quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo trinta e sete



Tris


Chego ao escritório de David para a minha primeira reunião do conselho assim que o meu relógio muda para as dez, e ele se empurra para o corredor logo depois. Parece ainda mais pálido do que a última vez que o vi, e os círculos escuros sob seus olhos estão pronunciadas, como hematomas.
— Olá, Tris — diz ele. — Ansiosa, não é? Chegou bem na hora.
Ainda sinto um pouco do peso em meus membros do soro da verdade que Cara, Caleb e Matthew testaram em mim mais cedo, como parte de nosso plano. Eles estão tentando desenvolver um soro da verdade mais poderoso, que mesmo GPs resistentes a soros como eu sou não sejam imunes. Ignoro a sensação de peso e respondo:
— É claro que estou ansiosa. É a minha primeira reunião. Quer ajuda? Você parece cansado.
— Tudo bem, tudo bem.
Vou para trás dele e aperto a estrutura da cadeira de rodas para colocá-lo em movimento. Ele suspira.
— Suponho que eu estou cansado. Fiquei acordado a noite toda lidando com nossa crise mais recente. Vire à esquerda aqui.
— Que crise?
— Oh, você vai descobrir logo, não vamos apressar as coisas.
Nós manobramos pelos corredores escuros do Terminal 5 – que é marcado pelo “nome antigo”, como David falou – que não têm janelas, nenhum indício do mundo exterior. Quase posso sentir a paranoia que emana das paredes, como o próprio terminal tem pavor de olhos estranhos. Se eles soubessem o que os meus olhos estavam procurando.
Enquanto ando, tenho um vislumbre das mãos de David, pressionadas contra os apoios para braços. A pele ao redor das unhas está machucada e vermelha, como se ele tivesse mastigado a ponta dos dedos durante a noite. As próprias unhas estão irregulares. Lembro-me de quando minhas próprias mãos ficavam daquela forma, quando as memórias das simulações do medo penetravam em cada sonho e cada pensamento ocioso. Talvez seja a memória de David do ataque que está fazendo isso com ele.
Eu não me importo, penso. Lembre-se que ele fez. O que ele faria novamente.
— Aqui estamos nós — diz David.
Eu o empurro através de um conjunto de portas duplas, mantidas abertas com pesinhos nas laterais.
A maioria dos membros do conselho parece estar lá, mexendo pequenas pazinhas em pequenas xícaras de café, a maioria deles homens e mulheres com a idade de David. Há alguns membros mais jovens – Zoe está lá, e me dá um tenso, mas educado sorriso quando ando para dentro.
— Tenhamos ordem! — David diz, enquanto se conduz para a cabeceira da mesa de conferência.
Sento-me em uma das cadeiras ao longo da borda da sala, ao lado de Zoe. É claro que não é suposto que eu fique na mesa com todas as pessoas importantes, e estou bem com isso – vai ser mais fácil de cochilar se as coisas ficarem chatas, mas se esta nova crise for grave o suficiente para manter David acordado durante a noite, duvido que eu vá cochilar.
— Noite passada recebi um telefonema desesperado das pessoas de nossa sala de controle — David fala. — Evidentemente, Chicago está prestes a explodir em violência novamente. Os partidários das facções que se autodenominam Convergentes têm se rebelado contra o controle dos sem facção, atacando esconderijos de armas. O que eles não sabem é que Evelyn Johnson descobriu uma nova arma – estoques de soro da morte mantidos escondidos na sede da Erudição. Como sabemos, ninguém é capaz de resistir ao soro da morte, nem mesmo os Divergentes. Se os Convergentes atacarem o governo sem facção e Evelyn Johnson revidar, as baixas serão obviamente catastróficas.
Fico olhando para o chão na frente dos meus pés enquanto a sala explode em conversa.
— Silêncio — diz David. — Os experimentos já estão em perigo de serem fechados se não pudermos provar aos nossos superiores que somos capazes de controlá-los. Outra revolução em Chicago iria apenas fomentar a sua crença de que este esforço tem perdido sua utilidade, algo que não podemos permitir que aconteça se quisermos continuar a lutar contra a deficiência genética.
Em algum lugar atrás da expressão exausta e abatida de David, está algo mais duro, mais forte. Eu acredito nele. Acredito que ele não vai permitir que isso aconteça.
— É hora de usar o vírus do soro da memória para uma reinicialização em massa — diz ele. — E acho que deve ser usado em todos os quatro experimentos.
— Reinicializá-los? — pergunto, porque eu não posso me impedir.
Todos na sala olham para mim de uma só vez. Eles parecem ter esquecido que eu, um ex-membro dos experimentos a que eles estão referindo-se, estou na reunião.
— Reinício é o termo que usamos para apagamento de memória generalizada — diz David. — É o que fazemos quando os experimentos que incorporam modificação comportamental estão em perigo de desmoronar. Nós fizemos isso quando criamos cada primeiro experimento que tinha um componente de modificação comportamental, e a última em Chicago foi feita algumas gerações antes da sua — ele me dá um sorriso estranho. — Por que você acha que havia tanta devastação física no setor dos sem facção? Houve uma revolta, e nós tivemos que reprimi-la de forma tão limpa quanto possível.
Sento-me atordoada em minha cadeira, imaginando as estradas quebradas, janelas estilhaçadas e postes derrubados no setor sem facção da cidade, a destruição tão evidente como em nenhum outro lugar, nem mesmo ao norte da ponte, onde os prédios estão vazios, mas parecem ter sido desocupados pacificamente. Sempre encarei os setores quebrados de Chicago com naturalidade, como prova do que acontece quando as pessoas não tem uma comunidade. Nunca imaginei que fossem resultado de uma revolta e uma posterior reinicialização.
Sinto-me doente de raiva. Eles querem parar a revolução não para salvar vidas, mas para salvar o seu precioso experimento, o que seria suficiente. Mas por que eles acreditam que têm o direito de arrancar as memórias das pessoas, suas identidades, para fora de suas cabeças só porque é conveniente para eles?
Mas, claro, eu sei a resposta para essa pergunta. Para eles, as pessoas em nossa cidade são apenas recipientes GDs de material genético, apenas valiosos pelos genes corrigidos que passam, e não pelos cérebros em suas cabeças ou o coração em seu peito.
— Quando? — Um dos membros do conselho pergunta.
— Dentro das próximas quarenta e oito horas — David responde.
Todos concordam com a cabeça como se fosse sensato.
Eu lembro do que ele me disse em seu escritório. Se vamos ganhar esta luta contra a deficiência genética, temos de fazer sacrifícios. Você entende isso, não é? Eu deveria saber, então, que ele ficaria feliz em trocar milhares de memórias GDs – vidas – pelo controle dos experimentos. Que ele iria trocar sem sequer pensar em alternativas – sem sentir como se precisasse se incomodar a salvá-los.
Eles estão danificados, depois de tudo.

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