segunda-feira, 12 de maio de 2014

Capítulo 7

— AAAAAAAAH!
Amy não sentiu muita coisa. O vento. O barulho metálico dos freios, a buzina sobressaindo a todos os outros sons.
Ela deve ter fechado os olhos, pois também não viu mais nada. Apenas sentiu.
Seu corpo foi puxado para cima e para trás ao mesmo tempo. Ela estava voando.
E então seu ombro bateu no cimento frio, sólido.
Quando ela abriu os olhos, tudo estava escuro e em silêncio.
— Será que eu... m-m-morri? — ela ouviu a própria voz, num timbre estranho, mais agudo, mais fino.
Por um bom tempo, não se ouviu mais nada. Silêncio absoluto. E então:
— Morreu sim. Eu sou Deus — brincou Dan.
Ouviu-se o tchhhhhh de um fósforo sendo aceso, e uma luz trêmula delineou os contornos dos dois rostos.
Amy sentou-se. Seu tornozelo esquerdo doía, e ela estava sem o tênis.
— Tio Alistair? Dan?
O cabelo de Dan estava arrepiado, seu rosto enegrecido pelo pó preto, e seus olhos do tamanho de bolas de beisebol.
— Foi ele. O tio Alistair salvou nossas vidas. Estendeu a mão. Da parede.
— Como...?
Dan foi cambaleando na direção da irmã, seu corpo debruçado enquanto olhava boquiaberto para o pé de Amy.
— Ainda está aí. Ele não amputou seu pé quando...
Ao dizer isso, os joelhos de Dan perderam a força, e ele desabou no chão.
— Dan! — gritou Amy.
Quando ela tentou agarrar o braço do irmão, seu tornozelo latejou de dor.
— Está tudo bem — disse Dan, sentando-se. — Eu estou bem. Não precisa chamar a emergência. Meu cabelo ficou branco? Que nem nos filmes, quando as pessoas levam um susto muito assustador?
— Agora vocês dois estão em segurança — disse Alistair, mexendo o fósforo para iluminar os contornos da grande câmara onde se encontravam. — Dan, seu cabelo não ficou branco. E você tinha razão sobre o esconderijo. É mais ou menos onde achou que fosse. Tinha uma marquinha, um símbolo de aspecto antigo em cima de algo que parecia um painel de eletricidade. Quando eu apertei, a porta se abriu. Tudo que fiz então foi puxá-los e trazer vocês dois comigo.
Amy avançou apoiada no pé que não doía, mantendo o outro no ar, e deu um abraço em Alistair.
— Obrigada.
Ela sentiu o tio recuar um pouco. Por um terrível instante, achou que tinha feito algo muito errado. Dava para perceber que ele não era do tipo que curtia abraços. Então, meio constrangido, Alistair passou os braços em volta dela.
— Eu... estava devendo uma — sussurrou.
— Ou duas — disse Dan.
Alistair confirmou com a cabeça.
— Acho que meu histórico com vocês em situações de perigo de vida não é muito bom.
— Bem, depois dessa seu saldo é positivo — disse Amy, enterrando a cabeça no ombro do paletó de seda de Alistair, que ainda cheirava a loção pós-barba.
Delicadamente, Alistair se libertou dela, olhando para baixo, preocupado.
— Como está seu pé?
— Como se tivesse ficado entalado embaixo de um trilho e depois sido arrancado do tênis — Amy falou, contraindo o rosto. — Estou conseguindo mexer o pé, mas acho que torci o tornozelo.
— Duvido que você consiga sapatear agora — disse Dan, com uma voz ainda um pouco assustada.
Amy sorriu para o irmão, pois jamais imaginara que um dia ia gostar de ouvir suas piadas imbecis. Ela sentiu uma onda de afeto por ele.
— Ah, não, não faz essa cara... eu não quero um abraço! — Dan recuou.
Atordoado, ele ligou a lanterna e vasculhou a câmara com o facho de luz, até iluminar uma pilha de velhas relíquias jogadas descuidadamente pelo chão, cobertas de uma poeira grossa, escura: roupas, estranhos objetos de metal opaco, uma caixa também de metal, um globo, um cilindro volumoso. Quando todos chegaram mais perto, Alistair comentou:
— Bem, talvez a Yakuza controle algum tipo de rede subterrânea, mas pelo jeito faz séculos que eles não pisam aqui.
— Ei! O que um promotor de justiça faz quando encontra alguém da máfia japonesa?
— Você está se recuperando rápido demais — resmungou Amy.
— Eu sei, eu sei. Espera um pouquinho... — Alistair parou por um instante e sorriu. — Ele aponta o dedo Yakuza!
O sorriso de Dan sumiu.
— Como você sabia? Acabei de inventar isso nesse minuto.
— Trocadilhos são um sinal de inteligência, escondida bem lá no fundo — respondeu Alistair, calçando suas luvas brancas. Ele se debruçou sobre a pilha de objetos e, com cuidado, levantou uma pequena peça de roupa quebradiça. — É difícil saber qual a idade disto, debaixo de tantas décadas de poeira metálica.
— Ei, olha isto aqui! — gritou Dan.
Ele estava abrindo um rolo de pergaminho que tinha tirado de trás de um gaveteiro.
— Cuidado! — alertou Amy.
O pergaminho agora estava aberto, enegrecido nas bordas, mas ainda legível: três linhas de ideogramas japoneses.
— O que está escrito? — perguntou Dan.
Alistair olhou de perto.
— Acho que é um tipo de haikai. Esperem, deixa eu acertar a métrica... “Para o tesouro! de Hideyoshi achar/ Usar geometria”.
— Tesouro? Será que isso inclui as espadas? — especulou Amy.
— Estamos ricos! Uhu! Eu sabia! Certo, geometria. Deixa que eu resolvo essa. Peraí, me dá só um instante... — disse Dan.
— Pode ser qualquer coisa... — Amy olhou a sua volta.
— Estamos numa sala grande — declarou Dan. — Então... o volume de um paralelepípedo, talvez?
— Como? — indagou Alistair.
— Um paralelogramo tridimensional, tipo essa câmara — explicou Dan.
— Como isso vai resolver o problema? — perguntou Amy. — É como tentar achar a hipotenusa de uma pilha de feno.
— Isso é uma piada? Porque, se for, você tem que dar algum sinal. Tipo, dê dois tapinhas na sua cabeça pra eu saber a hora de rir.
Ele soltou o pergaminho com uma das mãos. O estalo do rolo fechando ecoou nas paredes e se perdeu no silêncio. Um silêncio mortal.
Amy olhou em volta, nervosa.
— Hã... já não devia ter passado outro trem?
Dan enfiou as mãos nos bolsos.
— Não tem como conferir. Acho que larguei minha tabelinha com os horários lá nos trilhos.
— Afinal, seria lógico... não era pra outro trem já ter passado? — questionou Amy. — Se não nesta direção, então na outra? Os trens são bem frequentes, não são? Por que tudo está tão quieto?
Alistair se levantou em um pulo.
— Bem observado. Devem ter desligado a força. O que significa...
Um tumulto distante de vozes parecia atravessar as paredes. Estava vindo do norte, da pista do lado contrário à que eles tinham usado.
— Quem será? — perguntou Dan. — A polícia?
O rosto de Alistair de repente parecia envelhecido e enrugado.
— Não — ele respondeu numa voz trêmula. — A Yakuza.
— O que vamos fazer?
— Eles não podem achar a gente, certo? — disse Amy. — Então, será que é melhor a gente ficar aqui?
Alistair agarrou os dois pelo braço, puxando-os em direção à porta.
— Eles vão acabar cruzando o trilho e encontrar o tênis perdido, a tabela de horários, as manchas de dedos na placa de metal na parede. Precisamos ir.
— Cubo! — exclamou Amy, de repente se soltando do tio e correndo de volta para a pilha. — Vejam! Esfera! Cilindro! Para... paralenãoseiquelá! São formas geométricas, não são, Dan? Estão bem aqui!
Dan já estava pegando o globo e enfiando dentro da mochila.
— Peguem tudo!
— Depressa! — disse Alistair.
Ele agarrou um pequeno cubo numa mão, um tubo triangular na outra. Amy recolheu o cilindro comprido e dirigiu-se para a saída.
Em poucos instantes, eles estavam nos trilhos outra vez. Com um empurrão, Alistair fechou a porta pesada atrás de si. Onde antes era uma parede contínua, coberta de limo, agora havia o contorno fraco de uma porta recém-aberta.
O trem que quase os atropelara estava parado mais à frente. Os últimos vagões ainda não tinham alcançado a plataforma da estação seguinte.
Amy puxou o tênis de debaixo do trilho e o enfiou no pé. Ela andava com muita dificuldade, seu tornozelo latejava. Porém, a ideia de ficar parada ali a deixou em pânico. Cerrando os dentes de dor, ela correu.
Os três seguiram o trilho em disparada, rumo ao ponto de onde tinham vindo. A estação logo ficou visível, mas a via estava pontilhada por luzes de lanterna, fachos que dançavam feito vaga-lumes.
Eles pararam onde estavam. Sua respiração entrecortada ecoava no túnel.
— A polícia — sussurrou Alistair. — Não podemos deixar que nos achem. Senão vão nos prender.
As luzes estavam chegando mais perto, e as vozes, ficando mais altas. Do outro lado, o som parecia indicar que os membros da Yakuza haviam trocado de via e que vinham para onde eles estavam.
— Mas e a Yakuza? — perguntou Dan.
— Eles vão nos matar — respondeu Alistair.
— Não tem muito o que pensar — disse o menino, indo na direção dos policiais.
— Não! — Amy o agarrou pelo braço.
— Então pra onde você sugere que a gente vá? — ele chiou.
Amy olhou para o alto. Logo acima da cabeça dela estava o primeiro degrau de uma escada.
— Precisamos levar os objetos — disse Alistair.
Sem perder tempo, ele tirou o paletó de seda, estendeu no chão, colocou as peças em cima, depois juntou as bordas. Dan tirou uma corda da mochila e deu um nó, fazendo uma trouxa firme.
Amy já estava subindo a escada, fazendo careta para aguentar a dor. Dan pôs a outra ponta da corda entre os dentes, agarrou o degrau com força e içou o corpo para cima.
Embaixo dele, Alistair estava olhando para o escuro, boquiaberto, com uma mão na escada e a outra segurando a bengala.
— Vem! — Dan gritou entredentes.
— Vão vocês! — berrou Alistair.
O som de passos ecoou no túnel. Um homem surgiu do escuro, com o rosto coberto de fuligem, de modo que apenas os dentes e os olhos refletiam a luz. Até que Dan percebeu o brilho de uma adaga em sua mão direita.
Alistair afinal se mexeu. O menino estava no segundo degrau quando ouviu um berro gutural:
— IIIIIAAAAAA!
Dan olhou para baixo e viu a lâmina do homem da Yakuza cortando o ar em direção às pernas do tio Alistair.

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