Hilary Vale avançava pelo trânsito do Cairo com o pé no acelerador e a mão na buzina. Ela acelerava, brecava, esterçava todo o volante para aproveitar qualquer espacinho onde conseguisse enfiar o carro.
— Sai da frente, seu borra-botas! — berrava alegremente pela janela para qualquer um que se atrevesse a entrar no caminho.
Os olhos de Dan brilhavam.
— Que mulher legal — ele sussurrou para Amy.
Por fim, ela deixou a avenida principal, passou por um bairro simpático e pegou uma entradinha que serpenteava entre as muitas palmeiras e árvores floridas de um jardim. Com o carro dando um tranco, estacionou em frente a uma bela casa branca.
Eles saíram do automóvel um pouco zonzos com aquele passeio veloz e a fuga por um triz. A casa parecia fresca e silenciosa, depois do barulho e calor das ruas. Hilary entrou imediatamente numa pequena sala de estar. Era forrada de tapetes e tinha grandes sofás cobertos com mantas de tecidos lustrosos. Havia um piano num canto, abajures de porcelana nas mesas e vasos repletos de flores.
Hilary abriu as persianas. Quando a luz do sol bateu na sala, Amy percebeu que asalmofadas do sofá estavam desfiadas e que uma mesa tinha sido colocada sobre um buraco no tapete para disfarçar. Não era uma sala chique, mas era aconchegante, um lugar para sentar e ler durante horas. Amy até ficava um pouco menos tímida, só de estar naquele ambiente.
— Agora podem tirar seus... hã, seus roupões e ficar à vontade — disse Hilary. — Acho que vocês esqueceram de pagar por eles, meus fofos. É por isso que aqueles brutamontes estavam correndo atrás de vocês? Coitadinhos...
— Pois é — concordou Dan. — A gente não imaginava que o pessoal do hotel ia levar tão a sério um roubo de roupão.
Ela levantou de leve o queixo de Amy e inclinou o rosto da menina em direção à luz.
— Você se parece com a Grace — ela disse. — Que lindinha!
— Ei. Vejam isso — apontou Dan.
Amy viu que Dan estava olhando uma foto num porta-retratos prateado em cima do piano. Andou até ele. Era uma fotografia em preto e branco de duas moças na frente da Esfinge de Gizé.
Ela reconheceu Grace na mesma hora: seu cabelo caía por cima dos ombros, ondulado e escuro, e ela usava um vestido branco e sapatos de salto. Seu braço esbelto e bronzeado entrelaçava a garota loira e miúda ao seu lado.
— Grace era minha melhor amiga — disse Hilary Vale. Ela pegou a foto com cuidado. — Nos conhecemos num colégio interno nos Estados Unidos. Fui mandada para lá quando começou a Segunda Guerra Mundial. Meus pais ficaram no Cairo. Nessa época a comunicação era muito difícil por causa da guerra. Grace foi minha família durante muitos anos. Ela me acolheu, mesmo eu sendo uma garota mais nova com um sotaque engraçado. Depois da guerra, convidei-a para vir passar férias aqui. Ela adorava o Egito. — A tristeza se esvaiu de seu rosto de repente e Hilary bateu palmas. — Mas agora é hora dos acepipes! Podem se aconchegar aí, crianças. Eu volto já.
— O que são acepipes? — sussurrou Dan. — Uma dança?
— Acepipes são petiscos — explicou Nellie. — E comida é sempre uma boa notícia.
Ela colocou a gaiolinha de Saladin no chão e se jogou no sofá florido.
— Grace alguma vez falou dela?
— Não lembro — respondeu Amy. — Eu sabia que ela tinha vindo pro Egito, mas ela não falava muito sobre isso. Quer dizer, falava e não falava. Era tudo sempre muito vago.
O Cairo é uma cidade fascinante.
Você já foi pra lá, Grace?
É claro, meu bem. Muitas vezes. Ora, ora, brrr, olha que chuva fria. Que tal se a gente fizesse uns browníes para levantar o ânimo?
Sempre desconversando, sempre com evasivas. Agora Amy se dava conta de como Grace mudava de assunto quando alguém lhe perguntava sobre suas viagens. Sentiu uma pontada de desconfiança, que novamente a deixou desnorteada.
Nas estantes de livros, que se estendiam do chão ao teto, havia mais fotos. Amy pegou uma que estava em outro porta-retratos prateado. Alguém escrevera por cima da imagem com uma caneta branca: Nós, Luxor, 1952. Grace vestia uma calça que parecia empoeirada e uma camisa clara com as mangas arregaçadas. Os olhos estavam espremidos, olhando contra o sol. Hilary Vale usava um vestido florido e um chapéu de aba larga. Parecia que elas estavam paradas em frente a algum tipo de templo. Grace estava fazendo uma pose egípcia, de brincadeira, com o pulso dobrado e a mão esticada. Nesse instante, Hilary entrou na sala trazendo uma bandeja e a pousou sobre uma lustrosa mesa redonda ao lado da janela. Nellie foi depressa ajudá-la a arrumar os pratos de salgados e frutas fatiadas no meio da mesa.
— Vejo que vocês estão olhando essas fotos antigas — disse Hilary. — É difícil acreditar que eu já fui mocinha, não é? Grace vinha todo ano e ficava comigo. Fez isso por vários anos seguidos.
— Todo ano? — perguntou Amy.
— Talvez tenha pulado um ano ou outro. E é claro que, perto do fim da vida, ficou difícil viajar. Ela me contou sobre o câncer. Era muito sincera. Mas ainda assim fiquei chocada quando ouvi a notícia de sua morte. Nunca achei que alguma coisa fosse capaz de derrotar Grace.
Hilary apontou para as cadeiras e todos se sentaram. Amy alisou a madeira lustrada dos braços. Talvez Grace tivesse se sentado naquela mesma cadeira. Ao pensar aquilo, se esforçou para sentir-se mais próxima da avó. Porém, não conseguiu.
HiIary serviu um líquido leitoso que estava em uma bela jarra prateada.
— Isso se chama sahlab — explicou. — É servido em cafés do Egito inteiro. Espero que vocês gostem.
Amy tomou um gole da bebida por educação. Era cremosa e doce, diferente de tudo o que ela já havia provado, mas mal conseguiu engolir. Sua garganta estava entupida de lágrimas, que ameaçavam escorrer à simples menção do nome de Grace.
— Essa comida está incrível — Nellie elogiou, esmigalhando um biscoito e dando para Saladin. — Então, você falou que a Grace entrou em contato antes de morrer. O que ela disse?
Amy lançou um olhar de gratidão para Nellie. Nellie notara a timidez dela e assumiu o posto. Ela sempre podia contar com Nellie. Dan estava ocupado demais se empanturrando de bolo de limão para perceber qualquer coisa. Hilary sorriu e se levantou:
— Pois é, vamos direto ao ponto, como se costuma dizer. Grace me mandou uma carta e pediu que eu entregasse algumas coisas a vocês.
Ela andou até um armarinho e o abriu. Tirou vários objetos e voltou para a cadeira, colocando-os no colo. Amy sentiu um impulso de pegar aquelas coisas e correr para olhar sozinha, mas se forçou a tomar outro gole da bebida e ficar onde estava.
Hilary pôs um livro na mesa.
— Primeiro, este é o guia turístico do Egito que Grace usou por muitos anos. Ela queria que vocês ficassem com ele.
Ela empurrou o livro na direção de Amy. Era um volume grosso, com a capa empenada e manchada, cheio de marcas de dedos nas páginas.
— Está desatualizado, é claro — Hilary acrescentou com um sorriso. — Mas, na verdade, as coisas não mudam muito por aqui.
Amy folheou o livro. Viu anotações nas margens, na letra floreada de Grace.
Comida ótima aqui, viagem de 1972.
Bom, aquilo não parecia ajudar muito.
— Este foi o último cartão de Natal que ela me enviou — continuou Hilary. — Tem uma mensagem nele para vocês.
Minha querida Hilary,
Um Feliz Natal e muito amor para você e os seus. Meus netos devem chegar ao Cairo em breve. É hora de cobrar a promessa que você me fez tantos anos atrás.
Por favor, transmita esta mensagem a meus queridos Dan e Amy:
Tesouros,
Do Egito vêm muitas coisas maravilhosas.
Bem-vindos. Espero que vocês se divirtam aí. É um país que hoje só posso visitar nos meus sonhos, mas aceito isso com resinaçao.
Se eu tivesse sido metade da grande avó que deveria ter sido, teria levado vocês ai pessoalmente. Queria poder estar ai junto com vocês, enquanto seguem os passos que trilhei muito tempo atrás. Não se esqueçam da arte! Vocês sempre podem deixar o básico para o fim.
Com muito amor, Grace.
P.s.: A senhora Fennick está mandando lembranças pra S!
Amy e Dan olharam o cartão. A mão de Grace segurara a caneta e traçara aquelas linhas e floreios. Ela usara uma caneta-tinteiro, como sempre fazia com mensagens importantes. Havia um borrão no final do “g” de “grande avó”. Embora eles soubessem que ela estava doente quando escrevera, a caligrafia era forte e legível. Grace sabia que eles leriam aquilo depois que estivesse morta.
Mesmo o erro na palavra “resignação” fez Amy sentir tontura, como se a avó estivesse bem no quarto ao lado, escrevendo cartões de Natal e gritando: “Me tragam um licorzinho por favor, meus anjos. Preciso dele para recuperar minha alegria natalina!”
Ela tinha deixado uma mensagem para eles. Depois de tantas semanas encucados com aquilo, lá estava. E, no entanto, que carta era aquela? Era pessoal, pois ela sempre os chamava de tesouros, mas, ao mesmo tempo, impessoal. Grace parecia tão alegre, incentivando os dois a conhecer o Egito. Como se a viagem deles fosse meramente turística.
Amy olhou para Dan. Sabia que a expressão no rosto dele espelhava a dela própria: perplexidade e mágoa. Que espécie de mensagem de despedida era aquela?
Dan estendeu a mão e pegou o envelope:
— O carimbo é do correio de Nantucket. Do ano passado.
Amy e Dan trocaram um olhar. Com isso, os dois voaram para longe daquela sala, daquela cidade estranha e quente, e foram parar num lugar que conheciam muito bem. Grace tinha uma casinha na cidade de Sconset, na ilha de Nantucket, litoral do estado de Massachusetts. Eles lembravam do céu azul e das nuvens que pareciam de algodão, do ar com gosto de sal. Grace assando espigas de milho temperadas com manteiga e limão. Grace gritando O último que mergulhar é uma jiboia! e o choque da pele com o mar frio, fresco.
— Lembra da velha Fenwick? — perguntou Dan.
Amy sorriu. Betsy Fenwick tinha sido vizinha deles. Amy não lembrava mais qual dos dois havia começado a chamá-la assim. Ela vinha de “uma das famílias mais antigas de Beacon Hili”, em Boston, informação que dava um jeito de enfiar em qualquer conversa. Cuidava de seu jardim vestindo uma calça velha e um boné dos Yankees e censurava Grace por deixar suas rosas crescerem descontroladamente.
A senhora Fenwick não gostava de gatos em geral, e nutria um ódio especial por Saladin, que por algum motivo misterioso escolheu o jardim dela como banheiro particular. Grace dizia que não entendia qual era o problema. Afinal, não estava ajudando Betsy Fenwick a economizar o dinheiro do fertilizante? Mas, como acontecia com todas as piadas, a senhora Fenwick também não tinha entendido aquela. Baniu Saladin do seu jardim e insistiu que Grace pendurasse um sininho na sua coleira. Saladin detestava aquele sininho. Ficava olhando para aquela coisa embaixo dele. Eu sou um gato ou uma campainha?, ele parecia dizer.
O sorriso de Amy esvaneceu. Lembrar de Nantucket a fazia sentir-se ainda mais confusa. Eles tinham tido tanto tempo! Nada para fazer além de aproveitar o verão. Todas aquelas longas tardes, vendo o sol se fundir no mar... Tantas oportunidades de Grace dizer: Ah, a propósito, vocês têm um direito de nascença. E um fardo. Preciso contar umas coisas.
— “Deixar o básico para o fim” — Nellie leu. — O que isso quer dizer?
— Sempre que nos levava num passeio, Grace não deixava a gente ler o guia turístico antes — explicou Dan. — A gente tinha que olhar primeiro, e só depois ler o que outra pessoa tinha dito sobre o lugar.
Hilary tirou uma caixinha do colo e disse:
— E agora, minha promessa. Isto aqui ficou num cofre de banco no Cairo por mais de cinquenta anos. Grace me deu uma das chaves e ficou com a outra. Seu advogado a trouxe ontem para mim. Um tal senhor Mclntyre.
— O senhor Mclntyre está aqui no Cairo? — perguntou Amy.
— Um homem muito simpático, só um pouco travado. Fomos juntos ao banco e abrimos o cofre. Dentro, só tinha esta caixa. Ele disse que vocês chegariam ao Cairo em breve e era para eu abrir a caixa na frente de vocês. Estão vendo o lacre? É para mostrar que não foi violada. Bom, vamos lá.
Hilary quebrou o lacre. A tampa da caixa rangeu ao ser levantada. Havia um pequeno objeto embrulhado em linho.
— Posso?
Amy e Dan consentiram com a cabeça. Com cuidado, Hilary pegou o objeto e o desembrulhou.
Foram encarados por olhos de esmeralda, antiquíssimos e penetrantes. Era a estátua dourada de Sakhet.
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