segunda-feira, 2 de junho de 2014

Capítulo 21

porta do quarto bateu com um estrondo. Nellie jogou a chave em cima da cômoda:
— Essa piscina é melhor que uma raspadinha de chai. Estou totalmente refrescada. Deixa eu tomar uma ducha e vamos discutir os planos pro jantar. Só temos mais uma noite em Assuã e eu tive umas ideias.
Nellie entrou no banheiro. Dan e Amy entraram junto com ela e fecharam a porta.
— Hã, amigos... Eu sei que nós ficamos mais próximos e tal, mas assim é um pouquinho próximo demais pro meu gosto, ok?
Amy estendeu a mão e abriu a torneira do chuveiro no máximo.
— Tem um microfone no quarto — ela disse por baixo do barulho da água corrente.
— E daí? — respondeu Nellie. — Vocês querem fazer um karaokê?
— Um microfone escondido — esclareceu Dan. — Tipo, estão vigiando a gente.
— Precisamos que você nos dê cobertura, enquanto procuramos a pessoa que está nos espionando — pediu Amy. — Quem quer que seja, deve estar por perto.
— Você só precisa ficar falando sem parar. Pensamos muito sobre isso e achamos que está capacitada para a tarefa — disse Dan.
— Hahaha, moleque. Mas é verdade. Na hora de soltar a língua, sou a campeã — concordou Nellie.
Nellie desligou o chuveiro, e voltaram para o quarto.
— Essa piscina é tão legal — ela continuou, como se nunca tivesse sido interrompida — conheci esse casal de escoceses e falei, tipo, Nossa, o salmão defumado do seu excelente país é delicioso...
Amy abriu a janela com cuidado, sem fazer barulho. Ela e Dan saíram em silêncio.
— E eles falaram, tipo, Ah é, moça, jura que você conhece os nossos peixinhos? Verdade? — Nellie continuava, fingindo um sotaque escocês horrível. — Aí eu disse: Sabe qual é a única coisa que falta na Escócia? Uns pãezinhos! Pra acompanhar! Daí eles disseram: Puxa, jura que você tá falando sério? Que ideia mais adorável...
Com o falatório de Nellie zunindo em seus ouvidos, Amy e Dan fugiram correndo.
Eles seguiram o caminho em curva, passaram por baixo das palmeiras, atravessaram os jardins e contornaram até a porta da frente do hotel.
— Aposto que o espião está no saguão — disse Dan. — O aparelho tem umtransmissor sem fio, por isso vamos ter que examinar os ouvidos de cada pessoa.
— E como vamos fazer isso?
— Que tal dizendo que viemos pra uma convenção de fabricantes de cotonetes?
Eles entraram no saguão, que estava apinhado de hóspedes se abrigando do calor da tarde. Dan e Amy pararam perto de uma coluna e observaram a multidão. No começo foi difícil escolher uma única pessoa para olhar. Havia turistas de pé e sentados, conversando, lendo guias e revistas, passando jornais uns para os outros, todos tomando fôlego antes do próximo round de visitas a templos.
Dan apontou com o queixo para um homem sentado de costas para ele. Era um sujeito musculoso usando um chapéu de palha duro, com um jornal aberto na frente do rosto. Seu pescoço grosso estava vermelho, queimado de sol.
— Faz cinco minutos que ele não vira uma página. E tem alguma coisa no ouvido dele. Vamos.
— Mas não estou reconhecendo ele...
— Aposto que é Eisenhower Holt disfarçado.
Amy foi atrás. Dan andou até o homem e arrancou o jornal da frente do seu rosto.
— Peguei você!
— O que você acha que está fazendo, meu rapaz? — o homem perguntou num sotaque britânico.
Dan devolveu depressa o jornal para o homem.
— Hã... peguei você por usar o melhor chapéu do pedaço! — ele inventou. — Parabéns!
Amy puxou Dan para longe.
— Enquanto você estava atacando aquele cara, todo mundo no saguão olhou pra gente — ela sussurrou. — Menos ele.
Havia um homem sentado no canto, com um jornal na frente do rosto. Vestia um terno da cor de sorvete de baunilha. Vendo os sapatos da mesma cor, Dan percebeuque o homem usava meias cor-de-rosa.
— É ele — declarou Dan. — Só conhecemos um único panaca que consegue fazer alta espionagem e caprichar no figurino ao mesmo tempo.
Era uma piada idiota, mas foi só para controlar a loucura que ele sentiu ao ver o tio. Alistair Oh era o único membro da família Cahill que de fato tinha se afeiçoado a eles. Pelo menos era o que eles achavam. É verdade que tinham passado a perna uns nos outros algumas vezes, mas também acabaram trabalhando em equipe. Alistair salvara a pele deles em mais de uma ocasião. Mas, no fim, mostrara ser igual a todos os outros Cahill: estava agindo por conta própria e disposto a trair qualquer um que se metesse em seu caminho.
Dan avançou até ele discretamente e agarrou o jornal, jogando-o para longe de Alistair.
— Surpresa!
Alistair Oh ergueu o rosto para eles, com um olhar inocente:
— Saudações, meus jovens.
— Saudações, sua raposa — respondeu Dan.
— Talvez uma explicação fosse apropriada...
— Talvez uma cacetada na sua cabeça fosse apropriada — ameaçou Dan.
Amy deu alguns passos, pegou um telefone do hotel e discou o número do quarto deles. Quando Nellie atendeu, ela disse:
— Certo, agora pode parar.
— Puxa, que boa notícia — disse Nellie aliviada. — Eu já estava prestes a desmaiar!
Amy pôs o fone no gancho e se virou para Alistair. Dan estava de braços cruzados, encarando o tio.
— Entendo que isso possa parecer errado... — justificou Alistair.
— Você ouviu isso, Amy? Tem um morto falando.
— Que incrível! — concordou Amy. — Mas será que você não quis dizer um morto mentiroso, trapaceiro e traidor?
— Eu tive um bom motivo para fazer o que fiz! — exclamou Alistair. — Minha segurança depende do fato de eu estar morto. Qualquer coisa que não fosse isso não teria funcionado. Vejam, nossa aliança agora vai ser mais forte do que nunca.
— Nós não temos uma aliança — afirmou Dan. — Porque você mentiu.
— Foi uma mentirinha necessária. Pensem bem. Agora posso agir em segredo. Vocês terão um parceiro realmente silencioso. Os Kabra acham que eu morri. A notícia logo vai se espalhar por toda a família Cahill.
— Seu tio acha que você está vivo.
— Bom — Alistair tossiu de leve. — Ele deve ter seus motivos. Mas não vai contar pros outros. Apesar das nossas divergências, somos Ekaterina.
— Então por que você pôs um microfone escondido no nosso quarto? — perguntou Dan.
— Eu sabia que vocês tinham falado com meu tio no Cairo. Queria descobrir se tinham feito uma aliança com ele. Vocês não devem confiar nele.
— E por acaso a gente deve confiar em você? — caçoou Amy.
— Você espiona a gente e vai que, sem querer, acaba ouvindo alguma informação sobre uma pista pra chegar antes de nós. Isso seria um bônus, né? — Dan perguntou, sarcástico.
— Não, não foi para chegar antes de vocês — insistiu Alistair. — Foi para ajudar vocês. Podemos fazer isso juntos.
— Agora quer que a gente acredite em você? — redarguiu Amy. — Nós confiávamos em você, Alistair. Você abandonou a gente.
Alistair deu um suspiro. Baixou o olhar e contemplou seus tornozelos cor-de-rosa.
— Me arrependo de ter perdido a confiança de vocês — ele confessou. Ergueu o rosto e encarou os dois. Parecia haver sinceridade em seus olhos castanhos. — Mas não posso me arrepender do que fiz. Foi pelos melhores motivos. Pela nossa aliança.
— Pare de usar essa palavra — mandou Dan. — Você não entende? A gente não confia em raposas!
— Vocês precisam entender uma coisa: esse é só o começo da busca pelas 39 pistas. Haverá traições verdadeiras e traições aparentes. Haverá reviravoltas. Vitórias que no fundo não farão diferença. O que vocês devem fazer é simples. Por mais que as coisas pareçam estranhas, precisam continuar avançando. E como fazer isso? Seguindo seu coração. Se realmente acreditam que eu não estou do lado de vocês, então podem ir embora. Mas se acreditam que juntos podemos encontrar essa pista, fiquem.
O que fazer? Dan perguntou-se. Ele estava furioso com Alistair. Os dois ainda estavam abalados com a traição de Theo e Hilary. Talvez Amy tivesse razão, não podiam confiar em ninguém. Principalmente em Alistair. Porém, estavam num beco sem saída e talvez precisassem dele.
— Tenho um jeito de encontrar a pista.
Dan acenou negativamente com a cabeça:
— Duvido.
Alistair sorriu:
— Sou um Ekaterina. Não duvide de mim.

***

Alistair foi abrindo uma trilha entre os juncos com um graveto. A lama empapava as barras de sua calça cor de creme, feitas sob medida para ele por um ótimo alfaiate de Hong Kong. Às vezes era necessário fazer sacrifícios na busca de um objetivo valioso.
Ele havia contratado um táxi para levá-los para fora da cidade, seguindo para o sul, depois o dispensara numa aldeia núbia. Distribuiu saquinhos de balas e canetas para espantar os meninos do povoado, que pediam bakshish. Agora eles estavam sozinhos numa trilha em direção ao rio, um caminho cada vez mais coberto pelo mato.
O aparelho de espionagem talvez não tivesse sido sua melhor ideia. Ele devia simplesmente ter batido na porta e conversado com eles. Mas assim não podia ter certeza de que não haviam falado com Bae. Precisava certificar-se de que as crianças não o haviam traído.
Esse era o problema de todos os Cahill: ninguém sabia em quem confiar. E com razão, é claro. Alistair tinha traído e sido traído inúmeras vezes.
Quisera escapar à moda dos Cahill. Tinha tentado cooperar com Dan e Amy. Mas viu uma chance de fugir, de fingir que estava morto, e os abandonou. Às vezes era necessário fazer sacrifícios na busca de um objetivo valioso.
Ele falou isso para si mesmo.
Mas havia diferença entre calças e crianças.
O mais triste era que ele se identificava com as crianças. Sua infância tinha sido sacrificada em nome da busca pelas pistas. Seu tio cuidara para que isso acontecesse. Bae tinha se aproveitado da engenhosidade de Alistair, explorado o sobrinho, mentido para ele. Fizera coisas indizíveis na busca de um objetivo improvável. E agora, chegando ao fim da vida, o tio Bae estava ainda mais desesperado.
E Alistair também estava desesperado. Desesperado para vencer. Porque as 39 pistas não podiam cair nas mãos de Bae Oh. Mesmo ele sendo um Ekat.
O que aconteceria com Dan e Amy? O que aquela caçada faria com eles? O que Grace havia legado aos netos? Ela devia tê-los protegido melhor, pensou Alistair, sentindo uma tristeza repentina. Será que as pistas tinham corrompido Grace também? Será que a proteção das crianças agora dependia dele? Nesse caso, estavam todos encrencados. Ele faria o melhor possível, mas não era nenhum herói.
Ele via no rosto duro de Dan que o menino ainda não confiava nele. Alistair sentiu uma coisa estranha envolver seu coração. Afeto. Uma emoção que ele abandonara tantos anos atrás, quando havia se concentrado na busca pelas pistas.
Eles se embrenharam na vegetação rasteira e foram parar na margem do rio. Alistair se livrou do graveto que segurava e afastou os juncos para o lado com as mãos.
— Com vocês — ele anunciou com a voz entusiasmada — o submersível Ekat.
Dan e Amy espiaram por entre os arbustos. Um pequeno veículo em formato de bolha apoiava-se em duas pernas que terminavam no que pareciam os pés de um pato gigante. A bolha era feita de plástico esverdeado. Havia um pequeno propulsor em uma das extremidades que o sustentava.
— Ah, você tá brincando — caçoou Dan. — Você comprou isso no supermercado?
— Eu mesmo o projetei — explicou Alistair, dando um tapinha no veículo.
Amy parecia nervosa.
— Tem uma escotilha de emergência?
— Não precisa de escotilha de emergência. Ele é infalível. Vocês estão com o mapa?
Amy assentiu com a cabeça e apontou para a pochete.
— É o único jeito de chegarmos lá — garantiu Alistair — Philae está bem ali, esperando por nós. — Ele apontou para a água verde. — Não falta muito tempo para o pôr do sol, e daí ficaremos sem luz.
— Dan? — consultou Amy.
Dan olhou para a água. Alistair viu o menino calcular suas chances, para depois tomar uma decisão. Ele ia aceitar. Aquele traço de personalidade seria bom ou perigoso?
De qualquer modo, o coração de Alistair se encheu de alívio quando Dan acenou afirmativamente com a cabeça.
— Vamos achar essa pista.

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