quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo trinta e nove



Tris


Matthew junta as mãos atrás das costas.
— Não, não, o soro não apaga todo o conhecimento de uma pessoa — diz ele. — Você acha que projetaríamos um soro que faz as pessoas se esquecerem de como falar ou caminhar? — Ele balança a cabeça. — Ele tem como alvo memórias explícitas – como o seu nome, onde você cresceu, o nome de sua primeira professora – e deixa lembranças implícitas – como a forma de falar, amarrar os sapatos ou andar de bicicleta – intocadas.
— Interessante — Cara comenta. — Isso realmente funciona?
Tobias e eu trocamos um olhar. Não há nada como uma conversa entre um Erudito e alguém que pode muito bem ser um Erudito. Cara e Matthew estão de pé bem perto, e quanto mais eles falam, mais gestos fazem.
— Inevitavelmente, algumas memórias importantes serão perdidas — Matthew fala — mas se nós tivermos um registro de descobertas científicas ou de histórias das pessoas, elas podem reaprendê-las no período nebuloso após suas memórias forem apagadas. As pessoas são muito maleáveis, então.
Eu me inclino contra a parede.
— Espere — digo. — Caso o Centro carregue todos os aviões com o vírus do soro da memória para reinicializar os experimentos, haverá algum soro restante para usar contra o complexo?
— Nós teremos que obtê-lo primeiro — Matthew responde. — Em menos de 48 horas.
Cara não parece ter ouvido o que eu disse.
— Depois que você apagar as memórias, não vai ter que programá-las com memórias novas? Como é que isso funciona?
— Nós apenas temos que voltar a ensinar-lhes. Como eu disse, as pessoas tendem a ficar desorientadas por alguns dias depois de ter sido reinicializadas, o que significa que vai ser mais fácil de controlá-las — Matthew senta, e gira em sua cadeira uma vez. — Nós podemos apenas dar-lhes um novo tipo de história. Aquele que ensina fatos em vez de propaganda.
— Nós poderíamos usar o slide da fronteira para complementar a lição básica da história — aponto. — Eles têm fotografias de uma guerra causada por GPs.
— Ótimo — Matthew concorda. — O grande problema, no entanto: o vírus do soro da memória está no Laboratório de Armas. O mesmo que Nita tentou – e falhou – em invadir.
— Christina e eu deveríamos falar com Reggie — diz Tobias — mas penso que, dado este novo plano, deveríamos falar com Nita em seu lugar.
— Acho que você está certo — concordo. — Vamos descobrir onde ela errou.

+ + +

Quando cheguei aqui, imaginei que com o complexo fosse enorme e irreconhecível. Agora eu nem sequer tenho que consultar as placas para me lembrar de como chegar ao hospital, e nem Tobias, que mantém o ritmo comigo no caminho. É estranho como o tempo pode fazer um lugar encolher, tornar sua estranheza comum.
Nós não dizemos nada um ao outro, embora eu possa sentir a conversa se aproximando de nós. Finalmente decido perguntar.
— O que há de errado? Você mal falou durante a reunião.
— Eu só... — ele balança a cabeça. — Eu não tenho certeza se esta é a coisa certa a fazer. Eles querem apagar a memória dos nossos amigos, e por isso você decide apagar a deles?
Viro-me para ele e toco seus ombros levemente.
— Tobias, temos 48 horas para detê-los. Se puder pensar em qualquer outra ideia, qualquer outra coisa que possa salvar nossa cidade, estou aberta a sugestões.
— Eu não posso — seus olhos azuis escuros estão derrotados, tristes. — Mas estamos agindo por desespero para salvar algo que é importante para nós, assim como o Centro é. Qual é a diferença?
— A diferença é o que é certo — digo com firmeza. — As pessoas na cidade, como um todo, são inocentes. As pessoas do Centro, que forneceram a Jeanine o soro da simulação de ataque, não são inocentes.
Sua boca se aperta, e posso dizer que ele não aceitou completamente.
Eu suspiro.
— Não é uma situação perfeita. Mas quando você tem que escolher entre duas opções ruins, você escolhe a única que salva as pessoas que ama mais e acredita. Apenas faz-se isso. Ok?
Ele pega minha mão, a mão dele é quente e forte.
— Tudo bem.
— Tris! — Christina empurra as portas giratórias do hospital e corre em nossa direção.
Peter está em seus calcanhares, com o cabelo escuro penteado suavemente para o lado. No começo acho que ela está animada, e sinto uma onda de esperança – será que Uriah acordou?
Mas quanto mais perto ela chega, mais óbvio fica que ela não está animada. Ela está frenética. Peter perdura atrás dela, os braços cruzados.
— Acabei de falar com um dos médicos — diz ela, sem fôlego. — O médico disse que Uriah não vai acordar. Algo sobre... sem ondas cerebrais.
Um peso se instala em meus ombros. Eu sabia, é claro, que Uriah poderia nunca mais acordar. Mas a esperança que manteve a dor na represada está diminuindo, esvaindo a cada palavra que ela fala.
— Eles iam tirá-lo do suporte vital imediatamente, mas eu implorei a eles — ela limpa seus olhos ferozmente com as costas da mão, limpando uma lágrima antes de cair. — Finalmente, o médico disse que me daria quatro dias. Assim eu posso contar à sua família.
Sua família. Zeke ainda está na cidade, assim como sua mãe na Audácia. Nunca me ocorreu antes que não soubessem o que aconteceu com Uriah, e nunca me preocupou contar-lhes, porque estávamos todos tão concentrados em...
— Eles vão reinicializar a cidade em 48 horas — eu digo de repente, e aperto o braço de Tobias. Ele parece atordoado. — Se não pudermos impedi-los, significa Zeke e sua mãe vão esquecê-lo.
Eles vão esquecê-lo antes que tenham a chance de dizer adeus a Uriah. Será como se ele nunca tivesse existido.
— O quê? — Exige Christina, os olhos arregalados. — Minha família está lá. Eles não podem reinicializar todos! Como poderiam fazer isso?
— Muito facilmente, na verdade — diz Peter. Eu tinha esquecido que ele estava lá.
— O que você está fazendo aqui? — exijo.
— Fui ver Uriah — ele responde. — Existe uma lei contra isso?
— Você nem sequer se preocupa com ele — cuspo. — Que direito você tem de...
— Tris — Christina balança a cabeça. — Agora não, ok?
Tobias hesita, a boca aberta como se palavras esperassem em sua língua.
— Nós temos que ir — diz ele. — Matthew disse que poderíamos vacinar as pessoas contra o soro da memória, certo? Então vamos entrar, inocular a família de Uriah apenas neste caso, e trazê-los para o complexo para dizer adeus a ele. Temos que fazê-lo amanhã, ou seria tarde demais — ele faz uma pausa. — E você pode inocular sua família também, Christina. Eu deveria ser a pessoa que falará com Zeke e Hana, de qualquer maneira.
Christina concorda. Eu aperto-lhe o braço, em uma tentativa de reafirmação.
— Eu também vou — diz Peter. — A menos que queiram que eu conte a David o que estão planejando.
Todos paramos para olhar para ele. Eu não sei o que Peter quer com uma viagem para a cidade, mas não pode ser bom. Ao mesmo tempo, não podemos permitir que David descubra o que estamos fazendo, não agora, quando não há tempo.
— Tudo bem — Tobias responde — mas se você causar algum problema, me reservo o direito de socá-lo até a inconsciência e trancá-lo em um prédio abandonado em algum lugar.
Peter revira os olhos.
— Como é que vamos chegar lá? — Christina pergunta. — Não é como se eles simplesmente deixassem as pessoas pegarem carros emprestados.
— Aposto que poderíamos chamar Amar — eu digo. — Ele me disse hoje que sempre se voluntaria para patrulhas. Então ele conhece todas as pessoas certas. E tenho certeza de que ele concordaria em ajudar Uriah e sua família.
— Eu deveria ir perguntar a ele agora. E alguém provavelmente deve sentar-se com Uriah... certificar-se de que o médico não vai voltar atrás em sua palavra. Christina, não Peter — Tobias esfrega a parte de trás do seu pescoço, arranhando a tatuagem do símbolo da Audácia como se quisesse arrancá-la de seu corpo. — E então eu deveria descobrir como contar à família de Uriah que ele foi morto quando eu deveria estar cuidando dele.
— Tobias... — começo, mas ele levanta a mão para me parar.
Ele começa a se afastar.
— Eles provavelmente não vão me deixar visitar Nita de qualquer maneira.
Às vezes é difícil saber como cuidar de pessoas. Enquanto observo Peter e Tobias se afastarem – mantendo distância um do outro, penso que é possível que Tobias precise de alguém para correr atrás dele, porque as pessoas seguem deixando-o ir embora, deixando-o retirar-se, durante toda a sua vida. Mas ele está certo: ele precisa fazer isso por Zeke, e eu preciso falar com Nita.
— Vamos lá — diz Christina. — O horário de visitas está quase no fim. Vou voltar a me sentar com Uriah.

+ + +

Antes de entrar no quarto de Nita – identificável pelo guarda sentado ao lado da porta – paro para visitar Uriah em sua cama com Christina. Ela se senta na cadeira ao lado dele, que está amassada com o contorno de suas pernas.
Tem sido um longo tempo desde que falei com ela como uma amiga, um longo tempo desde que rimos juntas. Eu estava perdida no nevoeiro do Centro, na promessa de pertencer.
Estou ao seu lado e olho para ele. Ele realmente não parece mais ferido – há algumas contusões, alguns cortes, mas nada sério o suficiente para matá-lo. Inclino a cabeça para ver a tatuagem de uma cobra enrolada em torno de sua orelha. Sei que é ele, mas ele não se parece muito com Uriah sem um sorriso largo no rosto e seus olhos escuros brilhantes, alertas.
— Ele e eu nem sequer éramos realmente próximos — diz ela. — Só... no fim. Porque ele tinha perdido alguém que morreu, e por isso eu...
— Eu sei. Você o ajudou, de verdade.
Arrasto uma cadeira para sentar-me ao lado dela. Ela aperta a mão de Uriah, que permanece imóvel na cama.
— Às vezes sinto como se tivesse perdido todos os meus amigos — ela fala.
— Você não perdeu Cara. Ou Tobias. E Christina, você não me perdeu. Nunca vai me perder.
Ela se vira para mim, e em algum lugar na névoa de tristeza, nós envolvemos nossos braços em torno uma da outra, da mesma forma desesperada que fizemos quando ela me disse que tinha me perdoado por matar Will. Nossa amizade tem permanecido no âmbito de um peso incrível, o peso de eu atirar em alguém que ela amava, o peso de muitas perdas. Outras relações teriam quebrado. Por alguma razão, esta não.
Ficamos agarradas juntos por um longo tempo, até que o desespero se desvanece.
— Obrigada — ela fala. — Você não vai me perder, também.
— Tenho certeza que se fosse perder, já teria perdido — sorrio. — Escute, tenho algumas coisas para te por em dia.
Conto a ela sobre o nosso plano para impedir o Centro de reinicializar os experimentos. Enquanto falo, penso nas pessoas que ela está prestes a perder – o pai e a mãe, sua irmã – todas essas conexões, para sempre alteradas ou descartadas, em nome da pureza genética.
— Sinto muito — falo quando termino. — Sei que você provavelmente vai querer nos ajudar, mas...
— Não se desculpe — ela olha para Uriah. — Ainda estou feliz por estar indo para a cidade — ela acena com a cabeça algumas vezes. — Você vai impedi-los de reinicializar o experimento. Eu sei que vai.
Espero que ela esteja certa.

+ + +

Eu só tenho dez minutos até o horário de visitas termine quando chego ao quarto de Nita. O guarda olha para cima de seu livro e levanta a sobrancelha para mim.
— Posso entrar? — pergunto.
— Na verdade, eu não deveria deixar as pessoas lá dentro — ele responde.
— Fui eu quem atirou nela. Isso conta para alguma coisa?
— Bem — ele encolhe os ombros. — Contanto que você prometa não vai atirar novamente. E sair em dez minutos.
— Certo.
Ele me faz tirar o casaco para mostrar que não estou carregando armas, e então me deixa no quarto. Nita se endireita tanto quanto ela pode, de qualquer maneira. Metade de seu corpo está envolto em gesso, e uma de suas mãos está algemada à cama, como se ela pudesse escapar, mesmo se quisesse. Seu cabelo está bagunçado e preso, mas é claro, ela ainda está bonita.
— O que você está fazendo aqui? — ela pergunta.
Eu não respondo – verifico os cantos da sala em busca de câmeras, e há uma do outro lado de mim, apontada para a cama de hospital de Nita.
— Não há microfones — diz ela. — Eles realmente não fazem isso aqui.
— Ótimo — puxo uma cadeira e me sento ao lado dela. — Estou aqui porque preciso de informações importantes de você.
— Eu já contei tudo o que tinha para lhes falar — ela me encara fixamente — não tenho nada mais a dizer. Especialmente para a pessoa que atirou em mim.
— Se eu não tivesse atirado em você, não seria a pessoa favorita de David, e não saberia de todas as coisas que sei — olho para a porta, mais por paranoia do que uma preocupação real de que alguém esteja escutando. — Nós temos um novo plano. Matthew, eu e Tobias. E isso vai exigir entrar no Laboratório de Armas.
— E você pensou que eu poderia ajudá-la com isso? — Ela balança a cabeça. — Eu não pude entrar na primeira vez, lembra-se?
— Preciso saber como é a segurança. David é a única pessoa que conhece o código de acesso?
— Não exatamente... a única pessoa. Isso seria estúpido. Seus superiores a conhecem, mas ele é o único do complexo, sim.
— Ok, então qual é a medida de segurança de backup? O que é ativado se você explodir o portas?
Ela aperta os lábios de modo que eles quase desaparecem, e olha para o gesso que cobre metade de seu corpo.
— É o soro da morte — ela responde. — Na forma de aerossol, é praticamente imparável. Mesmo se você usar um traje impermeável ou algo assim, ele trabalha o seu caminho eventualmente. Só dá um pouco mais de tempo dessa maneira. É o que dizem os relatórios de laboratório.
— Então eles apenas matam automaticamente  qualquer um que abre seu caminho para que a sala sem o código de acesso?
— Isso te surpreende?
— Acho que não — equilibro meus cotovelos sobre os joelhos. — E não há maneira de entrar sem o código de David.
— Que, como você descobriu, ele é completamente incapaz de dividir.
— Não há nenhuma chance de um GP conseguir resistir ao soro da morte?
— Não. Definitivamente não.
— A maioria dos GPs não pode resistir ao soro da verdade, também — respondo. — Mas eu posso.
— Se você quer ir flertar com a morte, fique à vontade — ela se inclina para trás nos travesseiros. — Terminei com isso agora.
— Só mais uma pergunta. Digamos que eu queira flertar com a morte. Onde posso obter explosivos para quebrar as portas?
— Como se eu fosse te dizer isso.
— Não acho que você entenda — eu digo. — Se este plano for bem sucedido, você não vai mais ser presa pela vida toda. Vai se recuperar e ficar livre. Portanto, é do seu melhor interesse me ajudar.
Ela olha para mim como se estivesse me pesando e me medindo. Ela dá puxões contra a algema, apenas o suficiente para que o metal faça uma linha em sua pele.
— Reggie tem os explosivos. Pode te ensinar como usá-los, mas ele não é bom em ação, então pelo amor de Deus, não o leve junto a menos que queira se sentir como uma babá.
— Entendido — respondo.
— Diga-lhe que vai exigir o dobro do poder de fogo para passar por aquelas portas do que por outra qualquer. Elas são extremamente resistentes.
Concordo com a cabeça. Meu relógio emite um sinal sonoro pela hora, sinalizando que o meu tempo acabou. Fico de pé e empurro minha cadeira de volta para o canto onde a encontrei.
— Obrigada pela ajuda.
— Qual é o plano? — ela pergunta. — Se você não se importa de me contar.
Faço uma pausa, hesitando sobre as palavras.
— Bem — digo finalmente. — Vamos apenas dizer que ele irá apagar a frase “geneticamente deficiente” do vocabulário de todos.
O guarda abre a porta, provavelmente para gritar comigo por ultrapassar o meu limite de tempo, mas já estou fazendo meu caminho para fora. Olho por cima do ombro apenas uma vez antes de ir, e vejo que Nita está dando um pequeno sorriso.

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