quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo vinte e cinco



Tobias


Tris e eu encontramos Nita no lobby do hotel depois da meia-noite, entre osvasos de plantas com suas flores desabrochando, um deserto domesticado. Quando Nita vê Tris ao meu lado, seu rosto aperta como se ela tivesse provado algo amargo.
— Você prometeu que não ia contar a ela — ela fala, apontando para mim. — O que aconteceu com a proteção?
— Mudei de ideia — respondo.
Tris ri, asperamente.
— Isso foi o que você disse a ele, que ele estaria me protegendo? Essa é uma manipulação muito hábil. Bem feito.
Levanto as sobrancelhas para ela. Nunca pensei nisso como uma manipulação, e isso me assusta um pouco. Geralmente posso confiar em mim mesmo para ver segundas intenções de uma pessoa, ou inventá-las em minha mente, mas eu estava tão acostumado com o meu desejo de proteger Tris, especialmente depois de quase perdê-la, que nem sequer pensei duas vezes. Ou eu estava tão acostumado a mentir em vez de contar as duras verdades que agradeci a chance de esconder dela.
— Não foi uma manipulação, era a verdade — Nita não parece mais com raiva, só cansada, com a mão deslizando no rosto e, em seguida, alisando o cabelo para trás. Ela não está defensiva, o que significa que pode estar dizendo a verdade. — Você poderia ser presa apenas por saber o que sabe e não denunciar. Pensei que seria melhor evitar isso.
— Bem, tarde demais — eu digo. — Tris está vindo. Isso é um problema?
— Prefiro ter os dois do que nenhum, e tenho certeza de que isto é um ultimato implícito — Nita diz, revirando os olhos. — Vamos.

+ + +

Tris, Nita, e eu andamos de volta através do silêncio pelo complexo de laboratórios onde Nita trabalha. Nenhum de nós fala, e estou consciente de cada ruído dos meus sapatos, das vozes ao longe, de cada estalo da porta se fechando. Sinto como se estivéssemos fazendo algo proibido, embora tecnicamente não estamos.
Ainda não, de qualquer maneira.
Nita para ao lado da porta para os laboratórios e passa o seu cartão. Nós a seguimos além da sala de terapia onde vi um mapa do meu código genético, mais para dentro do coração do complexo do que já fui. É escuro e sombrio aqui, e aglomerados de poeira dançam no chão quando passamos.
Nita empurra outra porta com o ombro, e entramos em uma sala de armazenamentoCaixas de metal cobrem as paredes, marcadas com números de papel, a tinta desgastada com o tempo. No centro da sala está uma mesa de laboratório com um computador e um microscópio, e um jovem com cabelos loiros penteado para trás.
— Tobias, Tris, este é o meu amigo Reggie — Nita apresenta.  —Ele também é um GD.
— Prazer em conhecê-los — Reggie fala com um sorriso.
Ele aperta a mão de Tris, em seguida, a minha, o seu aperto firme.
— Vamos mostrar a eles os slides primeiro — diz Nita.
Reggie gira a tela do computador e nos chama para mais perto.
— Não vou morder.
Tris e eu trocamos um olhar, então estamos atrás da mesa de Reggie para ver a tela. Imagens começam a surgir intermitentemente sobre ela, uma após a outra. Elas têm tons de cinza e são granuladas e distorcidas – devem ser muito antigas. Me leva apenas alguns segundos para perceber que são fotografias de sofrimento: crianças magras e doentes com olhos arregalados, valas cheias de corpos, montes enormes de papéis em chamas.
As fotografias se movem tão rápido quanto páginas de livros tremulando ao vento, e tenho apenas impressões dos horrores. Então viro meu rosto, incapaz de olhar por mais tempo. Sinto um silêncio profundo crescer dentro de mim.
No início, quando olho para Tris, sua expressão é como a água parada – como se as imagens que acabamos de ver não causassem ondulações. Mas, em seguida, a sua boca treme, e ela aperta os lábios para disfarçar.
— Olhe para estas armas — Reggie traz uma fotografia com um homem de uniforme sustentando um revólver e aponta — esse tipo de arma é incrivelmente antigo. As armas utilizadas na Guerra da Pureza eram muito mais avançadas. Mesmo o Centro concordaria com isso. Tem que ser de um conflito muito velho. Que deve ter sido travado por pessoas geneticamente puras, uma vez que a manipulação genética não existia naquela época.
— Como é que se esconde uma guerra? — pergunto.
— As pessoas estão isoladas, morrendo de fome — Nita diz calmamente. — Elas sabem apenas o que lhe é ensinado, veem apenas a informação que é disponibilizada para elas. E quem controla tudo isso? O governo.
— Tudo bem — Tris balança a cabeça, e ela está falando muito rápido, nervosamente. — Então eles estão mentindo sobre a sua – nossa história. Isso não significa que eles são o inimigo, significa simplesmente que eles são um grupo de pessoas grosseiramente mal informadas tentando... melhorar o mundo. De uma maneira imprudente.
Nita e Reggie olham um para o outro.
— Esse é o ponto — Nita fala. — Eles estão machucando as pessoas.
Ela coloca a mão sobre o balcão e se inclina contra ele, inclina-se para nós, e mais uma vez vejo a força revolucionária dentro dela, assumindo a parte dela que é a jovem GD que trabalha no laboratório.
— Quando a Abnegação quis revelar a grande verdade de seu mundo, mais cedo do que deveria — ela fala lentamente — e Jeanine quis sufocá-los... o Centro ficou muito feliz em fornecê-la com um soro de simulação incrivelmente avançado – a simulação de ataque que escravizou as mentes da Audácia, que resultou na destruição de Abnegação.
Tomo um momento para deixar a informação afundar.
— Isso não pode ser verdade — eu falo. — Jeanine me disse que a maior proporção de Divergentes – os geneticamente puros – estava na Abnegação. Você acabou de dizer que o Centro valoriza os geneticamente puros o suficiente para mandar alguém para salvá-los; por que eles ajudariam Jeanine a matá-los?
— Jeanine estava errada — Tris fala, distante — Evelyn disse isso. A maior proporção de Divergentes está entre os sem facção, não na Abnegação.
Dirijo-me a Nita.
— Eu ainda não vejo por que eles correriam o risco de perder muitos Divergentes. Eu preciso de provas.
— Por que acha que viemos aqui? — Nita se vira para outro conjunto de luzes que iluminam as gavetas e passa ao longo da parede esquerda. — Levei muito tempo para obter autorização para entrar aqui. Ainda mais tempo para adquirir o conhecimento necessário para entender o que vi. Tive a ajuda de um dos GPs, na verdade. Um simpatizante.
Sua mão paira sobre uma das gavetas de baixo. Ela puxa um frasco de líquido laranja.
— Parece familiar? — ela me pergunta.
Tento me lembrar da injeção que me deram antes de a simulação de ataque começar, logo antes da etapa final da iniciação de Tris. Max fez isso, inseriu a agulha na lateral do meu pescoço como eu tinha feito dezenas de vezes. Quando ele o fez, o frasco de vidro refletia a luz, e era laranja, assim como aquele que Nita está segurando.
— As cores combinam — eu digo. — E então?
Nita transporta o frasco para o microscópio. Reggie pega uma lâmina de uma bandeja de perto do computador e, utilizando um conta-gotas, coloca duas gotas do líquido cor de laranja no seu centro, em seguida, veda o líquido no lugar com uma segunda lâmina. Quando ele a coloca no microscópio, os dedos são cuidadosos e firmes, são os movimentos de alguém que realizou a mesma ação centenas de vezes.
Reggie toca a tela do computador algumas vezes, abrindo um programa chamado “MicroScan”.
— Esta informação é gratuita e está disponível para qualquer pessoa que saiba como usar o equipamento e tenha a senha do sistema, que o simpatizante GP graciosamente me deu — diz Nita. — Portanto, em outras palavras, nem tudo é de difícil acesso, mas ninguém pensaria em examiná-lo bem de perto. E GDs não têm senhas do sistema, portanto, não é como se soubessem sobre isso. Este armazém é para experiências antigas – falhas, desenvolvimentos desatualizados, ou coisas inúteis.
Ela olha através do microscópio, usando um botão na lateral para focar a lente.
— Vá em frente — diz ela.
Reggie pressiona um botão no computador, e parágrafos de texto aparecem sob a inscrição “MicroScan”, na parte superior da tela. Ele aponta para um parágrafo no meio da página, e eu leio.
— “Soro de simulação v4.2. Coordenada um grande número de alvos. Transmite sinais a longas distâncias. Alucinógeno da fórmula original não incluída – realidade simulada é predeterminada pelo programa mestre”.
É isso.
Esse é o soro de simulação de ataque.
— Agora, por que o Centro tem isto a menos que o tenham desenvolvido? — Nita fala. — Eles foram aqueles que colocam os soros nos experimentos, mas geralmente deixam só os soros originais, deixam os residentes da cidade desenvolvê-lo. Se Jeanine foi quem desenvolveu, eles não teriam roubado dela. Se está aqui, é porque eles fizeram.
Fico olhando para a lâmina no microscópio iluminado, a gota laranja próxima à lente, e solto a respiração entrecortada.
Tris pergunta, ofegante:
— Por quê?
— A Abnegação estava prestes a revelar a verdade a todos dentro da cidade. E você viu o que aconteceu agora que a cidade sabe a verdade: Evelyn é efetivamente uma ditadora, os sem facção estão esmagando os membros das facções, e tenho certeza de que as facções se levantarão contra eles, mais cedo ou mais tarde. Muitas pessoas vão morrer. Dizer a verdade põe a segurança do experimento em risco, não há dúvida. Então há alguns meses atrás, quando a Abnegação estava prestes a causar destruição e instabilidade ao revelar o vídeo de Edith Prior para sua cidade, o Centro provavelmente pensou, melhor que a Abnegação sofra uma grande perda – mesmo à custa de vários Divergentes – do que toda a cidade sofrer uma grande perda. Melhor acabar com a vida da Abnegação do que arriscar o experimento. Então eles estenderam a mão para alguém que sabiam que iria concordar com eles. Jeanine Matthews.
Suas palavras me cercam e enterram-se dentro de mim.
Coloco as mãos na mesa do laboratório, deixando as palmas esfriarem, e olhar para o meu reflexo distorcido no metal escovado. Posso ter odiado meu pai por parte da minha vida, mas nunca odiei sua facção.
A tranquilidade da Abnegação, a sua rotina, sempre pareceram boas para mim. E agora a maior parte dessas pessoas amáveis e altruístas morreu. Assassinadas pelas mãos da Audácia a pedido de Jeanine, com o poder do Centro a apoiá-la.
A mãe e o pai de Tris estavam entre eles.
Tris está tão quieta, as mãos pendendo molemente, ficando vermelha com o resplendor de seu sangue.
— Este é o problema com o compromisso cego para esses experimentos — Nita fala ao nosso lado, como se estivesse deslizando as palavras para os espaços vazios de nossas mentes. — O Centro valoriza os experimentos acima da vida dos GDs. É óbvio. E agora, as coisas poderiam ficar ainda pior.
— Pior? — ecoo. — Pior do que matar a maior parte da Abnegação? Como?
— O governo vem ameaçando encerrar os experimentos há quase um ano — Nita responde. — Os experimentos continuam caindo aos pedaços porque as comunidades não podem viver em paz, e David encontra maneiras de restaurar a paz apenas em cima da hora. E se alguma coisa der errado em Chicago, ele pode fazê-lo novamente. Pode reinicializar todos os experimentos a qualquer momento.
— Reinicializar — repito.
— Com o soro da memória da Abnegação — Reggie intervém. — Bem, na verdade, é o soro da memória do Centro. Todo homem, mulher e criança vai ter que começar de novo.
Nita diz laconicamente:
— Suas vidas inteiras apagadas contra a sua vontade, para o bem de resolver um “problema” de dano genético que na verdade não existe. Essas pessoas têm o poder de fazer isso. E ninguém deve ter esse poder.
Lembro-me do pensamento que tive depois que Johanna me contou que a Amizade administrava o soro da memória para as patrulhas da Audácia – que quando você toma memórias de uma pessoa, você muda quem ela é.
De repente, eu não me importo com qual é o plano de Nita, contanto que isso signifique acertar o Centro tão duro quanto pudermos. O que aprendi nos últimos dias fez-me sentir que não há nada sobre este lugar que valha a pena salvar.
— Qual é o plano? — Tris pergunta, sua voz sem emoção, quase mecânica.
— Eu vou deixar meus amigos da fronteira no meio do túnel subterrâneo — Nita explica — Tobias, você vai desligar o sistema de segurança, assim como eu, de modo que não seremos capturados – é quase a mesma tecnologia com que você trabalhou na sala de controle da Audácia, deve ser fácil para você. Em seguida, Rafi, Mary e eu vamos entrar no Laboratório de Armas e roubar o soro da memória de modo que o Centro não possa usá-lo. Reggie tem ajudado nos bastidores, mas ele vai ser a pessoa que abrirá o túnel para nós no dia do ataque.
— O que você vai fazer com um monte de soro da memória? — pergunto.
— Destruí-lo — Nita responde, calma.
Eu me sinto estranho, vazio como um balão furado. Não sei o que eu tinha em mente quando Nita falou sobre seu plano, mas não foi isso – isso parece tão pequeno, tão pouco como um ato de retaliação contra as pessoas responsáveis ​​pela simulação de ataque, as pessoas que me disseram que havia algo de errado comigo em meu âmago, no meu código genético.
— Isso é tudo o que você pretende fazer? — Tris pergunta, finalmente, desviando o olhar do microscópio. Ela foca o seu olhar em Nita. — Você sabe que o Centro é responsável pelo assassinato de centenas de pessoas, e seu plano é... lhes tirar o soro da memória?
— Eu não me lembro de convidá-la a criticar meu plano.
— Eu não estou criticando o seu plano — Tris responde — estou dizendo que não acredito em você. Você odeia estas pessoas. Posso dizer pelo jeito como fala delas. Acho que o que você pretende fazer é muito pior do que roubar algum soro.
— O soro da memória é o que eles usam para manter os experimentos em execução. É a sua maior fonte de poder sobre a sua cidade, e quero levá-lo embora. Eu diria que é um golpe duro o suficiente para agora — Nita soa calma, como se estivesse explicando algo a uma criança. — Eu não disse que essa é a única coisa que farei. Não é sempre sábio atacar o mais forte possível na primeira oportunidade. Esta é uma corrida longa, e não uma de velocidade.
Tris apenas sacode a cabeça.
— Tobias, você está dentro? — Nita pergunta.
Eu olho de Tris, como ela está tensa, postura rígida, para Nita, que está relaxada, pronta. Não vejo o que quer que Tris vê ou ouve. E quando penso em dizer não, sinto como se meu corpo fosse entrar em colapso sobre si mesmo. Tenho que fazer alguma coisa. Mesmo que seja pequeno, tenho que fazer alguma coisa, e não entendo por que Tris não sente o mesmo desespero dentro dela.
— Sim — respondo.
Tris se vira para mim, os olhos arregalados, incrédula. Eu ignoro-a.
— Eu posso desativar o sistema de segurança. Vou precisar do soro da paz da Amizade, você tem acesso a isso?
— Posso conseguir — Nita sorri um pouco. — Vou enviar-lhe uma mensagem com a hora. Vamos, Reggie. Vamos deixar estes dois... conversarem.
Reggie acena para mim e depois para Tris, então ele e Nita saem da sala, fechando a porta devagar atrás deles para que ela não faça barulho.
Tris se vira para mim, os braços dobrados como duas barras por seu corpo, mantendo-me para fora.
— Eu não posso acreditar em você — disse ela. — Ela está mentindo. Porque você não vê isso?
— Porque não está ali. Eu posso dizer quando alguém está mentindo tão bem quanto você. E nesta situação, acho que seu julgamento pode estar obscurecido por outra coisa. Algo parecido com ciúme.
— Eu não estou com ciúmes! — ela responde, franzindo o cenho para mim. — Estou sendo inteligente. Ela tem algo maior planejado, e se eu fosse você, iria me afastar correndo de alguém que mente para mim sobre o que eles querem que eu participe.
— Bem, você não está comigo — balanço a cabeça. — Deus, Tris. Essas pessoas assassinaram seus pais e você não vai fazer nada sobre isso?
— Eu nunca disse que não ia fazer nada — ela replica secamente. — Mas não tenho que aceitar o primeiro plano que escuto, também.
— Sabe, eu te trouxe aqui porque queria ser honesto com você, não para fazer julgamentos precipitados sobre as pessoas e dizer-me o que fazer!
— Lembra-se o que aconteceu da última vez em que não confiou em meus “julgamentos precipitados”? — Tris diz friamente. — Você descobriu que eu estava certa. Eu estava certa sobre o vídeo de Edith Prior mudando tudo, e estava certa sobre Evelyn, e estou certa sobre isso.
— Yeah. Você está sempre certa — eu digo. — Você estava certa sobre correr para situações perigosas sem armas? Estava certa em mentir para mim e ir a uma marcha da morte até a sede da Erudição no meio da noite? Ou sobre Peter, você estava certa sobre ele?
— Não jogue as coisas na minha cara — ela aponta para mim, e sinto como se eu fosse uma criança recebendo sermão dos pais. — Eu nunca disse que era perfeita, mas você – você não pode sequer ver além do seu próprio desespero. Aliou-se a Evelyn porque estava desesperado por uma mãe, e agora vai junto com isto porque está desesperado para não ser deficiente...
A palavra treme através de mim.
— Eu não estou deficiente — digo em voz baixa. — Não posso acreditar que você tem tão pouca fé em mim que diz-me para não confiar em mim mesmo — balanço a cabeça. — E eu não preciso de sua permissão.
Começo a andar em direção à porta e, enquanto a minha mão se fecha em punho, ela diz:
— Apenas indo embora de modo que você possa ter a última palavra, isso é realmente maduro!
— Também é, desconfiar dos motivos de alguém só porque ela é bonita. Acho que nós estamos quites.
Eu saio da sala.
Não sou uma criança desesperada, instável, que deposita a sua confiança ao redor. Não estou deficiente.

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