— Não precisa falar nada — disse Dan. — Eu sei que a culpa é minha. Mas esse lugar é tão impressionante que eu até esqueci da chave.
— Como a gente vai sair daqui?
— A gente vai descobrir um jeito. Vamos lá, é hora de explorar.
— Não sei se é uma boa ideia — ponderou Amy. — E se tiver alguma armadilha?
— Com certeza nós já teríamos caído nela — Dan retrucou.
Amy baixou a voz e falou num sussurro:
— Por que não tem ninguém aqui? As outras bases secretas estavam cheias de gente.
— Porque a gente deu sorte. Vamos lá. Não seja frouxa.
Dan avançou depressa. Não conseguia resistir àquela profusão de genialidade diante de seus olhos. Hologramas brilhavam, luzinhas piscavam. Num canto, uma máquina começou a chacoalhar, cuspindo fita de teletipo, como num filme antigo. Havia plantas de invenções projetadas numa das paredes. Ele correu pela galeria, gritando:
— Caramba. Thomas Edison era um Cahill! Isso não é demais? A lâmpada!
Amy caminhou mais devagar entre as peças expostas. Enquanto Dan rodeava o projeto de barco a vapor de Robert Fulton, ela olhava o esquema do sistema de armas de um submarino.
Dan deu um berro:
— O descaroçador de algodão! Eli Whitney era um Ekat. Gênio!
À frente, Amy viu uma cortina preta. Parecia sugar toda a energia da sala.
— Amy! Nós inventamos a bicicleta!
Devagar, ela andou na direção da cortina. Ao se aproximar, percebeu que não era uma cortina, mas, sim, uma parede de sombra, que de algum modo era gerada por uma máquina que lançava luz (ou seria a ausência de luz? Como aquilo era possível?) num canto da sala.
— A máquina de costura. Elias Howe, você é demais! — comemorou Dan.
Hesitante, ela atravessou a sombra, onde, à frente, havia uma tela branca. Assim que se aproximou, a projeção foi ativada.
Ela levou quase um minuto inteiro para entender. Primeiro, eram só plantas de engenharia piscando na tela. Depois, números. Ela ouviu Dan berrando alguma coisa sobre o motor de combustão interna.
— Mandou bem, Marie Curie! Radioatividade!
Teve início uma apresentação de slides, fotografias em preto e branco. Ela tapou a boca com as mãos.
Dan estava logo ali fora da sombra.
— Essas invenções são tão radicais. Nós mudamos a História!
— Não fomos nós — sussurrou Amy.
Outra série de imagens começou a passar.
— Não fomos nós, Dan! — de repente ela gritou.
Ele atravessou a cortina de sombra.
— O que é isso? — perguntou, examinando o esquema e depois olhando uma velha foto em preto e branco.
Havia mais imagens por vir nos slides. Amy puxou-o de volta para a galeria iluminada.
— Ei! — ele protestou. — O que você está fazendo? Quero ver!
— Não — respondeu Amy com voz firme. — Você não quer. Não quer ver como nós inventamos um sistema de injeção de gás venenoso que matou milhões de pessoas.
A cor se esvaiu do rosto de Dan.
— Como nós descobrimos um jeito de dividir o átomo e criar uma bomba capaz de aniquilar uma cidade inteira!
O calor fez o rosto de Dan ficar todo vermelho. A não ser pela pequena cicatriz embaixo do seu olho, que continuou branca. Era com essa cara que ele ficava quando estava bravo de verdade. Ela devia parar. Mas não parou. Não conseguiu parar.
— Armas químicas, Dan? Isso é radical? — Amy não sabia por que estava tão brava com o irmão. — Por acaso matar pessoas é muito legal?
Ela recuou, com as mãos tremendo. Pela primeira vez desde que era criancinha, tinha se esforçado para fazer o irmão chorar. O que era estranho, pois quem queria chorar era ela. Queria bater os pés no chão com força. Queria gritar. Mas seus olhos estavam secos.
— E se a gente for Ekaterina? — ela sussurrou. — E se toda essa maldade fizer parte de nós? Estiver impressa no nosso DNA?
Percebendo o medo no rosto da irmã, Dan também ficou assustado.
— Todos os clãs tiveram pessoas ruins — ele disse. — E também há muitos Ekat do bem. Afinal, onde a gente estaria sem Thomas Edison? No escuro, pois é. De qualquer modo, não sabemos de que clã somos. Só sabemos que somos Cahill. Se eu fosse escolher um clã pelos seus vilões, não ia querer fazer parte de nenhum deles.
Amy deixou seu corpo desabar no chão e apoiou a cabeça na parede.
— O que estamos fazendo aqui? Quanto mais a gente descobre, mais eu me pergunto: por que a Grace ia querer que nós soubéssemos que estamos ligados a tanta maldade?
— Eu só estava falando besteira — desabafou Dan. — Dizer que nós somos responsáveis por isso — ele apontou a cortina preta com a cabeça — é que nem dizer que eu inventei o descaroçador de algodão.
Amy deu um sorriso murcho.
— Isso é verdade. Mas a Grace... Ela sempre protegeu a gente. Ela nos amava, Danny. Ou pelo menos eu achava que sim.
Dan estava atônito demais até para reclamar que ela o chamara de “Danny”, apelido proibido desde que ele tinha seis anos.
— Achava que sim? O que você quer dizer com isso?
— Desde que essa busca começou, nós nos perguntamos por que a Grace não nos ajudou — Amy continuou — Ela não deixou nenhuma mensagem privilegiada pra gente. Nada. Jogou a gente junto com todo o resto da família Cahill.
— Como se a gente não fosse especial pra ela — disse Dan.
Ele esperava que Amy se apressasse em defender Grace, como sempre fizera. Aquilo o irritava, mas era algo que ele também precisava ouvir.
No entanto, ela concordou com a cabeça.
— Então, será que a gente conhecia ela de verdade? Pense bem. Havia essa coisa enorme na vida dela e a gente nem sabia. Pertencer família Cahill era uma parte muito importante da vida dela. Como a gente podia conhecer nossa avó, conhecer de verdade, sem saber de tudo isso? — Amy engoliu em seco. — Eu fico me sentindo tão...
— Burra? — provocou Dan. — Ei, fale por você, viu?
Amy nem ficou irritada.
— O senhor Mclntyre nos disse pra não confiar em ninguém. E se isso incluir... a Grace?
Amy fechou os olhos. Odiava dizer essas coisas. Odiava pensar essas coisas. Mas agora não conseguia parar. Ela sempre acabava confiando em pessoas que não mereciam e aquilo não era de fato muita burrice? lan a fizera de idiota e ela sem dúvida tinha cooperado. Se queria vencer a busca, precisava ficar mais esperta.
— Aqueles passeios, quando ela nos levava a museus e bibliotecas de universidades. Ela estava me mostrando como se fazia para pesquisar. Para eu não ficar intimidada se precisasse entrar num lugar daqueles. O que ela fez depois que fomos ao aquário, Dan?
— Fez eu repetir os nomes de todos os peixes que eu vi — lembrou Dan. — E também os nomes em latim. Eu achava que era um jogo.
— Ela estava treinando sua memória fotográfica — concluiu Amy. — Todo esse tempo, ela estava preparando a gente. — Ela fez um gesto mostrando a galeria. — Pra isso! E por que ela ia querer que a gente soubesse? Nós já mentimos, trapaceamos e roubamos pra chegar aqui. Basicamente, viramos criminosos.
— Eu sei. E isso não é legal?
A voz dele vacilava e ele não olhou nos olhos de Amy. Ela sabia que o irmão estava tentando distraí-la. Tinha medo do que ela ia dizer. Mas ela tinha que ir em frente e falar:
— O que mais a gente vai fazer antes que isso acabe? — perguntou. — Por que a Grace ia querer que a gente se expusesse a isso? — Sua voz virou um sussurro. — Será que ela também era do mal?
— Não diga isso! — gritou Dan.
Ele já estava cansado daquela nova Amy. Queria sacudir a irmã até que a velha Amy voltasse.
Ele mal conseguia se lembrar dos pais. Grace era sua única lembrança de um tempo em que se sentia seguro. Amy não podia tirar aquilo dele.
— Cala a boca! — ele disse num tom hostil.
Dan nunca tinha mandado a irmã calar a boca. Chamava-a de tonta ou imbecil ou pentelha, mas nunca a mandara calar a boca. Eles não tinham permissão de dizer essas coisas um para o outro. Era uma regra imposta por seus pais e, mesmo que ele não conseguisse se lembrar deles dizendo aquilo, Amy se lembrava.
Mas Dan queria que ela calasse a boca. Se não tivesse medo de parecer uma criancinha, ia tapar os ouvidos com as mãos. Ele podia ver pela cara dela que ela sabia ter ido longe demais. Mas a irmã de repente tinha virado a própria advogada do diabo.
— Por que ela não ajudou a gente? Por quê? Pense bem. Nós demos sorte que a Nellie pôde vir junto. Será que a Grace esperava que a gente rodasse o mundo sozinhos? Enfrentando esses perigos terríveis? Se ela nos amava, por que não ia querer nos proteger? E a história dos clãs da família? Ela devia saber a qual clã a gente pertence. Todos os outros sabem. Irina. A família Holt sabe que é dos Tomas. Até Natalie e... — Amy engoliu em seco. E a pessoa inominável. — E o irmão dela sabem que são Lucian. Nós somos só... nós.
— Para com isso — disse Dan.
Sua voz estava trêmula. Ficar se perguntando por que Grace não tinha deixado algum tipo de mensagem para eles era uma coisa. Ele também tinha ficado bravo com a avó. Mas dizer que Grace era uma pessoa monstruosa, treinando os dois para aquilo... isso o assustava.
Não podia ser verdade. Se fosse, alguma coisa dentro dele ia se despedaçar. Às vezes se sentia excluído quando Grace ainda estava viva. Amy era mais parecida com a avó, interessada em história e museus. Mas agora, era como se ela estivesse verbalizando todos os pensamentos ruins que ele tivera desde o funeral de Grace. Não era isso que Amy tinha que fazer. Ela tinha que defender a avó. Se Amy não acreditava mais em Grace, o que restava para eles? Dan virou de costas, com os olhos ardendo, e se afastou da irmã.
Amy ficou no chão. Pousou a mão no colar de jade que tinha pertencido à avó e que nunca tirava do pescoço. Amy sentia uma espécie de enjoo por dentro. Algo oco, que não estava ali antes. Era a ausência de uma coisa da qual ela dependia: o amor de Grace.
Ela se foi, pensou Amy. Não está mais com a gente.
Com a cabeça entre as mãos, ouviu o eco dos passos de Dan, que avançava pela galeria tentando se afastar da irmã. O barulho cessou. Um longo silêncio fez Amy erguer a cabeça. Dan caminhara até a terceira galeria. Estava estático, parado em frente a um mostruário. Algo na tensão dos ombros dele deixou Amy instantaneamente alerta.
— O que foi? — ela perguntou em voz alta.
Ele não respondeu.
Amy levantou e andou até Dan. Ele estava parado diante de três mostruários enfileirados. Cada um continha uma estátua de Sakhet, a deusa com cabeça de leão. As três eram idênticas: tinham apenas uns 20 centímetros de altura e pareciam feitas de ouro maciço. Apenas os olhos eram diferentes. Uma tinha olhos brilhantes de pedras verdes, outra, de pedras vermelhas, e a terceira, de pedras azuis. Cada estátua flutuava e girava devagar sob o foco de uma luz branca.
— Deve ser isso que estamos procurando — sussurrou Amy. Ela esqueceu a discussão por um instante. As estátuas possuíam uma beleza fria, como joias. — Os Ekat já encontraram.
Dan olhou para um monitor de computador embutido num dos mostruários. Encostou o dedo numa tela sensível ao toque.
Um holograma apareceu. Era um diagrama da Sakhet. A imagem girou, mostrando um corte transversal. Na tela do computador, eles leram:
PRIMEIRA SAKHET DESCOBERTA PELA EXPEDIÇÃO DE NAPOLEÃO NA PIRÂMIDE DA RAINHA, EM GIZÉ. ACREDITA-SE QUE TENHA SIDO DEIXADA POR KATHERINE. ENVIADA PARA O LOUVRE E RECUPERADA. DESENHO ESCONDIDO DESCOBERTO DENTRO DA ESTÁTUA.
Um desenho apareceu na tela.
Eles se aproximaram do outro mostruário, onde estava a Sakhet de olhos verdes. Dan tocou na tela.
SEGUNDA SAKHET ENCONTRADA PELO EKATERINA HOWARD CARTER, EM 1916, NA TUMBA DE HATSHEPSUT, EM TEBAS. PRIMEIRAS INVESTIGAÇÕES NÃO DERAM RESULTADO. ESTÁTUA AGORA FOI INVESTIGADA COM TÉCNICAS AVANÇADAS, INCLUINDO RADIOGRAFIA DIGITAL E TOMOGRAFIA COMPUTADORIZADA EM 3-D. RESULTADO: A ESTÁTUA É SÓLIDA, SEM COMPARTIMENTOS SECRETOS.
Eles avançaram até a próxima Sakhet. Outra vez, Dan encostou na tela.
COMPRADA POR BAE OH, 1965.
COMPARTIMENTO SECRETO DESCOBERTO POR ALISTAIR OH.
Amy voltou para a segunda Sakhet, a encontrada por Howard Carter. Ela sabia que Carter fora um arqueólogo famoso. Anos depois, em 1922, ele encontraria a tumba do rei Tutancâmon.
— Aqui diz que eles estudaram os mapas durante anos — disse Dan. — Os dois mapas são parecidos, mas têm diferenças. Ninguém nunca conseguiu entender o que isso significa. Eles acham que são mapas de tumbas. Mas eles não combinam com nenhuma que tenha sido descoberta até agora.
— Não é estranho que esta estátua não tenha um compartimento secreto? — Amy perguntou. — Pode ser que Howard Carter tenha encontrado a Sakhet errada. Talvez exista outra em algum lugar.
Eles estavam tão absortos examinando as estátuas que nem ouviram o toc-toc de uma bengala.
— Tem toda a razão, mocinha — concordou Bae Oh. — Também acredito nisso. E acredito também que meu sobrinho possa estar com ela.
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