Naquela noite, Amy não conseguiu dormir. Imagens se misturavam na sua cabeça. Templos e tumbas, crocodilos e leões. Os olhos escuros de lan Kabra e seu sorriso brilhante. O pânico que ela tinha sentido no aeroporto ao ficar presa na multidão. O rosto estreito e sério do irmão, o modo como ele abrira caminho aos empurrões para chegar até ela. O casal de idosos, a mulher procurando alguma coisa na sacola e a luz brilhando em seu anel prateado.
Quando estava finalmente sendo arrastada pelo sono, pouco antes de adormecer, viu o rosto de Grace sorrir para ela e dizer: Confie nas pessoas, mas guarde o dinheiro na meia.
***
Amy acordou no meio da madrugada. Não foi como se tivesse ouvido um barulho, mas a lembrança de um som. Ela fez esforço para se libertar das garras do sono.
Estendeu a mão ao lado da cama, pois criara o hábito de apalpar a pochete no chão. Lá estava, com a aresta da base da Sakhet fazendo volume embaixo do tecido. Ela começou a se acomodar de volta no travesseiro quente.
... mas guarde o dinheiro na meia.
Amy estendeu o braço outra vez e contornou a base com os dedos para tocar na Sakhet. Seus dedos não encontraram nada. Não havia estátua presa à base. Com o coração martelando no peito, Amy acordou de verdade. Saiu da cama e tateou o chão. Nada. Embaixo da cama. Tudo vazio.
A janela estava aberta. Será que ela tinha deixado a janela aberta? Amy correu para olhar. A lua estava alta e cheia e iluminava o gramado lá fora como as luzes de um estádio. Foi fácil avistar Theo, com uma sacola na mão, andando apressado pelo caminho curvo. Ela viu os faróis de um carro piscarem no estacionamento logo à frente.
Amy não parou para pensar. Abriu o resto da janela e pulou para fora. Seus pés descalços tocaram a terra fresca. Ela se embrenhou entre os arbustos, saiu para o gramado correu em disparada.
Era tarde demais quando percebeu que ia precisar de ajuda. Theo estava indo na direção daquele carro. Será que ela conseguiria derrubá-lo? Teria que acertar bem nos joelhos...
Amy ouviu passos pesados atrás dela. Nellie estava correndo na direção de Theo, com o rosto contorcido de fúria. Suas pernas apareciam por baixo da cueca samba-canção e da camiseta larga do Peari Jam que ela vestia para dormir.
Ela deu um encontrão em Theo, um golpe que seria proibido até num jogo de futebolamericano. Ele caiu dando um urro de dor.
Amy passou correndo por eles e foi até o carro. Para sua surpresa, Hilary estava ao volante, boquiaberta, com uma expressão cômica de surpresa, assistindo à cena de Nellie sentada sobre o peito do seu neto.
— O que está acontecendo, fofuchos? — O rosto de Hilary estava pálido, mas ela tentou manter a voz alegre.
Amy esticou o braço e desligou o motor, depois guardou as chaves no bolso.
— Acho que está na hora de a gente descobrir — respondeu, se surpreendendo com sua própria frieza. Se ficasse brava o suficiente, nem precisava tentar ser corajosa.
Prrr. Amy ouviu o barulhinho e sentiu um alívio no coração.
— Saladin?
Ela esticou o braço até o banco de trás e pegou a gaiola do gato.
Segurando Hilary pelo cotovelo, com pulso firme, Amy a obrigou a andar até Theo e Nellie.
O rosto de Theo se contorcia de dor.
— Precisava me acertar com tanta força? — ele urrou.
Nellie se debruçou e cuspiu as palavras no rosto dele:
— Sua arrogância acaba de te levar à ruína, otário!
***
Theo ficou sentado no chão do quarto do hotel, enquanto Amy tirava a Sakhet da sacola. Hilary, bem-comportada, estava sentada numa cadeira.
— Com certeza podemos resolver isso — ela disse. — Se o Theo fez alguma coisa errada, posso dar um jeito.
— Eu não teria tanta certeza — afirmou Amy.
— Pelo menos posso pegar gelo pro meu tornozelo? — Theo perguntou num tom de súplica.
— Claro — respondeu Nellie.
Ela foi até o balcão, pegou o balde de gelo e esvaziou tudo na cabeça dele.
— Obrigado — disse Theo.
— Não tem de quê — Nellie respondeu numa voz meiga. — Seu traíra.
— O que será que a gente faz com eles? — perguntou Dan.
Ele tinha pegado o abajur da mesa e estava segurando na mão, só para o caso de Theo tentar fugir. Dan não hesitaria em dar uma cacetada na cabeça dele se tivesse a chance. Porém, Theo não parecia querer dar a Dan essa chance. Estava desanimado e murcho.
— Entregar pra polícia, com certeza — respondeu Nellie.
— Podem dar tchauzinho, ele vai em cana — concordou Dan.
— Do que vocês estão falando? — Hilary parecia horrorizada. — Theo, do que eles estão falando?
— Não chamem a polícia — implorou Theo. — Por favor. Roubar a estátua seria um crime gravíssimo. Vocês não querem que eu vá para a cadeia, querem? Eu ia ficar lá uns mil anos!
— Daí algum arqueólogo vai poder estudar você — disse Dan.
— Vocês não entendem — explicou Theo. — Vocês nem pareciam querer a estátua. Era só parte de algum caça ao tesouro imbecil. Vocês não imaginam o valor do que têm nas mãos!
— Theo! — Hilary gritou. — Quando você pediu pra eu vir te encontrar aqui, nunca pensei... — Ela tapou a boca com as mãos.
— Ora, por favor, me poupe — disse Nellie e andou até o telefone.
— Olha, desculpa, ok? — Theo continuou. — Mas, enfim, vocês sabem como é o trabalho de um egiptólogo. Você estuda durante anos e anos, desce nas tumbas, fica pesquisando aqueles papiros, e o que te dão em troca? Uma vaga de curador assistente num museu, com um salário que nem dá pra pagar o aluguel.
Hilary afundou o rosto nas mãos.
— Oh, Theo. Se vocês apenas me deixarem levá-lo embora, eu prometo... vourecompensar vocês.
Amy olhou para a mão dela:
— Que anel bonito, Hilary.
— Obrigada, meu bem.
— Quando você chegou em Assuã?
— Agorinha, fofuchos. Theo pediu que eu viesse encontrá-lo. Eu não fazia ideia do motivo.
— Não fazia ideia — repetiu Amy. — Que engraçado, porque eu vi você no aeroporto hoje de manhã. Você ficou parada do lado de um tiozinho, torcendo pra parecer que estava junto com ele. Foi você que tentou cortar minha pochete! — ela virou para Theo. — E você fingiu derrubar os óculos pra que ela pudesse fazer isso!
Hilary deu uma risada que soou meio engasgada:
— Que imaginação fértil!
— Ora, francamente, vó. Desista — Theo disse numa voz cansada. — Você acha mesmo que está enganando alguém?
— É só você colaborar! — Hilary chiou.
Vendo a careta de Hilary, a fúria de Amy voltou. Tinha sido traída outra vez, feita de idiota.
— Como você foi capaz? Como pôde trair a Grace? Ela era sua melhor amiga!
— Exatamente! — gritou Hilary. — E tinha todo o dinheiro do mundo, enquanto eu chafurdava na pobreza. Ela não me pôs no testamento. Por que eu não deveria ficar com uma parte do patrimônio?
— Que vovozinha gananciosa! — reprovou Nellie, fazendo um gesto de censura com a cabeça. — Isso faz mal pro carma.
Outra vez, Amy pensou, brava. Ela tinha confiado em alguém e no fim descobrira que havia cometido um grave engano. Agora ela não sabia se devia ficar mais brava com Hilary ou consigo mesma.
Theo deu um suspiro.
— Olha, desculpa ter pegado sua estátua — ele disse para Amy e Dan. — Mas se alguém te oferecesse um bom milhão de dólares, o que você faria?
Nellie tirou o fone do gancho.
— Espera um instante — disse Dan. — Quem te ofereceu um bom milhão de dólares?
— Uma russa maluca.
Neilie colocou o fone de volta no gancho.
— E onde exatamente você viu essa russa maluca? — perguntou Amy.
Theo parecia estar envergonhado.
— Na tumba de Nefertari. Trombei com ela na antecâmara — Theo confessou.
— Era você que estava fazendo o barulho de múmia? — Dan perguntou, furioso.
— Achei... que se vocês ficassem com bastante medo... iam me dar a Sakhet pra guardar.
— Também foi você que mandou aquelas mensagens bizarras — concluiu Nellie. Seus olhos eram fendas estreitas no rosto. — Admita.
Theo fez que sim com a cabeça, olhando para baixo:
— Desculpa.
— Desculpa? Você trancou as crianças numa tumba e fala desculpa? — gritou Nellie. — Eu vou te mostrar o que é desculpa!
Ela começou a discar.
— Espera um pouco, Nellie — disse Amy. — Acho que podemos fazer um acordo — ela se virou para Theo e Hilary. — Não vamos entregar nenhum dos dois. Com a condição de vocês fazerem um favor pra gente.
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