sábado, 29 de março de 2014

Capítulo 16

Amy odiava multidões, mas não se incomodava com a ideia de estar entre 7 milhões de mortos.
Nellie, Dan e ela desceram depressa por uma escadaria de metal e foram dar num corredor de calcário, com canos de metal correndo pelo teto e iluminação elétrica fraca. O ar morno cheirava a mofo e pedra molhada.
— Só tem uma saída, amigos — Nellie disse, nervosa. — Se formos pegos aqui embaixo...
— O túnel deve ramificar em breve — presumiu Amy, tentando parecer mais confiante do que na verdade se sentia.
Havia pichações riscadas nas paredes de pedra. Algumas pareciam recentes, outras antigas. Havia uma inscrição gravada numa placa de mármore bem acima da cabeça deles.
— Parem, mortais — Nellie traduziu. — Este é o império da morte.
— Que simpático — murmurou Dan.
Eles continuaram andando. O chão sob os pés de Amy era de cascalho fofo. Ela ainda estava pensando no tio Alistair. Será que ele realmente sabia alguma coisa sobre seus pais ou estava apenas tentando manipulá-los? Ela tentou tirar aquilo da cabeça.
— Cadê os ossos? — Dan perguntou. Então eles dobraram o corredor e entraram num salão. Dan disse: — Oh.
Era o lugar mais sinistro que Amy já tinha visto. Encostados nas paredes, havia ossos humanos empilhados feito lenha, do chão até um ponto mais alto que a cabeça de Amy. Os restos mortais eram amarelos e marrons – a maior parte eram ossos de pernas, mas havia também alguns crânios espalhados como remendos numa colcha, olhando para eles. Uma fileira de crânios decorava o topo de cada pilha.
Amy percorreu o lugar em silêncio, assombrada. A próxima sala era igual à primeira, paredes e mais paredes de despojos humanos embolorados. As lâmpadas elétricas fracas lançavam sombras soturnas nos mortos, fazendo as órbitas vazias de seus olhos parecerem ainda mais assustadoras.
— Que nojo — Nellie conseguiu dizer. — Tem, tipo, milhares.
— Milhões — corrigiu Amy. — Esta é só uma pequena parte.
— Eles desenterraram todas estas pessoas? — Dan perguntou. — Quem ia querer fazer esse serviço?
Amy não sabia, mas ficou boquiaberta ao ver como os operários tinham feito desenhos com caveiras nas pilhas de fêmures – diagonais, listras, formas tipo “ligue os pontos”. De algum jeito bizarro e horrível, era quase bonito.
Na terceira sala eles encontraram um altar de pedra com velas apagadas.
— Precisamos achar a parte mais antiga — Amy disse. — Estes ossos são muito recentes. Vejam a placa. É de 1804.
Ela foi guiando o caminho. As órbitas sem olhos dos mortos pareciam encará-los enquanto eles passavam.
— Isso é legal — disse Dan. — Talvez eu possa...
— Não, Dan — Amy cortou. — Você não pode colecionar ossos humanos.
— Ahhh.
Nellie murmurou alguma coisa que parecia uma reza em espanhol.
— Por qual motivo Benjamin Franklin ia querer vir aqui embaixo?
— Ele era cientista — Amy continuou a andar enquanto lia as datas nas placas de latão. — Gostava de projetos de obras públicas. Isto teria sido fascinante para ele.
— Milhões de pessoas mortas — disse Nellie. — Realmente fascinante.
Eles viraram num corredor estreito e depararam com um portão de metal. Amy sacudiu as barras. O portão abriu com um rangido, como se não tivesse sido usado durante séculos.
— Tem certeza de que devemos entrar aí? — Nellie perguntou.
Amy acenou que sim com a cabeça. As datas estavam ficando mais antigas. Por outro lado, não havia tubos de metal no teto, o que significava ausência de luz elétrica.
— Alguém tem uma lanterna? — ela perguntou.
— Eu tenho — disse Nellie. — No meu chaveiro.
Ela tirou as chaves do bolso e as entregou para Amy. Havia uma lampadinha minúscula no chaveiro. Não era muito, mas era melhor que nada. Eles prosseguiram. Depois de uns 30 metros, deram numa sala pequena com uma única outra saída.
Amy iluminou com a lanterna uma velha placa emoldurada por caveiras.
— Aqui, 1785! Estes têm que ser os primeiros ossos que foram postos aqui embaixo.
A parede diante deles estava em mau estado. Os ossos eram marrons e quebradiços, e alguns tinham se espalhado sobre o chão. As caveiras do topo tinham sido esmagadas, porém as incrustadas nas paredes pareciam quase intactas. Elas estavam arrumadas na forma de um quadrado, nada de extraordinário.
— Procurem em volta — disse Amy. — Tem que estar aqui.
Dan enfiou as mãos em alguns dos vãos na parede de ossos. Nellie conferiu o topo da pilha. Amy iluminou as órbitas das caveiras com a lanterna, porém não viu nada.
— Não adianta — ela disse por fim. — Se tinha alguma coisa aqui, outra equipe deve ter achado.
Dan coçou a própria cabeça e em seguida coçou uma caveira.
— Por que elas estão numeradas?
Amy não estava nem um pouco no clima para as brincadeiras do irmão.
— Como assim, numeradas?
— Aqui na testa. — Dan pôs o dedo numa das caveiras. — Este cara era o número 3. Será que eles eram de um time de futebol ou algo assim?
Amy se aproximou. Dan tinha razão. O número era muito fraco, porém riscado na testa da caveira, como se alguém tivesse gravado com uma faca, estava o número romano III.
Ela examinou a caveira que estava embaixo. XIX. Um quadrado. Caveiras com números.
— Olhem todas. Rápido!
Não demorou muito. Havia dezesseis caveiras incrustadas na pilha de ossos, dispostas em quatro linhas e quatro colunas. Três das caveiras não tinham número. O resto tinha. Elas ficaram assim:


Amy sentiu um calafrio na espinha.
— Coordenadas em um quadrado. Um quadrado mágico!
— O quê? — perguntou Dan. — Que mágico?
— Dan, você consegue decorar estes números e a posição deles?
— Já decorei.
— Precisamos sair daqui e achar um mapa. Esta é a pista... quer dizer, a pista que leva àverdadeira pista, seja lá o que Franklin estava escondendo.
— Peraí — disse Nellie. — Franklin riscou números em caveiras. Por quê?
— É um quadrado mágico. Franklin costumava brincar com números quando ficava entediado. Quando estava sentado na Assembleia da Filadélfia e não queria ouvir os discursos chatos, montava quadrados mágicos, problemas numéricos para ele mesmo resolver. Ele preenchia os números que faltavam. Todas as linhas, horizontais e verticais, tinham que dar a mesma soma.
Nellie fez uma careta.
— Você está dizendo que Benjamin Franklin inventou o sudoku?
— Bem, sim, de certo modo. E estas...
— São as coordenadas — completou Dan. — Os números que faltam mostram a localização exata da próxima pista.
Aplausos ecoaram pela sala.
— Bravo.
Amy virou de costas. Parados na entrada estavam Ian e Natalie Kabra.
— Eu falei que eles eram capazes — Ian disse à irmã.
— Oh, acho que sim — Natalie admitiu.
Amy odiava o fato de que mesmo embaixo da terra, numa sala cheia de ossos, Natalie conseguia ficar deslumbrante. Ela usava um vestido aveludado preto, parecendo alguém de 11 anos beirando os 23. Seus cabelos pendiam soltos sobre os ombros. A única parte do modelito dela que não combinava era a minúscula pistola de dardos prateada que tinha na mão.
— Talvez não tenha sido tão ruim Irina ter falhado conosco.
— Vocês — Dan gritou. — Vocês convenceram Irina a armar para nós na ilha de Saint-Louis. Vocês quase nos enterraram em cimento!
— Pena que não deu certo — disse Natalie. — Vocês teriam dado um belo capacho de boas-vindas para o mausoléu.
— Mas... mas por quê? — Amy gaguejou.
Ian sorriu.
— Para tirar vocês de circulação, é claro. E nos dar mais tempo para encontrar este lugar. Precisávamos garantir que não era algum truque esperto da nossa querida prima Irina para nos despistar. Eu devia ter notado o quadrado mágico antes. Obrigado pela ajuda, Amy. Agora, se você sair da frente, vamos copiar estes números e dar o fora.
Amy respirou fundo, trêmula.
— Não.
Ian riu.
— Que fofa! Agindo como se tivesse opção.
— É. — Natalie franziu o nariz. — Fofa.
Amy ficou vermelha. Os Kabra sempre a faziam se sentir envergonhada e idiota, mas ela não podia deixar eles ficarem com a pista. Então apanhou um osso de perna.
— Um gesto e eu... eu esmago as caveiras. Vocês nunca vão pegar os números.
Não parecia uma ameaça muito convincente, nem mesmo para ela, mas Ian ficou pálido.
— Ora, não seja idiota, Amy. Eu sei que você fica nervosa, mas não vamos machucá-la.
— Não mesmo — Natalie concordou. Ela apontou a pistola de dardos para o rosto de Amy. — Acho que o veneno número 6 vai ser apropriado. Nada fatal. Só um sono muito profundo. Tenho certeza de que alguém vai achar vocês aqui embaixo... algum dia.
Uma sombra apareceu atrás dos Kabra. De repente, o tio Alistair entrou correndo na sala e derrubou Natalie no chão. A pistola de dardos voou para longe e Ian mergulhou para pegá-la.
— Corram! — Alistair gritou.
Amy não discutiu. Ela, Nellie e Dan passaram correndo pela outra saída, escuridão adentro, embrenhando-se cada vez mais fundo nas Catacumbas.

***

Eles correram por um tempo que pareceu horas, sem nada além da luzinha do chaveiro para guiá-los.
Viraram num corredor e viram que estava bloqueado por um monte de entulho. Então voltaram por onde tinham vindo e seguiram outro túnel até ele ficar totalmente submerso numa água amarela e turva. Em pouco tempo, Amy não sabia mais em que direção eles estavam indo.
— Alistair disse que tem policiais aqui embaixo — ela disse em voz baixa. — Queria que um deles nos encontrasse.
Mas eles não viram ninguém. A luz da lanterninha começou a ficar mais fraca.
— Não — disse Amy. — Não, não, não!
Eles foram avançando. Quinze metros, vinte, e a luz se apagou de vez.
Amy achou a mão de Dan e a apertou com força.
— Vai ficar tudo bem, crianças — Nellie disse, mas sua voz tremia. — Não podemos ficar perdidos aqui pra sempre.
Amy não via por que não. As Catacumbas se estendiam por quilômetros e nunca tinham sido totalmente mapeadas. Não havia motivo para alguém vir procurar por eles.
— Podemos gritar pedindo socorro — Dan sugeriu.
— Não vai adiantar — concluiu Amy, desanimada. — Sinto muito. Eu não queria que tudo acabasse assim.
— Não acabou! Nós podemos seguir uma parede até acharmos outra saída. Podemos...
— Xiu — fez Amy.
— Só estou dizendo que...
— Dan, é sério! Fica quieto! Acho que ouvi algum barulho.
O túnel estava em silêncio, exceto por gotas d‘água que pingavam ao longe. Então Amy ouviu de novo: um ronco fraco, vindo de algum lugar mais à frente.
— É um trem? — Nellie perguntou.
Amy recuperou o ânimo.
— Devemos estar perto de uma estação de metrô. Vamos!
Ela foi avançando com os braços estendidos. Ficou arrepiada ao tocar numa parede de ossos, porém seguiu o corredor, que fazia uma curva à direita. Aos poucos, o barulho foi ficando mais forte. Amy tateou à esquerda. A mão dela encostou em algo de metal.
— Uma porta! — ela gritou. — Dan, tem algum tipo de tranca aqui. Venha aqui e descubra como é que isso funciona.
— Onde?
Ela o encontrou no escuro e guiou as mãos dele para a tranca. Em segundos, a escotilha se abriu e uma forte luz elétrica os cegou.
Amy levou um tempo para entender o que estava vendo. A escotilha parecia mais uma janela que uma porta – uma abertura quadrada a cerca de um metro e meio do chão, grande o suficiente apenas para passar rastejando se eles subissem até ela. Na altura dos olhos, a ferrovia – trilhos de metal sobre dormentes de madeira. E alguma coisa marrom e peluda estava passeando pelo leito de cascalho.
Amy deu um pulo.
— Um rato!
O roedor olhou para ela, obviamente sem se impressionar, então seguiu apressado seu caminho.
— É o vão do metrô — compreendeu Dan. — Podemos escalar e...
A luz ficou mais forte. O túnel inteiro tremeu. Amy caiu para trás e tapou os ouvidos para se proteger do barulho, que soava como uma manada de dinossauros. Um trem passou depressa como um borrão confuso de rodas de metal. Ele sugou o ar para fora do túnel, puxando as roupas e o cabelo de Amy na direção da escotilha. Então, tão rápido quanto tinha surgido, o trem desapareceu.
Quando ela teve certeza de que sua voz funcionaria de novo, disse:
— Não podemos sair por aí! Vamos morrer!
— Olhe — disse Dan. — Tem uma escada de serviço ali, a um metro e meio de distância. Vamos rastejar até o trilho, correr até a escada e subir até a plataforma. É fácil!
— Não é fácil! E se vier outro trem?
— Podemos cronometrar — sugeriu Nellie. — Tem um relógio no meu iPod...
Ela tirou o aparelho do bolso, mas, assim que o acionou, outro trem passou, fazendo tudo tremer.
A sombra com glitter nos olhos de Nellie fazia o rosto dela parecer fantasmagórico sob a luz fraca.
— Foram menos de cinco minutos. Esse trilho deve ser para trens expressos. Vamos ter que correr.
— Certo! — Dan disse, e na mesma hora subiu até a escotilha e saiu por ela.
— Dan! — gritou Amy.
Ele virou de costas, agachando-se nos trilhos.
— Venham!
Aturdida, Amy deixou que Nellie lhe desse um empurrão. Com a ajuda de Dan, ela rastejou para fora.
— Agora me ajude com Nellie! — Dan disse. — Mas cuidado com o terceiro trilho.
Amy ficou dura. A meio metro de distância estava o trilho elétrico preto que fazia os trens andarem. Ela sabia o bastante sobre metrôs para entender que encostar neles seria pior que mil pilhas de Franklin. Ela ajudou Nellie a sair da escotilha, que era bem apertada para ela. Eles perderam tempo. Os trilhos chiavam e estalavam abaixo deles.
— Estou bem! — disse Nellie, espanando as roupas. — Vamos pra escada.
Dan começou a segui-las, mas não conseguiu ficar de pé, como se estivesse preso em alguma coisa.
— Dan? — chamou Amy.
— É minha mochila — ele disse. — Está presa...
Ele puxou a mochila em vão. De algum modo, uma das tiras tinha se enrolado em volta de um dos trilhos, que tinha mudado de lugar, prendendo a mochila.
— Deixe aí! — Amy gritou.
Nellie já estava na escada, gritando para eles virem logo. Passageiros na plataforma já haviam notado a presença deles e davam berros alarmados, gritando em francês.
Dan tirou a mochila do ombro, porém ela ainda estava presa no trilho. Ele a puxou e tentou abri-la, sem sucesso.
— Agora! — berrou Nellie.
Amy sentiu um leve tremor nos trilhos aos seus pés.
— Dan! — ela implorou. — Isso não importa!
— Eu consigo pegar. Só mais um segundo.
— Dan, não. É só uma mochila!
— Não quer abrir!
Surgiu uma luz do outro lado do túnel. Nellie estava bem acima deles na plataforma, estendendo a mão. Vários passageiros faziam o mesmo, implorando para que eles segurassem.
— Amy! — chamou Nellie. — Você primeiro!
Amy não queria, mas, talvez, se ela fosse primeiro, Dan tomaria juízo. Ela agarrou a mão de Nellie, que a puxou para fora do vão. Imediatamente, Amy se virou e estendeu a mão para o irmão.
— Dan, por favor! Agora!
Os faróis do trem apareceram. Soprou um vento forte no túnel. O chão tremeu.
Dan deu outro puxão na mochila, mas ela não saía do lugar. Ele olhou para o trem e Amy viu que ele estava chorando. Ela não entendeu por quê.
— Dan, segura... MINHA... MÃO!
Ela se esticou o máximo que conseguiu. O trem estava vindo a toda velocidade na direção deles. Com um grito angustiado, Dan agarrou a mão dela, e com o máximo de força que tinha, Amy o puxou para fora do vão, de modo que ele acabou caindo em cima dela.
O trem passou voando. Quando o barulho cessou, todos os passageiros na plataforma começaram a falar ao mesmo tempo – dando broncas em francês, enquanto Nellie tentava explicar e pedir desculpas. Amy não se importava com o que eles estavam dizendo. Ficou segurando o irmão, que não chorava daquele jeito desde que era pequeno.
Ela olhou por cima da beira do vão, mas a mochila tinha sumido, arrastada para dentro do túnel pela força do trem. Eles ficaram um bom tempo sentados enquanto Dan tremia e enxugava os olhos. Aos poucos, os passageiros foram perdendo o interesse. Eles se afastaram ou embarcaram em outros trens e desapareceram. Não veio nenhum policial. Em pouco tempo eram apenas Nellie, Amy e Dan, sentados num canto da plataforma como uma família sem-teto.
— Dan — disse Amy numa voz doce. — O que tinha lá? O que tinha na sua mochila?
Ele fungou e esfregou o nariz.
— Nada.
Era a pior mentira que Amy já tinha ouvido. Geralmente ela adivinhava o que ele estava pensando apenas olhando para a cara dele, mas o irmão estava disfarçando os pensamentos. Ela só percebia que Dan estava desolado.
— Esqueça — ele disse. — Não temos tempo.
— Tem certeza...?
— Eu disse esqueça! Precisamos resolver aquele quadrado mágico antes dos Kabra, não é?
Ela não gostava de admitir, mas ele tinha razão. E alguma coisa lhe dizia que, se eles ficassem ali muito mais tempo, a polícia viria e começaria a fazer perguntas. Amy deu uma última olhada no vão onde Dan tinha quase morrido e na escotilha escura que dava nas Catacumbas. Em suas veias ainda corria o medo, mas eles tinham enfrentado tanta coisa que não poderiam desistir agora.
— Então vamos — Amy decidiu. — Temos uma pista para encontrar.
Lá fora tinha começado a chover.
Quando eles conseguiram achar um café, Dan parecia ter voltado ao normal – ou pelo menos eles chegaram a um acordo tácito de que iam agir como se tudo estivesse normal. Sentaram embaixo do toldo para se secar enquanto Nellie pedia comida. Amy não achou que fosse conseguir comer, mas estava com mais fome do que pensava. Eram cinco da tarde. Eles tinham ficado um bom tempo nas Catacumbas.
Amy ficou arrepiada ao pensar em Ian e Natalie e na pistola de dardos venenosos. Torceu para que estivesse tudo bem com o tio Alistair. Apesar de ainda não confiar nele, não havia como negar que ele os salvara nas Catacumbas. Ela teve visões terríveis do velho homem largado sozinho e inconsciente no labirinto.
Enquanto comiam sanduíches de cogumelo e queijo brie, Dan desenhava caveiras e números romanos num guardanapo.
— 12, 5, 14 — ele disse. — Estes são os números que faltam.
Amy nem precisou conferir. Ele nunca errava problemas de matemática.
— Talvez seja um endereço e um arrondissement — ela disse.
Nellie enxugou seu iPod.
— Mas o endereço teria mudado em 200 anos, não?
Amy sentiu um vazio na barriga. Nellie provavelmente tinha razão. Paris talvez não tivesse o sistema de arrondissements na época em que Franklin morou ali. E os endereços das ruas certamente deviam ter mudado, e nesse caso a pista não servia mais. Será que Grace os teria mandado numa busca que não podia ser concluída?
Por que não?, disse uma voz rancorosa dentro delaGrace não se deu o trabalho de contar a vocês pessoalmente sobre a busca. Se Dan tivesse morrido naquele vão do metrô, teria sido culpa da Grace.
Não, ela decidiu. Isso não era verdade. Grace devia ter tido um motivo. Os números deviam se referir a alguma outra coisa. Amy só conseguia pensar num jeito de descobrir: aquilo que sempre fazia quando tinha um problema sem solução.
— Precisamos achar uma biblioteca.

***

Nellie falou com o garçom em francês, e ele pareceu entender o que eles queriam.
— Pas de problème — ele disse.
Ele desenhou um mapa num guardanapo novo e rabiscou o nome de uma estação de metrô: École Militaire.
— Precisamos correr — disse Nellie. — Ele disse que a biblioteca fecha às seis.
Meia hora depois, ensopados e ainda com o cheiro das Catacumbas, os três chegaram à Biblioteca Americana em Paris.
— Perfeito — disse Amy.
O velho prédio tinha barras pretas de metal protegendo a porta, mas a biblioteca estava aberta. Espiando lá dentro, Amy viu pilhas de livros e vários lugares confortáveis para ler.
— Por que eles deveriam nos ajudar? — perguntou Dan. — Afinal, não somos sócios da biblioteca nem nada.
Amy, no entanto, já estava subindo a escada. Pela primeira vez em dias, sentia-se totalmente confiante. Aquele era o mundo dela. Ela sabia o que fazer.
Os bibliotecários a ajudaram como soldados respondendo a um grito de guerra. Amy disse a eles que estava pesquisando sobre Benjamin Franklin, e em poucos minutos Amy, Dan e Nellie estavam sentados na mesa de uma sala de conferência, examinando reproduções de documentos de Franklin – alguns tão raros, disseram os bibliotecários, que as únicas cópias ficavam em Paris.
— Pois é, aqui tem uma lista de compras muito rara — disse Dan em voz baixa. — Uau.
Ele estava prestes a jogar o papel de lado quando Amy agarrou seu pulso.
— Dan, nunca se sabe o que é importante. Naquela época não havia muitas lojas. Quem queria comprar alguma coisa precisava mandar um pedido ao comerciante e a mercadoria chegava de navio. O que Franklin comprou?
Dan deu um suspiro.
— Solicito que enviem o seguinte: 3 Tratado sobre fabricação de sidra, de Cave; 2Nelson sobre a gestão de crianças, 8º vol., de Dodsley; 1 qtd. Solução de ferro; Cartas de um oficial russo...
— Peraí — disse Amy. — “Solução de ferro”. Onde foi que eu vi isso antes?
— Estava naquela outra lista — disse Dan sem hesitação — em uma das cartas que vimos na Filadélfia.
Amy franziu a testa.
— Mas solução de ferro não é um livro. Esta lista inteira é de livros, tirando isso.
— Mas, afinal, o que é solução de ferro? — Dan perguntou.
— Opa, isso eu sei! — Nellie entrou na conversa. Ela ergueu as mãos e fechou os olhos, como se estivesse lembrando a resposta de uma prova. — É tipo uma solução química, né? É usada em metalurgia e impressão e em várias outras coisas.
Amy olhou admirada para ela.
— Como você sabia disso?
— Eu estudei química no semestre passado. Eu lembro porque o professor estava falando sobre, tipo, como eles fazem equipamento de cozinha profissional. Franklin provavelmente usou solução de ferro na tinta dele quando era impressor.
— Muito interessante — resmungou Dan. — Tirando o fato de que não temimportância nenhuma! Agora podemos voltar às coordenadas do quadrado mágico?
Amy ainda sentia algo lhe cutucando atrás da cabeça, como se estivesse deixando de ver alguma conexão, mas folheou o resto dos papéis. Por fim, desdobrou um enorme documento amarelado que na verdade era um mapa antigo de Paris. Seus olhos se arregalaram.
— É isto. — Amy pôs o dedo com orgulho num ponto do mapa. — Uma igreja: Saint-Pierre de Montmartre. É para lá que temos que ir.
— Como você pode ter certeza? — perguntou Nellie.
— Os números formam um quadriculado, está vendo? — ela apontou para as margens. — Este é um antigo mapa de recenseamento feito por dois cientistas franceses, Comte de Buffon e Thomas-François D’Alibard. Eu lembro de ter lido sobre eles. Foram os primeiros a testar as teorias de Franklin sobre os para-raios. Depois que provaram que os para-raios funcionavam, o rei Luís XVI mandou que desenhassem um plano para equipar todos os principais prédios de Paris. Essa igreja foi a 14ª na instalação, na coordenada 5 por 12. Franklin com certeza sabia sobre a obra. Ele se orgulhava muito do modo como os franceses aceitavam suas ideias. Tem que ser isso. Aposto uma caixa de chocolates franceses que vamos achar uma entrada para as Catacumbas na igreja.
Dan não parecia convencido. Lá fora, a chuva caía sem dó. Trovões sacudiam as janelas da biblioteca.
— E se os Kabra chegarem lá primeiro?
— Precisamos garantir que isso não aconteça — disse Amy. — Vamos!

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