domingo, 1 de junho de 2014

Capítulo 16

Amy decidiu que nunca mais ia assistir a documentários sobre a vida dos animais. Quando ela percebeu que estava na própria natureza selvagem, eles perderam toda a graça.
Ela se afastou da margem do rio. Atrás dela, as árvores e a folhagem pareciam densas e impenetráveis. Sem o sol, o rio ficava escuro, como se fosse de óleo.
— O crocodilo tem a mordida mais forte do mundo — disse Dan. — Tipo, uma tonelada. Eles se movem depressa, mesmo na terra. Mas o melhor jeito de fugir deles é correr para a frente, não em zigue-zague. É só correr muito rápido.
— Dan! Fica quieto — mandou Amy.
— Eles caçam à noite. Esperam o dia todo pra emboscar a presa.
— Você não está ajudando.
— Eles te arrastam pra baixo d’água e ficam rolando com você, dando várias voltas. Te afogam antes de te devorar. Isso se você der sorte. Você tem que agarrar a boca dele e ficar segurando a mandíbula fechada...
— Dan, morra!
— Daqui a pouco, provavelmente.
Fez-se um curto silêncio. Do outro lado do rio escuro, as luzes de Luxor brilhavam. Atrás delas, na margem oeste do rio, antigos reis e rainhas dormiam nos penhascos de calcário, as múmias ainda não descobertas, os morros abrigando seus espíritos. O céu estava apinhado de estrelas, mais do que Amy jamais tinha visto. Seria até bonito, se ela conseguisse abstrair o medo de ser triturada por dentes de crocodilo.
— Só estou tentando ajudar — resmungou Dan.
— Alguém vai ver a gente, se conseguirmos chamar a atenção de algum barco — disse Amy. Ela via as luzes individuais nas pontas das embarcações que se deslocavam no rio, as feluccas, como Theo havia explicado — Como se diz Ei! em árabe?
— Acho que Ei! deve fazer parte de uma língua universal — Dan respondeu. — Que nem ai! Ou... você está pisando no meu pé.
— Isso é universal?
— Não, você está pisando no meu pé. Ai!
Amy mudou de lugar.
— Eei! — sua voz soou fraca, engolida pela escuridão.
Tentou lembrar se os crocodilos procuravam a presas pelo seu ruído. Decidiu não perguntar para Dan.
— EEI! — ela gritou. As luzinhas dos barcos continuavam avançando, oscilando devagar de um lado para o outro. — Bom, a Nellie e o Theo vão vir procurar pela gente.
— Como eles vão procurar pela gente? — Dan perguntou — Jonah roubou o barco!
— Eles vão alugar um barco e...
— Xiu — fez Dan.
— Só porque eu mandei você ficar quieto antes...
— Xiu! Ouça.
Primeiro, Amy não ouviu nada. Depois, escutou alguma coisa batendo na água.
Ela gelou.
— Você está vendo alguma coisa? — ela sussurrou.
— Acho que eu vi dois olhos — murmurou Dan. — Ali, perto daqueles juncos. Os crocodilos ficam embaixo d’água até a hora de atacar...
Amy olhou. Não viu nada perto dos juncos. O que ela viu foi um tronco gigante boiando junto da margem do rio. Logo percebeu que o tronco tinha dois olhos e uma cabeça. O crocodilo virou e começou a rastejar na direção da praia.
— D-d-d-d...
— Que foi?
— Um c-c-croc...
O animal veio se arrastando pela praia e Amy esqueceu como se fazia para sair do lugar. O bicho parecia um dinossauro. Uma coisa primitiva, cruel e com fome de carne. Todos os impulsos fugiram de seu cérebro, exceto o terror. O crocodilo abriu a boca. Amy ficou hipnotizada pelo que pareciam centenas de dentes pontudos, afiados.
O crocodilo tem a mordida mais forte do mundo...
— Corre! — Dan gritou, puxando o braço dela.
Amy cambaleou, tropeçou e saiu correndo em disparada pela praia, em direção ao meio da ilha. A areia sugava seus pés. Era como se mover num pesadelo.
Amy olhou para trás. O crocodilo os estava seguindo!
— Não corra em zigue-zague! — berrou Dan.
Mas ela não estava correndo em zigue-zague. Estava tropeçando. Suas pernas tremiam tanto que ela não conseguia se locomover.
Eles se embrenharam nos arbustos, seguindo uma trilha estreita que serpenteava entre a vegetação. A camiseta de Amy prendeu num galho, mas ela se soltou e continuou avançando, saltando raízes e se agachando para passar por baixo dos ramos.
Por sobre sua própria respiração ofegante, os dois ouviram o tum que o crocodilo fez ao pisar na rilha. O chuch de sua cauda gigante batendo nas plantas.
Estava tão escuro embaixo das árvores que era como correr usando uma venda preta sobre os olhos. O coração de Amy batia com força no peito. Ela já conseguia sentir o hálito quente da fera. A qualquer instante o crocodilo ia abocanhá-la por trás e girá-la no ar enquanto sua mandíbula talhava seu corpo em dois.
A trilha de repente terminou e eles desembocaram numa praia. O luar dava à areia uma coloração prateada. Era como se alguém tivesse acendido a luz.
— E agora, pra onde a gente vai? — perguntou Amy, olhando para os lados.
Um pouco mais adiante, perto da água, uma sombra saiu de trás de uma palmeira. Era um homem, vestindo a galabia, uma túnica branca muito usada pelos egípcios.
— Socorro! — Amy berrou para ele.
— Amy... — Dan parou de correr. — Ele tem uma faca.
O luar reluziu na lâmina que o homem trazia na cintura.
Amy virou de costas. Atrás dela, na trilha, viu os olhos verdes do crocodilo vindo cada vez mais rápido na direção deles.
— Eu não ligo. Vamos! — respondeu.
Eles atravessaram a praia, correndo na direção do homem com a faca.
Qualquer coisa era melhor que a mandíbula de um crocodilo.
O homem embainhou a faca quando eles se aproximaram. O crocodilo agora estava avançando pela praia. O homem de repente recuou e foi depressa até uma pequena felucca que eles não tinham notado.
— Não, espere! Por favor! — gritou Amy.
Ele pulou dentro do barco com agilidade e começou a remar. Amy soluçava alto. O terror esmagava seu coração. Não havia mais esperança. Não tinha mais para onde correr.
Mas o homem estava remando na direção deles, não para longe. Gritava alguma coisa em árabe. Eles correram, mais rápido do que jamais tinham corrido na vida. Patinharam na água, como se suas pernas fossem de chumbo.
O crocodilo estava chegando à beira da água. Se conseguisse entrar no rio, eles estariam mortos. Amy sabia muito bem disso. Pelo rosto apavorado de Dan, percebeu que ele também sabia.
O homem estendeu o braço. Agarrou a gola da camiseta de Dan com uma mão, a de Amy com a outra. Amy se sentiu como um peixe sendo pescado quando ele os puxou para dentro do barco.
Eles ficaram deitados, ofegantes. A vela inflou ao pegar uma brisa. Todos ouviram um plop no instante em que o crocodilo entrou na água. O homem não disse nada. Sua boca era um traço sombrio enquanto esticava a mão para segurar o leme.
Ele mudou o curso e o barco foi deslizando pela água, direto para o meio do rio. Eles pegaram uma correnteza e lá se foram. Todos prenderam o fôlego, atentos a qualquer movimento por perto.
De repente, o homem sorriu. Acenou para eles com a cabeça.
— Ok — ele disse. — Ok.
O corpo inteiro de Amy estava tremendo. Ela olhou para Dan. Aquela tinha sido por muito pouco. Amy apoiou-se no convés para conseguir se sentar. Sua mão encostou em alguma coisa molhada e pegajosa. Levantou-a para ver.
Sangue.
Eles estavam no meio do rio Nilo com um estranho que tinha uma faca enorme na cintura e sangue no convés do barco.
— Nós... nós viemos em p-paz — disse Amy.
O homem se curvou para a frente. Seu olhar era escuro e vazio. Ele estendeu a mão forte e apontou para Dan. Amy se lançou para cima do irmão tentando protegê-lo.
— Não! — ela protestou.
— Sim! — gritou o homem. — Red Sock!
— R-red o quê?
Ele apontou para a camiseta de Dan.
— Bos-ton. Beisebol. Campeão mundial de 2004! — continuou o homem. — Fenway Park! — Ele apontou para o próprio peito. — Segundo jogo!
Dan ficou sentado, piscando enquanto registrava as palavras do homem.
— Você estava lá? Que legal!
— Curt Schilhing!
— Manny Ramirez! — Dan abriu um largo sorriso e virou para Amy. — Esportes, outra língua universal.
— E aquela faca? — sussurrou Amy.
Dan começou a dar risada.
Amy pensou que finalmente tinha acontecido: o irmão tinha pirado completamente.
— Você não sentiu o cheiro? — ele perguntou. — Esse cara é pescador. Olha!
Sim. Agora ela estava sentindo. Bem do lado dela havia um balde de peixes. O homem estava limpando os peixes quando avistou os dois.
— Luxor? — ele perguntou.
Agora Amy conseguiu ver o seu sorriso inofensivo. Ela fez que sim com a cabeça.
O rio continuava negro, de um azul escuro como tinta. Amy recuperou o fôlego e seu coração desacelerou. Ela inclinou a cabeça para trás. Distinguiu a Ursa Maior no amontoado de estrelas. Uma sensação de conforto percorreu seu corpo. Dali ela conseguia ver o luar refletido na areia ao lado do rio. Parecia um campo nevado, estendendo-se até os penhascos. Enquanto o barco avançava, as luzes do grande Templo de Luxor piscavam.
— Impressionante — ela disse.
— Impressionante — repetiu o pescador.
Pelo jeito, impressionante também fazia parte da língua universal.

***

O pescador os deixou rio cais, perto do Templo de Luxor. Com um largo sorriso e um aceno simpático, ele gritou:
— Tchau, Boston! Cuidado com os crocodilos! — E foi embora.
— Nós viemos em paz? — Dan imitou a irmã. — Você achou que ele era egípcio ou um marciano?
Amy não conseguia parar de rir.
— Como eu ia imaginar que ele torcia pro Red Sox?
— Para onde vamos agora? — perguntou Dan.
— Theo e Nellie já devem ter voltado — disse Amy.
— Talvez estejam nos esperando no cais. Vamos ter que explicar por que o barco sumiu.
Mas quando eles chegaram, o barco estava lá. Nellie e Theo estavam sentados no cais, bebendo chá.
— Foram dar um passeio? — perguntou Nellie.
Dan olhou para Amy. Amy olhou para Dan. Será que eles deviam mencionar Jonah Wizard, o sequestro do barco, o crocodilo, a faca enorme? O pescador que torcia pro Red Sox?
— É — respondeu Dan. — A gente foi dar um passeio por aí.
Eles deixaram Theo e Nellie no convés, bebendo chai e contemplando o céu noturno, e desceram para a cabine.
— Pelo menos o Jonah devolveu o barco... — reconheceu Amy.
— Pelo menos ele está indo pra Paris — completou Dan. — A questão é: será que a gente também deveria ir pra lá?
— Eu fiquei pensando nisso. Quando estávamos em Paris, li sobre a história do Museu do Louvre. O museu antigamente era um palácio. Então, quando Drovetti escreveu palais du L., provavelmente queria dizer Palais du Louvre. Lembra? O Bae contou pra gente que Drovetti mandou a Sakhet para o Louvre e um Ekat conseguiu recuperá-la. Aposto que não existe uma quarta Sakhet. Afinal, os três mapas juntos indicaram a tumba de Nefertari. Agora só temos que usar os hieróglifos para descobrir o próximo lugar para onde temos que ir.
Dan franziu a testa:
— Katherine não está ajudando muito. E nem a Grace!
— Bom, Katherine menciona Assuã no poema. Gizé, Assuã, Tebas e Cairo, lembra? Começamos no Cairo, onde Napoleão encontrou a primeira Sakhet numa pirâmide em Gizé. A segunda foi descoberta por Howard Carter na tumba de Hatshepsut, em Tebas. Assuã é a única cidade que falta. Aposto que é lá que está a pista final.
— Mas não temos certeza disso — argumentou Dan. — Bae encontrou a terceira Sakhet no Cairo, mas isso foi centenas de anos depois que Katherine a deixou em algum lugar. Ela pode ter sido roubada, vendida e revendida. Pode ter saído de Assuã.
— Talvez — Amy concordou, relutante. — Lembra o que Bae disse sobre Katherine, que ela se sentia subestimada por ser mulher? Você não notou que Katherine está direcionando a gente para faraós mulheres, rainhas, deusas, todas as figuras femininas do Egito Antigo? Sakhet, Hatshepsut, Nefertari... Até a pista de Gizé foi encontrada na pirâmide da rainha.
— Isso me lembra uma coisa. — Dan olhou para os hieróglifos outra vez. — Quando Theo estava mostrando a tumba pra gente, lembra daquela parte onde Ísis está segurando a mão de Nefertari? O símbolo desenhado em cima da Ísis era igual a este.


— Aposto que isso significa Ísis.
— Outra deusa! — Amy folheou o livro e leu: — “Os antigos egípcios acreditavam que quando Ísis ficou sabendo que seu marido Osíris estava morto, suas lágrimas fizeram o Nilo transbordar, deixando o solo fértil para a plantação”. — Ela olhou para cima, com os olhos iluminados. — “A outra com pranto faz nascer a flora”!
— Mas e “onde um dia encontrou seu coração”? — Dan perguntou.
Amy continuou lendo, seu coração batendo mais rápido:
— Osiris foi desmembrado por Seth, outro deus egípcio. Ísis encontrou o coração dele na ilha de Philae. É lá que fica o templo dela.
Dan pôs o dedo em cada um dos hieróglifos:
— Ilha. Ísis. Obelisco


— Onde fica Philae? — perguntou Dan.
— Em Assuã! — exclamou Amy. — Tudo se encaixa. — Ela fechou o livro, fazendo barulho. — A questão é que eu não lembro se Grace escreveu alguma coisa sobre Assuã. Que droga que nós perdemos o guia!
— Nós? — provocou Dan.
— Ok, eu — disse Amy, ficando vermelha de raiva. — Pode pôr a culpa em mim, se quiser.
— Bom, se você tivesse deixado eu ver o livro, teríamos uma ideia do que fazer agora — retrucou Dan.
— Isso não é justo — reclamou Amy. — Você não gosta de pesquisar como eu gosto.
— Eu sei ler — disse Dan num tom amargo. — E, diferente de você, também sei lembrar. Você quase nem deixou eu olhar o livro.
— Você sempre diz que pesquisar é chato — objetou Amy. — Como eu ia saber que você queria ler um guia turístico pela primeira vez na vida?
— Não era só um guia turístico. Era o guia da Grace! — Dan levantou a voz. — Você quer ficar com tudo o que a Grace deixou só pra você. Tá com o colar, e agora a Sakhet... você também não larga dela. Acho que quer guardar até a memória da Grace só pra você!
— Isso não é verdade — protestou Amy. — E também não é justo!
— Bom, ela não é só sua avó, sabia? — disse Dan. o rosto dele estava muito vermelho. — Você quer ela só pra você!
— Não seja ridículo! — gritou Amy. Ela sentiu seu rosto esquentar. — Isso é a coisa mais imbecil que eu já ouvi!
— É você que decide se ela era boa ou não. É você que decide se ela nos amava ou não. Se vai me dizer que minha avó não me amava, que ela era alguma monstra manipuladora do mal, é melhor me apresentar fatos! — Dan estava furioso. — Você tem tanto medo de cometer outro erro que está virando tudo do avesso. Nem todo mundo é do mal só porque o lan Kabra é!
Amy se assustou. Nunca tinha visto Dan agir assim antes. Ele xingava a irmã e brigava com ela, mas nunca daquele jeito. Nunca era cruel de propósito. Agora parecia quase triunfante, como se tivesse dado um tiro certeiro.
Ela também tinha se sentido assim na base secreta dos Ekaterina, quando tinha feito o irmão chorar. O que estava acontecendo? Era aquilo que a busca pelas pistas estava fazendo com eles? Traições e segredos agora eram coisa do cotidiano. Aquilo estava corrompendo os dois, fazendo com que se voltassem um contra o outro. Ambos estavam agindo como pessoas que ela não reconhecia, de quem não gostava.
Amy percebeu que os dois estavam agindo como típicos membros da família Cahill.

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