quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo trinta e oito

Tobias


Apoio meu sapato na beira da cama de Tris e aperto os cadarços. Através das grandes janelas vejo a luz da tarde refletindo nos painéis laterais dos aviões estacionados na pista de pouso. GDs em roupas verdes passam sob as asas e rastejam debaixo do nariz, verificando os aviões antes da decolagem.
— Como o seu projeto com Matthew vai indo? — pergunto a Cara, que está a duas camas de distância.
Tris deixou Cara, Caleb e Matthew testarem seu novo soro da verdade sobre ela esta manhã, mas não a vejo desde então.
Cara está passando uma escova pelo cabelo. Ela olha ao redor do cômodo para se certificar de que está vazio antes de responder.
— Não muito bem. Até agora Tris permaneceu imune à nova versão do soro que criamos – não teve efeito algum. É muito estranho que os genes de uma pessoa a tornem tão resistentes à manipulação da mente de qualquer tipo.
— Talvez não sejam seus genes — aponto, encolhendo os ombros. Movo meus pés. — Talvez seja uma espécie de teimosia sobre-humana.
— Oh, nós estamos na parte de insulto pela separação? — ela pergunta. — Porque tenho muita prática após o que aconteceu com Will. Tenho várias coisas acerca o nariz dela.
— Nós não nos separamos — sorrio. — Mas é bom saber que você tem esses sentimentos calorosos para com a minha namorada.
— Peço desculpas, não sei por que pulei essa conclusão — as bochechas de Cara ficam vermelhas. — Meus sentimentos para com sua namorada são misturados, sim, mas na maior parte eu tenho muito respeito por ela.
— Eu sei. Só estava brincando. É bom vê-la perturbada de vez em quando.
Cara olha pra mim.
— Além disso — pergunto — o que há de errado com o nariz dela?
A porta do dormitório se abre e Tris entra, cabelo despenteado e olhos selvagens. Me perturba vê-la tão agitada, como se o chão em que piso não fosse mais sólido. Eu me levanto e passo minha mão em seu cabelo para colocá-lo de volta no lugar.
— O que aconteceu? — pergunto, minha mão descansando em seu ombro.
— Reunião do conselho — Tris responde.
Ela cobre a minha mão com a sua brevemente, então se senta em uma das camas, as mãos pendendo entre os joelhos.
— Eu odeio ser repetitiva — Cara diz — mas... o que aconteceu?
Tris balança a cabeça como se estivesse tentando sacudir a poeira de fora.
— O conselho tem feito planos. Grandes planos.
Ela nos conta, aos trancos e barrancos, sobre o plano do conselho para reinicializar as experiências. Enquanto ela fala, prende as mãos sob as pernas e pressiona-as para a frente até os pulsos ficam vermelhos.
Quando ela termina, sento-me ao lado dela, colocando meu braço sobre seus ombros. Olho pela janela para os aviões parados na pista, brilhantes e prontos para o voo. Em menos de dois dias esses aviões provavelmente vão liberar o vírus do soro da memória nos experimentos.
Cara pergunta para Tris:
— O que você pretende fazer a respeito?
— Eu não sei — ela responde — sinto como se eu não soubesse mais o que é certo.
Elas são semelhantes, Cara e Tris, duas mulheres afiadas pela perda. A diferença é que a dor de Cara a fez ter mais certeza, e Tris apenas guardou sua incerteza, protegeu-a, apesar de tudo o que passou. Ela ainda aborda tudo com uma pergunta em vez de uma resposta. É algo que admiro nela, algo que eu provavelmente deveria admirar mais.
Por alguns segundos, nós permanecemos em silêncio, e eu sigo o caminho dos meus pensamentos, que se trombam em minha mente.
— Eles não podem fazer isso — eu digo. — Eles não podem apagar a memória de todos. Eles não deveriam ter o poder de fazer isso — faço uma pausa. — Tudo o que posso pensar é que seria muito mais fácil se estivéssemos lidando com um conjunto completamente diferente de pessoas que pudessem realmente ver a razão. Então, poderíamos ser capazes de encontrar um equilíbrio entre proteger os experimentos e abri-los a outras possibilidades.
— Talvez devêssemos importar um novo grupo de cientistas — sugere Cara, suspirando. — E descartar os velhos.
O rosto de Tris se contorce e ela toca a testa, como se esfregando algumas breves dores inconvenientes para longe.
— Não. Nós não precisamos mesmo fazer isso.
Ela olha para mim, os olhos brilhantes ainda me prendendo.
— Soro da memória — diz ela. — Alan e Matthew criaram uma maneira de fazer os soros se comportarem como vírus, para que eles pudessem se espalhar através de uma população inteira sem injetar todos. É assim que eles estão planejando reinicializar as experiências. Mas poderíamos reinicializá-los — ela fala mais rápido enquanto a ideia toma forma em sua mente, e seu entusiasmo é contagiante, borbulha dentro de mim como se a ideia fosse minha e não dela. Mas para mim não parece que ela está sugerindo uma solução para o nosso problema. Parece que está sugerindo causar mais um problema. — Reinicializar o Centro, e reprogramá-los sem a propaganda, sem o desdém para com GDs. Assim nunca arriscariam as memórias das pessoas nos experimentos novamente. O perigo irá embora para sempre.
Cara levanta as sobrancelhas.
— Apagar suas memórias também não iria apagar todos os seus conhecimentos? Tornando-os inúteis assim?
— Eu não sei. Acho que há uma maneira de direcionar memórias, dependendo de onde o conhecimento é armazenado no cérebro – caso contrário, os primeiros membros das facções não saberiam como falar, amarrar seus sapatos ou qualquer outra coisa — Tris se levanta. — Devemos perguntar a Matthew. Ele sabe melhor como funciona do que eu.
Levanto-me, também, para me colocar em seu caminho. Os raios de sol refletidos nas asas do avião me cegam, então não posso ver seu rosto.
— Tris, espere. Você realmente quer apagar as lembranças de toda uma população contra a sua vontade? É a mesma coisa que eles estão planejando fazer para os nossos amigos e familiares.
Protejo os olhos do sol para ver em seu rosto a fria expressão que vi em minha mente antes mesmo de eu enxergá-la. Para mim ela parece maior do que jamais pareceu – mais severa, dura e desgastada pelo tempo. Me sinto da mesma maneira, também.
— Essas pessoas não têm nenhum respeito pela vida humana — ela diz. — Estão prestes a limpar as memórias de todos os nossos amigos e vizinhos. Eles são responsáveis ​​pela morte da grande maioria da nossa antiga facção — ela se esquiva de mim e marcha até a porta. — Acho que eles têm sorte por eu não matá-los.

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