — Posso recomendar vários outros hotéis... Com licença — disse quando o telefone tocou.
Sua postura ficou ainda mais ereta enquanto escutava por um momento. Olhou para eles, depois virou de costas e falou em voz baixa ao telefone.
— Ah, certamente, senhor. Vou providenciar imediatamente — desligou e voltou-se para a tela do computador. — Oh. É claro. A reserva do senhor Oh. Reservamos a suíte Assuã, como sempre.
— Suíte? — exclamou Amy.
— Com o tradicional desconto da família, é claro — ele acrescentou ao deslizar o formulário na direção de Nellie. — Queira assinar, por gentileza.
Amy espiou o preço. Para sua surpresa, não era muito mais caro que o pulgueiro onde tinham se hospedado em Paris. Nellie assinou o formulário e o atendente lhe entregou três cartões que serviam como chaves.
Ele esticou o braço para tocar o sininho.
— O funcionário vai lhes mostrar os aposentos.
— Desconto de família? — sussurrou Amy.
— Nós somos da família dele — disse Dan. — Tecnicamente.
— Essa família Cahill maluca de vocês se espalhou mesmo no mundo inteiro — observou Nellie, admirando os enormes vasos cheios de ramos floridos. — Por isso, tecnicamente, vocês têm parentes em todo lugar. Pensem em todos os hotéis cinco estrelas que a gente pode visitar. Basta arranjar os cartões dos programas de milhas...
— Xiu — Amy alertou quando eles entraram no elevador.
O funcionário passou o cartão deles por uma abertura, depois apertou o 13.
Quando as portas do elevador se abriram, eles foram conduzidos até o corredor. Só havia uma porta.
— Cadê o resto dos quartos? — perguntou Nellie.
— A suíte ocupa o andar inteiro — o funcionário respondeu. — Acho que vocês vão gostar. — Ele passou o cartão na abertura. — Vocês também têm que usar o cartão no elevador. Só vocês têm acesso a este andar.
O funcionário abriu a porta e eles ficaram espantados. Janelas que iam do chão ao teto proporcionavam uma vista do Nilo e das pirâmides de Gizé do outro lado. Eles estavam numa sala de estar com uma poltrona, dois sofás, uma copa e uma escrivaninha. Quando o funcionário abriu a porta do dormitório, Dan praticamente dançou atrás dele.
— A gente tem três banheiros! — ele cantarolou.
NeIlie revirou a bolsa, tirou uma gorjeta e o funcionário sorridente partiu, fechando a porta suavemente. Assim que ele foi embora, Amy se jogou na poltrona, Nellie ficou descalça e Dan pulou num sofá. Todos gritaram em coro:
— Uhu!
Nellie soltou Saladin da gaiolinha.
— Bem-vindo à boa vida, gatinho — Nellie deu um beijo no topo de sua cabeça lustrosa.
Saladin vasculhou o recinto, farejando, pulou em cima da escrivaninha, andou no encosto do sofá, escolheu a maior e mais fofa almofada, se aconchegou nela e piscou para eles como se dissesse: Nada mau.
Dan pulou do sofá e começou a xeretar tudo, atualizando Amy e Nellie a cada descoberta:
— A escrivaninha está cheia de material de papelaria! Aqui tem um guia turístico! Olha, tem um guarda-chuva no closet! — Ele voltou para o quarto, sumiu dentro do armário e saiu vestindo um roupão felpudo tão comprido que se arrastava atrás dele no chão. Abriu uma gaveta do criado-mudo. — Uma Bíblia! — Depois fechou e foi fuçar embaixo dos travesseiros.
Nellie e Amy entraram no quarto atrás de Dan.
— O que você está procurando? — perguntou Amy. — A fada do dente?
— Chocolate. Eles não põem chocolate embaixo do travesseiro nesses hotéis chiques?
Nellie deu uma risadinha.
— Não é embaixo. É em cima do travesseiro, depois que arrumam a cama.
Ele desapareceu dentro de um banheiro.
— Vocês deviam ver quanto xampu tem aqui! — Dan enfiou a cabeça pela porta. — Eu sei como vocês meninas adooooram xampu. — disse, batendo os cílios para elas.
Amy jogou um travesseiro nele.
Dan desviou e correu de volta para a sala de estar.
— Atenção, nave mãe. Acabo de encontrar o frigobar! — ele anunciou.
Nellie se espreguiçou:
— Bom, eu vou entrar naquela banheira, despejar um galão de banho de espuma e não saio de lá enquanto a comida não chegar.
— Que comida?
— A comida que vocês vão pedir agora pro serviço de quarto — Nellie esclareceu. — Não deixe o Dan saquear o frigobar, senão vamos à falência em dois segundos.
Nellie pegou um roupão, seu iPod e enfiou os fones no ouvido.
— Podem pirar nesse cardápio, estou morrendo de fome — ela falou tão alto que, sem dúvida, a música já estava arrebentando seus ouvidos.
Ela deu tchauzinho com os dedos e fechou a porta do banheiro. Amy ouviu as torneiras jorrando no nível máximo.
Amy foi para a sala de estar. Dan estava comendo um doce, parado em frente à única porta da suíte que estava fechada. Ele já tinha conferido o quarto inteiro.
— Dan, a Nellie falou pra não saquear o frigobar. Isso aí é muito ca... — Amy de repente percebeu que Dan estava totalmente imóvel, olhando para o outro lado do quarto. Não estava nem mastigando.
— Que foi, seu tonto? É uma porta. P-O-R-T-A.
— O funcionário não disse que tem uma suíte por andar? Tudo bem que esse quarto parece um palácio, mas não ocupa o andar inteiro. Estamos na ala leste do hotel. Tinha sete janelas deste lado, e aqui nós só temos quatro.
Amy não se deu ao trabalho de perguntar como Dan tinha percebido aquilo. Seu irmão cabeçudo tinha um cérebro de computador para este tipo de coisa.
Por isso ela não disse nada enquanto ele andava na direção da porta, com aquele roupão enorme que o deixava ridículo. Ele se ajoelhou em frente à porta, que tinha uma placa decorativa de latão com uma fechadura antiquada.
— Olhe essa fechadura. Não te lembra alguma coisa? — Dan perguntou.
— Não — disse Amy. Ela se ajoelhou para olhar com mais atenção. Demorou um bom tempo, mas depois concluiu: — É o símbolo dos Ekaterina. Aquela criatura com asas, parecida com um dragão.
— Por que tem uma fechadura se o resto das portas abre com um cartão? A chave disso aqui deve ser bem estranha — comentou Dan, olhando em volta. — Mas onde está?
— Você acha que está aqui? Dentro do quarto?
Dan de repente ficou de pé num pulo.
— Ei, Amy, lembra aquelas coisas chatas que você leu pra mim no avião? Você não disse que no Cairo quase nunca chove?
— Sim, muito pouco e só entre dezembro e março — disse Amy.
— Então — disse Dan, correndo para dentro do closet — por que tem um guarda-chuva aqui?
Ele esticou o braço e tirou o guarda-chuva.
— Achei que fosse algum tipo de desenho egípcio. — E mostrou para Amy. — Mas veja...
Ele desparafusou o cabo, que saiu na sua mão. Amy olhou para os desenhos esculpidos. Combinavam com a placa de latão da porta. E a pontinha tinha o mesmo formato que a fechadura.
Dan tirou o roupão. Pegou o cabo e enfiou no buraco. Encaixou sem dificuldade. Olhou para Amy. Ela assentiu com a cabeça.
Ele girou a maçaneta e a porta se abriu. Devagar, eles entraram.
Mostruários de acrílico ocupavam uma larga e comprida galeria. Uma série de arcos conectava a outras galerias, uma depois da outra. Eles viram de relance complexas máquinas e plantas de engenharia. Desenhos, fotos, mapas, retratos e textos emoldurados forravam as paredes. Quando eles atravessaram a soleira da porta, luzes fortes no teto se acenderam automaticamente. Os objetos nos mostruários rodavam lentamente. Hologramas tridimensionais de repente apareceram e começaram a girar.
Dentro de um dos mostruários, rodava uma coisa embrulhada em papel-alumínio.
— É o burrito para micro-ondas inventado pelo Alistair! — exclamou Dan. — Esta deve ser a base secreta dos Ekaterina!
Ouviu-se uma batida abafada, mas definitiva, quando a porta se fechou atrás deles. Amy deu um pulo para a frente.
— Está trancada. Mas pelo menos nós estamos com a chave.
Dan olhou para suas mãos vazias.
— Estamos?

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