Bzzzzz...
O celular de Amy estava vibrando.
Ela olhou ao redor, checando os passageiros da van. No banco da frente, Eisenhower Holt discutia com a mulher, Mary-Todd, que estava ao volante. No banco logo atrás, as irmãs Madison e Reagan Holt, de 11 anos, competiam para ver quem conseguia lançar mais catotas de nariz no cabelo do irmão mais velho, Hamilton. Arnold, o pit bull da família, latia esfomeado, abocanhando os pequenos projéteis em pleno voo com suas mandíbulas gigantes.
— Parem com isso, ele vai me matar! — gritou Hamilton.
— Essa é a ideia — respondeu Madison, batendo palmas.
— Sherwood é a floresta, meu bem — Mary-Todd insistia com o marido. — O detetive era Sherlock.
— Depois a gente olha na internet! — declarou Eisenhower. — Só devo lhe lembrar, Mary-Todd, que mediram meu Q.I. na academia militar em West Point e o resultado foi quase perfeito: 100. Bom, quer dizer, 89... mas eu nem tinha treinado!
— Cem é considerado normal, meu pudinzinho — respondeu Mary-Todd.
— Normalidade é a inimiga da criatividade — Eisenhower bufou. — Um Holt nunca é normal, como foi demonstrado por nossa astuciosa captura dos irmãos Cahill!
Bzzzz...
Amy avançou a mão até o bolso esquerdo da calça e tirou o celular, tomando o cuidado de impedir que os outros vissem. Do lado direito ela estava espremida contra Alistair, que espumava de raiva. Ele, por sua vez, estava espremido contra Dan, que parecia ausente, lendo um punhado de panfletos turísticos que os Holt tinham largado no chão da van.
Ela dirigiu os olhos rapidamente para a tela do celular: GOMEZ, NELLIE.
Amy abafou um grito e lançou um olhar intenso para Alistair e Dan, mostrando-lhes a tela na altura da cintura.
Nellie estava viva!
— AÊÊÊ! LEGAL! — exclamou Dan.
— O moleque concorda comigo! — disse Eisenhower com um sorriso, virando a cabeça para o fundo da van. — Garoto esperto. Você ainda vai longe. E vai com a gente... como prisioneiro! Hahaha!
Toda a família Holt caiu na gargalhada, exceto Arnold, que parecia confuso com a repentina ausência de lanchinhos voadores.
— Pena que, mesmo com tanta esperteza, você não descobriu que a gente estava na cola de vocês — Eisenhower continuou. — Com a nossa tecnologia patenteada de hackeamento, primeiro a gente hackeou o rastreador que estava no gato... até descobrir que o gato era seu tio!
Madison e Reagan olhavam para ele, totalmente admiradas com a esperteza do pai.
— Então seguimos seu tio até o aeroporto, onde ordenei que tentássemos o maior feito tecnológico de todos: invadir o sistema do serviço de passagens da companhia aérea!
— Mas daí eu lembrei que a gente só precisava seguir a limusine — Mary-Todd se pronunciou.
Madison se meteu:
— Quando chegamos no outro aeroporto, nós vimos vocês entrarem no jato. Daí foi só falar com aquele piloto gato, o Fabio. Perguntamos pra onde vocês estavam indo — ela sorriu — e ele contou pra gente.
— Rauff — Arnold concordou.
— Então — disse Eisenhower — conseguimos fretar nosso próprio voo para o Japão. Chegamos no aeroporto antes e esperamos vocês chegarem, seguindo cada passo até o golpe final: hackear o laptop para surrupiar todas as suas informações! E agora que vocês três estão nas minhas mãos, posso realizar meu objetivo de vida. Não só vou encontrar as 39 pistas primeiro, como também vou colocar o nome dos Holt onde ele merece estar: bem no topo do brasão dos Tomas. A História deixará de ver os Holt como boçais. Não vamos mais ser a ovelha negra, a mancha na cueca da família, uma reles nota de rodapé na lenda dos Tomas. E vocês vão nos ajudar a cumprir nosso destino, nos levando justamente até essa coisa que a pesquisa de vocês revelou: a próxima pista, que está nos túneis de Tóquio!
— Você pensou tudo isso sozinho? — Amy perguntou, mal conseguindo conter o alívio que sentia por saber que Nellie estava bem.
— Uns 53 por cento.
— Mais tipo uns 47 — completou Mary-Todd.
— Eu sabia que tinha alguma coisa errada com a minha conta — Eisenhower comentou.
— Hã, pai? Fui eu que fiz todos esses lances tecnológicos — choramingou Reagan.
— Pai, o quê? — berrou Eisenhower.
— Senhor pai — disse Reagan.
— Seus argumentos são tão imbecis quanto a sua conversa — Alistair não se conteve. Sua voz estava rouca, descontrolada. — Você não conseguiu nada hackeando o sistema. Você roubou meu mapa, seu falastrão.
— Tio Alistair! — disse Amy.
Ela nunca tinha visto o tio daquele jeito.
— Tem alguém miando aí atrás? — disse Eisenhower. — Será que é um E-kat?
— Raurrr? — fez Arnold, babando ao ouvir a menção a um gato.
Alistair soltou uma risada desafiadora.
— Por que vocês acham que vão conseguir ler esse mapa do jeito certo? Está escrito em japonês.
— Ahá! Os Holt não dormem no ponto! — Eisenhower trovejou. — Eu escutei você atrás da porta, falando de uma velha cripta subterrânea. Então vamos começar... pelo bairro das criptas subterrâneas. Uahaha!
A van deu uma guinada para a esquerda.
Dan ergueu os olhos de um mapa do metrô de Tóquio. Seu rosto parecia iluminado, como ficava sempre que ele decifrava um código.
— Cripta? Acho que ia ser melhor se a gente conferisse os túneis do metrô.
A van deu uma guinada para a direita.
— Preciso fazer xixi — anunciou Madison.
O veículo parou no acostamento cantando os pneus.
— Dá para alguém decidir de uma vez para onde vamos? — Mary-Todd gritou.
Enquanto os Holt retomavam suas inúmeras discussões, Alistair sussurrou para Dan:
— Os túneis do metrô, meu rapaz? Explique melhor.
— Primeiro, eu decorei seu mapa — Dan começou a falar com um entusiasmo meio excessivo.
— Xiiiiu! — fez Amy.
— Os túneis secretos e o metrô — Dan continuou. — Eles se encaixam... quase perfeitamente! Talvez o metrô tenha sido construído dentro dos túneis que já existiam!
Os Holt ficaram quietos de repente.
— Dan... — avisou Amy — você está contando isso pra eles!
Dan ergueu o olhar, confuso.
— Eu estava contando pro tio Alistair.
— Mas nós ou-viii-mos — Reagan disse num tom de provocação e mostrou a língua. — Além disso, se não contasse pra nós, ia virar presunto.
— Rauff — fez Arnold, exibindo seus incisivos que gotejavam saliva.
O rosto de Dan ficou branco. Ele lançou um olhar culpado para Amy e Alistair, cujo rosto de repente se fechara.
— Hã, quer dizer... o negócio é que, na verdade, não encaixa direito. Acho que eu me enganei. Porque... tipo... tem uma diferença enorme. No meio do mapa antigo, tem um cruzamento com uma sala grande. No mapa do metrô, os trilhos são paralelos. Por isso... pois é, não deve ser o lugar certo...
— O lugar onde os dois mapas são diferentes é justamente onde pode estar o segredo! — Eisenhower concluiu.
— Brilhante como sempre! — disse Mary-Todd.
Amy soltou um resmungo. Quanto mais burro Dan ficava, mais crescia a inteligência de Eisenhower Holt.
— Legal — disse Hamilton com um risinho zombeteiro.
De repente, Eisenhower voltou-se para Dan com os olhos espremidos.
— Olha lá, vocês não estão tentando atrair a gente pra uma armadilha, né? A gente não é tão burro quanto parece. Quer dizer... enfim.
— Bom... — Dan olhava para Amy e Alistair, sem saber o que fazer. — Tem estações de metrô dos dois lados. Acho que a mais próxima é Yotsuya, que fica na ponta norte.
— Então, vamos para a que fica na ponta sul — ordenou Eisenhower.
A van voltou para a avenida, dando outra guinada.
— Agora eu preciso mesmo fazer xixi — disse Madison.
***
Eles esperaram em silêncio até o trem partir da estação Nagatacho. Agora eles eram os únicos na plataforma do metrô. O horário dos trens, que Alistair pegara com o atendente, informava que o próximo vagão chegaria às 17h40. Ele conferiu seu relógio.
Então olhou para os trilhos. Os trilhos escuros, estreitos, que levavam para o interior de um túnel preto como piche dos dois lados.
— São 17h17 — ele disse com a voz trêmula. — Temos exatamente 23 minutos.
Eisenhower avançou até a beira da plataforma.
— Tropas, formação!
— Eu quero ir na frente! — pediu Madison.
— Ela deixou a gente esperando enquanto estava no banheiro — reclamou Reagan. — Eu posso ir primeiro? Por favor?
— É quase aniversário da mamãe — lembrou Hamilton.
— Rauff— disse Arnold, mergulhando no vão do metrô para perseguir um rato imundo que cruzava os trilhos apressado.
— Cada Holt por si! — Eisenhower gritou. Em seguida ele tirou do bolso um par de luvas de jardinagem verdes, calçou-as e desceu pela beira do vão. — Cuidado pra não encostar no quarto trilho!
— Agora eu preciso mesmo fazer xixi — disse Madison.
— Terceiro, meu pãozinho de mel — corrigiu Mary-Todd.
Enquanto Madison e Reagan o seguiam, Alistair agarrou os braços de Dan e Amy e ficou alguns passos para trás. Estava tentando fugir. Porém Mary-Todd e Hamilton postaram-se no caminho dele, de braços cruzados.
— Na-na-ni-na-não! — disse Hamilton.
— Boa tentativa, tio — sussurrou Dan.
Eram 17h19. Faltavam 21 minutos.
Dan suspirou e desceu até o trilho, seguido de Amy, Alistair e dos Holt que restavam. Um líquido, escuro feito tinta, corria entre os trilhos. Um papel de chiclete passou voando. À frente deles, o túnel estava mergulhado na escuridão. Dan sentiu tontura. Ele e Amy não tinham muita sorte em lugares subterrâneos. Imagens começaram a tremular em sua mente. Fugir... fugir... de Jonah Wizard num museu subterrâneo em Veneza... dos Kabra nas Catacumbas de Paris... de um trem... de uma lembrança... Ele ainda podia sentir a mão de Amy tirando-o da frente do metrô que se aproximava em Paris, sua mochila sumindo sob toneladas de aço em alta velocidade, o grito brotando de sua garganta. Para qualquer outra pessoa, a foto desbotada que ele guardava dentro daquela mochila – de um casal sorridente – pareceria borrada e desinteressante. Mas para Dan era tão importante quanto a sua própria vida. Ele havia olhado todos os dias para aquela foto, decorado cada detalhe. Era a única recordação, a única imagem que lhe restava dos pais, de quem ele mal se lembrava. E agora estava perdida, abandonada em outro continente.
— Um-dois-três-quatro, um-dois-três-quatro... — Eisenhower contava ritmado.
Amy puxou Dan para a frente, afastando a lembrança da mente dele. Splash-splash-splash-tchuc faziam seus passos.
— Tchuc? — ele gemeu.
— Nem queira saber — disse Amy.
Mesmo na escuridão quase completa, Dan notou que o rosto dela estava branco como papel.
Eles continuaram avançando pelo meio da via para evitar o terceiro trilho, até que a luz decrescente da estação atrás deles sumiu por completo.
— Fazer reconhecimento! — Eisenhower gritou.
As mãos de Dan tremiam enquanto ele iluminava o mapa do metrô com a lanterna de bolso. À frente, a luz da próxima estação estava quase invisível. Eles já haviam percorrido metade do caminho.
— De acordo com o mapa — disse Dan — devíamos estar chegando perto agora. O cruzamento deveria ficar à esquerda.
— Descansar! — Eisenhower ordenou. — Examinar métodos ocultos de saída!
Amy estendeu a mão do lado esquerdo, tateando a superfície coberta de limo.
— Aqui não tem nada além de uma parede.
— Continue tentando — disse Eisenhower.
Dan empurrou e socou feito um desesperado, mas a parede era sólida. Cimento grosso. Ele conferiu o seu relógio, que já estava perdendo a capacidade de brilhar no escuro.
17h30.
— E-essa foi uma ideia bem estúpida — disse, e sua voz ecoou pelo túnel. — Olha, temos 10 minutos. Faz 11 minutos que a gente saiu da estação. Só temos o tempo de voltar antes que...
— Abortar missão! — latiu Eisenhower. — Alinhar à esquerda! E... um-dois-três-quatro!
Dan começou a correr, quase tropeçando por cima da irmã.
— Ai! — gritou Amy. — Dan!
— Foi mal! — disse Dan, apressado. — Te vejo na plataforma...
— Dan, prendi meu pé!
Ele se virou e iluminou com a lanterna a silhueta agachada de Amy. Ela estava fazendo uma careta, com o pé esquerdo preso embaixo de um dos trilhos.
— Eu vou salvá-la! — gritou Hamilton.
— Não, eu! — disse Reagan com voz estridente. — Nunca me deixam salvar primeiro!
— Afastem-se! — trovejou Eisenhower.
— Rauff — latiu Arnold.
Dan se espremeu entre eles, abrindo caminho com os cotovelos, tentando alcançar a irmã, que berrava a plenos pulmões:
— Vocês só estão piorando!
Os pelos da nuca de Dan começaram a ficar arrepiados. Um vento fraco, porém constante, soprava do túnel, vindo do sul. Dan viu os olhos arregalados de Amy fixos nele.
— Dan? Será que esse horário dos trens é mesmo preciso?
— Não sei! — respondeu Dan.
— Quando um trem está entrando numa bifurcação, você não sente que o ar está sendo empurrado...?
Foooooooooom!
Dan virou o rosto :na direção do som. Dois faróis distantes, feito olhos de um réptil perfurando a escuridão, se aproximavam. E cresciam muito rapidamente.
— Família Holt... dar no pé! — ordenou Eisenhower.
Reunidos, os Holt deram as costas para o trem que se aproximava e partiram numa corrida ensandecida rumo à próxima estação.
— Não deixem a gente aqui! — gritou Amy.
Dan continuou puxando. O pé de Amy estava entalado. Não saía do lugar.
— AAAAI!
— Eu... vou... conseguir — Dan disse entredentes.
Ele se ajoelhou no fio de água que corria entre os trilhos, agora encrespado de ondas pela vibração.
— Foge, Dan!
— Peraí... já sei...
Os cadarços. Dan enfiou os dedos nos cadarços do tênis dela e puxou com força.
Estavam amarrados em um nó cego. Molhados e presos. O pé de Amy parecia colado no calçado. Se ele conseguisse ao menos tirar o tênis e usar a umidade para fazer o pé escorregar...
Um som agudo de freada preencheu o túnel. O vento chicoteava ao redor dele como um tufão, soprando poeira e pedrinhas em seus olhos. A visão de Dan embranqueceu. Seu corpo ordenava que ele saísse correndo. Naquele exato momento.
— FOGE LOGO!
— Para com isso, Amy! Não posso deixar você pra trás...
Ela já o tinha salvado uma vez. Ele podia salvá-la. Precisava fazer isso. Puxe!
O vento estava furioso. O barulho comprimia seus ouvidos como se fosse sólido. Dan puxou outra vez, mexeu, sacudiu, bateu.
Amy estava resistindo, empurrando-o para longe. Tentando salvá-lo. Ele sentia no pescoço o hálito frio da irmã, via as veias saltadas em sua garganta.
Ele percebeu que ela estava berrando, mas não conseguia ouvir nada.
FOOOOOOOOOM!
O corpo de Dan congelou quando ele se virou e viu o clarão das luzes que se aproximavam.
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