quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo trinta e seis

Tris


Está escuro e nevando quando nos dirigimos à entrada do complexo. Os flocos caem na estrada, leves como açúcar em pó. É apenas uma neve de início do outono, que terá ido pela manhã. Tiro meu colete à prova de balas assim que saio e o ofereço a Amar junto com minha arma. Estou desconfortável por segurá-la agora. Costumava pensar que o meu desconforto iria embora com o tempo, mas agora eu não tenha tanta certeza. Talvez nunca vá embora, e talvez esteja tudo bem em ser assim.
O ar quente me rodeia enquanto passo através das portas. O complexo parece mais limpo do que nunca, agora que vi a fronteira. A comparação é inquietante. Como posso andar por este piso e usar essas roupas cerimoniosamente quando sei que aquelas pessoas estão lá fora, abraçadas em suas casas de lona para se aquecer?
Mas na hora em que chego ao hotel-dormitório, o sentimento inquieto desapareceu. Examino o espaço em busca de Christina, ou Tobias, mas nenhum deles está lá. Só Peter e Caleb, Peter com um grande livro em seu colo, fazendo anotações em um bloco de notas, e Caleb lendo o diário da nossa mãe na tela, os olhos vidrados. Tento ignorar isso.
— Algum de vocês viu... — Mas quem é que quero falar, Christina ou Tobias?
— Quatro? — completa Caleb, decidindo por mim. — Eu o vi na sala de genealogia mais cedo.
— A... que sala?
— A que tem os nomes dos nossos antepassados ​​em exposição em uma sala. Posso pegar um pedaço de papel? — Ele pergunta a Peter.
Peter rasga uma folha na parte de trás de seu bloco de notas e a entrega para Caleb, que rabisca algo como direções. Caleb diz:
— Eu encontrei os nomes de nossos pais lá mais cedo. No lado direito da sala, segundo painel depois da porta.
Ele me dá as direções sem olhar para mim. Olho sua caligrafia limpa e organizada. Se eu não o tivesse socado, Caleb teria insistido em me levar até lá, desesperado por tempo para se explicar para mim. Mas, recentemente, ele manteve a distância, ou porque tem medo de mim ou porque finalmente se rendeu.
Nenhuma das opções me faz sentir bem.
— Obrigada. Hum... Como está seu nariz?
— Está tudo bem — ele responde — acho que a contusão realmente ressalta meus olhos, não é?
Ele sorri um pouco, e eu também. Mas é claro que nenhum de nós sabe o que fazer a partir daqui, porque nós dois ficamos sem palavras.
— Espere, você saiu hoje, certo? — ele pergunta depois de um segundo. — Alguma coisa está acontecendo na cidade. Os Convergentes se levantaram contra Evelyn, atacaram um de seus depósitos de armas.
Eu fico olhando para ele. Não perguntei sobre o que estava acontecendo na cidade por alguns dias, estive envolvida demais no que está acontecendo aqui.
— Os Convergentes? As pessoas atualmente lideradas por Johanna Reyes... atacaram um depósito?
Antes de sairmos, eu tinha certeza de que a cidade estava prestes a explodir em outro conflito. Acho que agora aconteceu. Mas me sinto separada dele, quase todos que me importa estão aqui.
— Liderados por Johanna Reyes e Marcus Eaton — corrige Caleb. — Mas Johanna estava lá, segurando uma arma. Foi ridículo. As pessoas do Centro pareciam realmente incomodados por isso.
— Uau — balanço a cabeça. — Acho que era apenas uma questão de tempo.
Nós caímos em silêncio novamente, e em seguida, caminhamos para longe um do outro. Ao mesmo tempo, Caleb retornar ao seu catre e eu ando pelo corredor, seguindo as instruções de Caleb.
Vejo a sala de genealogia à distância. As paredes de bronze parecem brilhar com luz quente. De pé na porta, sinto que estou dentro de um pôr do sol, o brilho ao meu redor. O dedo de Tobias está passando ao longo das linhas da árvore de sua família – assumo – mas ociosamente, como se não estivesse realmente prestando atenção a ela.
Sinto que posso ver essa corrente obsessiva a que Amar estava se referindo. Eu sei que Tobias tem estado observando seus pais nas telas, e agora ele está olhando para os seus nomes, embora não haja nada nesta sala que ele já não soubesse. Eu estava certo ao dizer que ele estava desesperado, desesperado por uma conexão com Evelyn, desesperado para não ser deficiente, mas nunca pensei sobre como as coisas estavam conectadas. Eu não sei como seria a sensação, odiar sua própria história e ao mesmo tempo rogar pelo amor das pessoas que te deram essa história. Como eu nunca vi a cisma dentro de seu coração? Como nunca percebi antes que, para todas as partes fortes e amáveis dentro dele, também há partes feridas e quebradas?
Caleb me falou que a nossa mãe disse que não havia mal em todos, e o primeiro passo para amar alguém é reconhecer o mal em nós mesmos, para que possamos perdoá-los. Então, como posso usar o desespero de Tobias para amá-lo, como se eu fosse melhor do que ele, se nunca deixei que o desespero me cegasse?
— Hey — eu digo, enfiando as direções de Caleb no meu bolso de trás.
Ele se vira e sua expressão é severa, familiar. Parece a maneira como ele era nas primeiras semanas em que o conheci, como uma sentinela guardando seus pensamentos mais íntimos.
— Ouça — digo — se supunha que era para eu descobrir se eu poderia perdoá-lo ou não, mas agora estou pensando que você não fez nada para mim que eu precise perdoar, exceto, talvez, me acusar de ter ciúmes de Nita...
Ele abre a boca para responder, mas eu ergo a mão para detê-lo.
— Se ficarmos juntos, eu vou ter que te perdoar uma e outra vez, e se você ainda estiver nessa, terá que me perdoar uma e outra vez também — continuo. — Então, o perdão não é o ponto. O que eu realmente deveria estar tentando descobrir é se nós ainda somos bons um para o outro ou não.
Todo o caminho de volta pensei sobre o que Amar disse, que todo relacionamento tem seus problemas. Pensei sobre meus pais, que argumentavam com mais frequência do que qualquer outro par de pais da Abnegação que eu conhecia, e que, no entanto, passaram por todos os dias juntos, até que morreram.
Então pensei em quão forte eu me tornei, como me sinto segura com a pessoa que sou agora, e como ao longo do caminho, ele me disse que eu sou corajosa, respeitada, amada e digna de ser amada.
— E então? — ele pergunta, com a voz, os olhos e as mãos um pouco trêmulos.
— E eu acho que você ainda é a única pessoa suficiente forte para se manter na raia com alguém como eu.
— Eu sou — ele concorda asperamente.
E eu o beijo.
Seus braços caem ao meu redor e me abraçar forte, me levantando para as pontas dos meus dedos. Eu enterro meu rosto em seu ombro e fecho os olhos, apenas respirando o cheiro limpo dele, o cheiro do vento.
Eu costumava pensar que quando as pessoas se apaixonavam, simplesmente aterrissavam onde aterrissavam, não tinham escolha no assunto depois. E talvez isso fosse verdade no começo, mas não é verdade agora.
Eu me apaixonei por ele. Mas não estou com ele por omissão, como se não houvesse mais ninguém disponível para mim. Estou com ele porque eu escolho, a cada dia que acordo, a cada dia que nós lutamos ou mentimos ou decepcionamos um ao outro. Eu o escolho uma e outra vez, e ele me escolhe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário