domingo, 1 de junho de 2014

Capítulo 7

Irina Spasky estava furiosa consigo mesma. Se pudesse, mandaria a si própria para umcampo de trabalho forçado na Sibéria. Era isso que ela merecia: clima glacial, cobertores finos e um nabo podre no jantar. Como tinha deixado dois amadores, duas crianças, fugirem por entre suas pernas?
E se tivesse que comer outro fala fel, ia vomitar. Era impossível achar uma boa batata cozida naquele país maluco.
Chega de comida estrangeira. Chega desse disfarce de turista. Enojada, ela tirou a camiseta que estampava O EGITO É UM AGITO. Por baixo, vestia uma camiseta preta lisa. Ela sentou-se numa cadeira em seu quarto de hotel barato e olhou para o trânsito caótico. Pôs o dedo no olho, que começava a ter espasmos. Precisava pensar. Quase capturara as crianças, duas vezes, e as deixara escapar! Será que estava perdendo o jeito?
Ela queria voltar para a sua área. Já tinha participado de algumas operações no Cairo quando trabalhava para a KGB, a agência de espionagem russa. Não conseguia agir direito naquele lugar. Todo mundo era simpático demais. Se ela pedia para alguém explicar o caminho, a pessoa andava junto com ela e a acompanhava até o lugar. E era tão quente! Em breve a neve estaria cobrindo as estepes na Rússia e, no Egito, quase 35 graus. Ela ligou o ventilador de teto na potência máxima.
Ainda por cima ela tinha que lidar com outro par de pirralhos: Ian e Natalie Kabra. Eles supostamente estavam trabalhando juntos, mas aqueles dois espertinhos ficavam tentando passar a perna nela. Agora estavam no Quirguistão e não atendiam o celular. No final, tivera que apelar e ligar para os pais deles. E ela nunca gostava de falar com os Kabra. Eles tinham um passado atribulado e confiava neles ainda menos que nos filhos.
Aqueles dois. Gênios, mas idiotas.
Assim como os pais.
Os pais... Irina balançou a cabeça, tentando afugentar a lembrança.
Ela nunca pensava em coisas que não podia mudar. Coisas do passado. Porém, de repente, ali no Cairo, se pegou pensando em Grace Cahill.
Fazia anos que os Lucian haviam convocado uma reunião de alto escalão para discutir o problema chamado Grace Cahill. Eles sabiam que Grace tinha reunido muitas pistas. Até os Lucian admitiam que ela parecia ter uma inteligência especial para isso. Ela precisava ser detida.
Fora Irina quem apresentara a ideia da aliança. Era apenas um truque, é claro. Mas podia ser um jeito de se aproximar de Grace, de descobrir alguma coisa. Irina havia se oferecido como mediadora. O queijo na ratoeira.
Ela se encontrara com Grace. Sozinha, cara a cara A conversa tinha sido breve. Ficou claro que Grace não acreditara em Irina nem por um instante.
Você está tentando me fazer de boba, mas a boba aqui é você, Irina, dissera Grace. Você veio me oferecer uma aliança falsa em vez de uma verdadeira colaboração. É a maldição dos Lucian: achar que podem fazer tudo sozinhos.
Irina partira dali furiosa. Ninguém a chamava de boba. Ninguém.
Recomeçaram as conversas sobre o problema Grace Cahill. Estratégias foram discutidas e descartadas. Propostas foram feitas. Firmaram-se frágeis alianças, com o intuito de abordar a questão em comum. Tudo com melhor das intenções. Só que, após traçado o plano, tinha dado errado. Foi um desastre. A filha e o genro de Grace acabaram perdendo a vida naquele incêndio.
Ela nunca ia esquecer o dia do funeral. Irina sabia que não deveria comparecer e, no entanto, não tinha conseguido deixar de ir. Não tinha a intenção de fazer afronta, apesar do que Grace poderia pensar. O rosto de Grace estava pálido, impassível. A perda de sua querida filha, de seu adorado genro, a tragédia dos netos agora órfãos... Ela parecia anos mais velha. Andava como uma mulher idosa e seus olhos carregavam um sofrimento infinito. Suas mãos tremiam ao jogar rosas nos caixões enquanto eram baixados para dentro da terra.
Irina queria dizer: Eu também já senti a sua dor.
Porém não dissera.
Queria dizer: Percorri as ruas de Moscou como um fantasma. Perdi minha alma, perdi meu coração. Ela queria dizer: Eles acham que a dor é escandalosa, Grace. Acham que o sofrimento nos faz chorar e gemer. Mas eu sei que a dor é silenciosa como a neve.
Eu também perdi um filho.
Mas Irina não dissera nada daquilo. Suas lembranças pertenciam apenas a ela, tinha isolado aqueles pensamentos. O único resquício daquele tempo era um tique no olho quando ela sofria emoções fortes.
Naquele dia, ela culpou Grace por obrigá-la a revisitar suas lembranças. Foi brusca e fria. Disse-lhe:
— O destino não tem escrúpulos. Essas coisas acontecem.
Essas coisas acontecem, ela falou a uma mãe que acabara de perder uma filha. Ouviu suas próprias palavras ecoarem e ficou chocada com a frieza de seu tom. Teve vontade de voltar atrás. Queria ter demonstrado compaixão, ser alguém com sangue nas veias.
Mas não o fez. Em vez disso, sentiu o desprezo avassalador nos olhos de Grace, como uma onda fria do estreito de Bering. Então, num piscar de olhos, o desprezo se transformou em suspeita.
Irina não conseguiu mais encarar Grace nos olhos. Por isso, ficou muito surpresa, para dizer o mínimo, quando foi convidada para o funeral dela. Só decidiu comparecer quando soube que os outros Cahill também tinham sido convidados. Todos no mesmo recinto. Todos aqueles ódios antigos. E Grace manipulando todos feito marionetes.
Será que havia alguma armadilha que Irina não estava conseguindo enxergar? Quem era o queijo? Quem era o rato?
Qual é o seu plano, Grace? Você sempre tinha um plano.
Aqueles netos... Por que Grace os incluíra na busca às pistas? Eles não tinham chance de vencer o resto dos Cahill. Tinham anos de defasagem em conhecimento e treinamento. Era tarde demais para alcançar os outros. Eles tiveram sorte até agora. Apenas isso. Duas crianças sem ninguém para ajudá-las, agindo por medo e motivadas pelo sentimento de perda...
Medo.
Perda.
Sentimentos que já conheci. As coisas que vi...
Ela sentiu um espasmo no olho. Bateu no rosto com a mão, tentando aplacar o nervo que tremia.
O passado era passado.
E, no entanto, lá estava ela no Egito. Para onde quer que olhasse, o ar parecia sussurrar que o passado estava muito vivo...

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