— Deu certo — disse Dan. — Isso é bom, né?
— É — concordou Amy.
Irina partira para o Marrocos e eles tinham visto Theo e Hilary embarcar no avião para o Cairo.
— Por que vocês estão com essa cara de desânimo? — perguntou Nellie. — Deviam estar comemorando.
O plano tinha dado certo: Theo imitara a letra de Katherine em um papiro velho que haviam arranjado. Depois foi só comprar uma Sakhet falsa, fazer um buraco com a furadeira e encaixar o papiro. Irina caíra como um patinho.
— Graças à soma dos nossos talentos, vocês acabam de mandar sua pior inimiga para uma viagem sem volta ao meio do nada — continuou Nellie. — Além disso, era eu que devia estar chorando. Meu coração está partido — Nellie fez um gesto com a colher para depois enchê-la de iogurte com mel. — Hmmm, que delícia.
— Seu coração ficou partido por uns cinco minutos — Amy comentou.
Nellie deu de ombros.
— O que você queria que eu fizesse, parasse de comer? — ela apontou a colher para Amy. — Nunca se arrependa de ter confiado em alguém. Isso prova que tem coração. Mas se ele no fim for um cara mentiroso, não vou perder meu tempo chorando. Porque eu sou uma criatura fabulosa, não preciso disso.
Amy sabia que Nellie estava falando aquilo para que ela superasse a decepção com Ian. Será que conseguiria absorver parte da autoconfiança de Nellie? Ela nunca se sentia fabulosa. De vez em quando, com sorte, achava que atingia a marca do mais ou menos.
— Foi um plano brilhante — admitiu Dan. — Você sabia que Irina não ia desembolsar um milhão de dólares.
— Ela não tem um milhão de dólares — afirmou Amy. — Ela ia enganar o Theo. Só queria a dica. E estava tão desesperada que não parou pra pensar que foi um pouco fácil demais.
— Esse é o defeito fatal dos Lucian — concluiu Dan. — Eles acham que são brilhantes.
Nellie comeu o resto do iogurte e se espreguiçou:
— Já vou indo pra piscina. Tenho uma sugestão: que tal descer do trenzinho da aventura por hoje?
— Eu fiquei pensando — disse Dan quando Nellie foi embora. — Acho que a Grace preparou a gente pra este viagem. Lembra quando ela nos levou pra passar o fim de semana em Nova York? Fomos no Museu Metropolitan e ficamos várias horas na ala egípcia. Lembra do Templo de Dendur?
— É verdade! — exclamou Amy. — Ela nos contou tudo sobre a Represa Alta de Assuã, e como foram inundados todos esses monumentos que precisaram ser salvos, como o Templo de Dendur. Mas é só isso que eu lembro. Se ela nos deu uma dica naquele dia, não sei qual foi.
— Ela comprou pretzels quentes pra gente — disse Dan. — Isso eu lembro.
A memória aflorou dentro de Amy. Uma das centenas de lembranças da avó que estavam enterradas em sua mente e no seu coração. Comer pretzels com mostarda nos degraus do museu. Tinha sido no outono, ela lembrava das laranjeiras brilhantes do Central Park. Grace já tinha passado por uma sessão de quimioterapia. Todos pensavam que ela tinha dado um pé na bunda do câncer, que ficaria bem, que ia viver para sempre.
Bom, Amy e Dan tinham achado aquilo, pois era o que Grace queria que eles achassem. Pelo tempo que fosse possível.
Que coisas maravilhosas nós vimos hoje, Grace dissera. Mas às vezes as pessoas passam tempo demais no passado. Nada do que eu vi até hoje é tão bom quanto este pretzel! Ela sacudira o pretzel no ar e dera uma mordida.
Ela não estava falando só do pretzel. Amy agora sabia disso. Ela estava falando de tudo o que dizia respeito àquele momento. O agora. Eles três juntos, sentados nos degraus do museu num perfeito dia de outono, comendo pretzels e mostarda comprados de um vendedor ambulante.
A lembrança não pertencia apenas a ela. Pertencia a Dan. Ele lembrava de coisas assim. Momentos aleatórios que pareciam pequenos, mas, na verdade, eram imensos. Muitas vezes esses momentos passavam batidos porque ela estava tão ocupada se preocupando com alguma coisa idiota, como tomar um ônibus. Ou com a mostarda que caíra em sua saia nova.
Amy tirou a Sakhet da pochete e a colocou na mesa.
— O que a gente deve fazer com ela? — perguntou. — Não acho seguro ficar carregando a Sakhet em Assuã. Você decide.
O que ela na verdade estava dizendo era: Grace pertence a nós dois.
Dan olhou nos olhos da irmã. Ele sabia.
— Que tal deixar no cofre do hotel? — ele perguntou. — Aí podemos encontrar a Nellie na piscina e fazer uma coisa realmente radical.
— Tipo o quê?
Dan abriu um sorriso torto.
— Tipo se divertir.
***
— Ah, senhorita Cahill — o gerente levantou de trás da mesa para cumprimentá-los e se apressou para apertar a mão dela — fiquei tão feliz quando você telefonou. Eu conhecia sua avó muito bem.
— É mesmo?
— Grace Cahill foi uma hóspede preferencial durante muito tempo. Começou a vir no fim da década de 1940, e depois quase todos os anos, por mais de vinte anos. Temos arquivos no hotel e ela é uma figura proeminente.
— Eu não sabia disso.
— Ah, sim. Temos uma linda foto da sua avó pintando na beira do Nilo. Vocês gostariam de ver? — Ele pôs a mão dentro da gaveta. — Eu localizei no arquivo depois que vocês telefonaram.
Amy olhou para a fotografia em preto e branco. Grace estava mais jovem e mais magra, de calça e camisa branca. Um xale cobria sua cabeça. Ela estava sentada em frente a um cavalete, em algum lugar no jardim, virada para o rio. Ao lado dela havia um homem mais velho, atarracado e de chapéu de palha, pintando a mesma cena.
— Esse não é...
— Sim, Winston Churchill, que também era um hóspede preferencial. Primeiro-ministro da Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial, um grande estadista, pois é. Mas duvido que vocês soubessem que ele também era pintor. Ele sempre dizia a Grace que ela precisava tomar aulas com ele. Acredito que esta foto tenha sido tirada nos anos 1950.
— Obrigada por me mostrar isso. Eu queria saber se vocês podem guardar uma coisa no cofre pra mim — pediu Amy, mostrando a caixa com a Sakhet.
— É claro — ele virou, abriu o cofre e pôs a Sakhet lá dentro. — E agora, preciso pedir desculpas a vocês. — Ele tirou outra coisa do cofre. — Grace Cahill nos telefonou há um ano e pediu para localizarmos um quadro que ela tinha pintado e deixado de presente. Ela queria comprá-lo de volta. Durante anos ficou pendurado no escritório do gerente anterior. Então, depois de uma reforma, ele foi perdido. Quando ela telefonou, nós procuramos e não conseguimos encontrar. Mas justamente hoje, quando fui procurar esta foto, encontrei o quadro. Agora eu gostaria de dá-lo a vocês de presente, com o pedido de desculpas do hotel.
Ele entregou a Amy um pequeno pacote embrulhado.
Amy apertou o pacote contra o peito.
— Obrigada.
***
— Está vendo? — Amy mostrou o quadro para Dan. — Lembra do que a Grace disse no cartão? Não se esqueçam da arte! Aqui está!
Era uma pintura em aquarela retratando o Nilo. Amy reconheceu a paisagem e o estilo de Grace. Ela pintara as palmeiras pontudas, a água verde, as pernas delicadas das aves pernaltas nas margens.
Dan suspirou:
— Estou suspeitando que não vou conseguir nadar.
Amy pousou o quadro em cima da cama. Desentortou os pregos que prendiam a tela à moldura. Dan observou a irmã levantar o fundo com cuidado e depois tirar a tela da moldura.
— Tem alguma coisa errada aqui.
Dan espremeu os olhos para ver melhor. Pegou a pintura e a segurou contra a luz:
— Olha. Grace pintou no verso de outro quadro.
Amy chegou mais perto para examinar uma assinatura rabiscada na parte de baixo.
— Grace pintou no verso da pintura de Winston Churchill — ela sorriu. — Deve ser a vingança por ele ter dito que ela precisava tomar aulas com ele.
— Amy, essa foi a vingança dela contra um Cahill — disse Dan. — Veja, é o mesmo lugar. É a ilha de Philae. Está vendo o Templo de Ísis? Essa é a ilha verdadeira, antes de ser inundada.
— Tem razão! Churchill deve ter pintado isso como uma dica para a pista! Queria saber a que clã da família ele pertencia.
— Não sei, mas, se eu fosse chutar, apostaria que ele é um Lucian — concluiu Dan. — Ele tem essa cara de estrategista mirabolante...
— Acho que ela pintou por cima pra esconder a imagem. — Amy ergueu a pintura outra vez. — Peraí. Está vendo essas ondas que a Grace pintou? O que você acha que elas parecem?
Ela apontou para as ondas, com suas cristas alaranjadas pelo sol poente. Dan observou por um longo instante.
— Setas — ele concluiu. — São setas.
— Segurando a tela contra a luz, dá pra ver a pintura que Churchill fez de Philae. As setas estão apontando para aquele muro.
— O braço protetor!
— Isso é um mapa. Para a pista de Katherine!
— Ótimo — Dan falou com uma voz de derrota. — A pista está embaixo d’água. Talvez eu realmente tenha chance de nadar um pouco. Com os crocodilos. E aqueles parasitas que penetram na pele.
Amy tamborilou os dedos na mesa.
— Tem que haver uma solução.
Nesse instante, ela percebeu que a gaveta da mesa estava entreaberta. Ela inclinou a cabeça e viu um pequeno objeto metálico lá dentro.
Tinha um microfone escondido no quarto deles!
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