quinta-feira, 5 de junho de 2014

Convergente

Uma escolha te definirá.
E se todo o seu mundo fosse uma mentira?
E se uma única revelação – como uma única escolha – mudasse tudo?
E se o amor e a lealdade fizessem você fazer coisas que nunca imaginaria?

A sociedade baseada em facções que Tris Prior uma vez acreditou foi destruída – fraturada pela violência e corrupção do poder, marcados pela perda e traição. Assim quando lhe é oferecida a chance de explorar o mundo além dos limites que ela conhece, Tris está pronta. Talvez, além da cerca, ela e Tobias encontrem uma nova vida juntos, livres de mentiras, traições e memórias dolorosas.
Mas a nova realidade de Tris é ainda mais alarmante do que a outra que deixou para trás. Antigas descobertas se tornam rapidamente sem sentido. Novas verdades explosivas mudam os corações de quem ela ama. E mais uma vez, Tris deve lutar para compreender a complexidade da natureza humana – e de si própria – enquanto encara escolhas impossíveis sobre coragem, lealdade, sacrifícios e amor.



Epílogo

Dois anos e meio depois

Evelyn está no lugar onde dois mundos se encontram. Marcas de pneus revestem o chão agora, por conta do frequente vai e vem de pessoas da fronteira que entram e saem, ou moradores do antigo complexo do Centro indo e voltando. A bolsa repousa contra a sua perna, em um dos poços na terra. Ela levanta a mão para me cumprimentar quando me aproximo.
Quando ela entra na caminhonete, beija minha bochecha, e eu deixo. Sinto um sorriso em meu rosto, e o deixo ficar lá.
— Bem-vinda de volta — eu digo.
O acordo, quando ofereci-lhe mais de dois anos atrás, e quando ela repassou-o a Johanna, pouco depois, foi que ela iria deixar a cidade.
Agora, tanta coisa mudou em Chicago que não vejo mal em sua volta, e nem ela o faz. Apesar de dois anos terem se passado, ela parece mais jovem, seu rosto mais pleno e seu sorriso mais largo. O tempo longe fez bem a ela.
— Como você está? — ela pergunta.
— Eu estou... bem. Vamos espalhar as cinzas dela hoje.
Olho para a urna empoleirada no banco de trás como se fosse outro passageiro. Durante muito tempo, deixei as cinzas de Tris no necrotério do Centro, não sabendo que tipo de funeral ela iria querer, e não tenho certeza de que eu poderia fazer um a ela. Mas hoje seria o Dia da Escolha, se ainda tivéssemos facções, e é hora de dar um passo a frente, mesmo que seja um pequeno.
Evelyn põe a mão no meu ombro e olha para os campos. As culturas que antes eram isoladas nas áreas ao redor da sede da Amizade se espalharam, e continuam a se espalhar por todos os espaços gramados ao redor da cidade. Às vezes sinto falta da desolação, da terra vazia. Mas agora não me importo de passar por fileiras e fileiras de milho ou trigo. Vejo pessoas entre as plantas, verificando o solo com dispositivos portáteis projetados por ex-cientistas do Centro. Eles vestem vermelho, azul, verde e roxo.
— Como é viver sem facções? — Evelyn pergunta.
— É bem normal — sorrio para ela. — Você vai adorar.

+ + +

Levo Evelyn para o meu apartamento, ao norte do rio. É num dos andares inferiores, mas através das grandes janelas posso ver uma grande extensão de edifícios. Fui um dos primeiros moradores da nova Chicago, então pude escolher onde morar. Zeke, Shauna, Christina, Amar e George optaram por viver nos pisos superiores do edifício Hancock, e Caleb e Cara voltaram para os apartamentos perto do ParqueMillennium, mas vim aqui porque era bonito, e porque é longe de qualquer um dos meus antigos lares.
— Meu vizinho é um especialista em história, ele veio da fronteira —digo enquanto procuro as chaves em meus bolsos. — Ele chama Chicago de “a quarta cidade” porque foi destruída por um incêndio há séculos, depois novamente pela Guerra da Pureza, e agora estamos na quarta tentativa de nos estabelecer aqui.
— A quarta cidade — Evelyn repete enquanto abro a porta. — Eu gosto disso.
Quase não há móveis no interior, apenas um sofá e uma mesa, algumas cadeiras, uma cozinha. Luz solar reflete nas janelas do prédio do outro lado do rio pantanoso. Alguns dos ex-cientistas do Centro estão tentando restaurar o rio e o lago à sua antiga glória, mas ainda vai demorar um pouco. Mudança, como a cura, leva tempo.
Evelyn deixa sua bolsa no sofá.
— Obrigada por me deixar ficar com você por um tempo. Prometo que vou encontrar outro lugar em breve.
— Sem problemas — digo.
Me sinto nervoso por ela estar aqui, mexendo em meus poucos pertences, passando por meus corredores, mas não podemos ficar distantes para sempre. Não quando prometi a ela que gostaria de tentar preencher essa lacuna entre nós.
— George diz que precisa de alguma ajuda com o treinamento de uma força policial — Evelyn diz. — Você não se ofereceu?
— Não — respondo. — Eu te disse, estou farto de armas.
— Certo. Você está usando suas palavras agora — diz Evelyn, franzindo o nariz. — Eu não confio em políticos, você sabe.
— Você vai confiar em mim porque sou seu filho. De qualquer forma, não sou um político. Ainda não, de qualquer maneira. Apenas um assistente.
Ela se senta à mesa e olha em volta, inquieta e ágil como um gato.
— Você sabe onde está seu pai? — ela pergunta.
Eu dou de ombros.
— Alguém me disse que ele foi embora. Eu não perguntei para onde.
Ela repousa o queixo na mão.
— Não há nada que você queira dizer a ele? Nada mesmo?
— Não — rodo as chaves ao redor do meu dedo. — Eu só queria deixá-lo no passado, onde ele pertence.
Dois anos atrás, quando eu estava na frente dele no parque com a neve caindo ao nosso redor, percebi que, assim como atacá-lo na frente da Audácia no Mart Impiedoso não fez eu me sentir melhor sobre a dor que ele me causou, gritar com ele ou insultá-lo não o faria também. Restava apenas uma opção: deixá-lo ir.
Evelyn me dá um olhar estranho, e depois atravessa a sala e abre a bolsa que deixou no sofá. Ela pega um objeto feito de vidro azul. Parece água caindo, suspensa no tempo.
Lembro de quando ela me deu. Eu era jovem, mas não muito para perceber que era um objeto proibido na facção da Abnegação, algo inútil e, portanto, autoindulgente. Eu perguntei-lhe para que servia, e ela me disse, para nada obviamente. Mas poderia ser capaz de fazer algo aqui. Então ela colocou a mão em seu coração. Coisas bonitas às vezes fazem.
Durante anos foi um símbolo da minha rebeldia tranquila, minha pequena recusa em ser uma criança obediente e atenciosa da Abnegação, um símbolo do desafio da minha mãe também, mesmo que eu acreditasse que ela estava morta. Escondi debaixo da minha cama, e no dia que decidi deixar a Abnegação, coloquei-o na mesa para que meu pai pudesse vê-lo, ver a minha força, e a dela.
— Quando você se foi, isso me fez lembrar de você — ela diz, segurando o vidro perto de si. — Lembrou-me de quão corajoso você era, sempre foi — ela sorri um pouco. — Pensei que você poderia mantê-lo aqui. Eu pretendia dá-lo para você, depois de tudo.
Não tenho certeza se minha voz vai permanecer estável se eu falar, então apenas sorrio de volta e aceno com a cabeça.

+ + +

O ar da primavera é frio, mas deixo as janelas da caminhonete abertas, então posso senti-lo no meu peito, picando os meus dedos, um lembrete do inverno prolongado.
Paro na plataforma de trem perto do Mart Impiedoso e pego a urna do banco de trás. É prata e simples, sem gravuras. Eu não a escolhi, foi Christina.
Ando pela plataforma em direção ao grupo que já se reuniu.
Christina está com Zeke e Shauna, que está sentada na cadeira de rodas com um cobertor sobre o colo. Ela tem uma cadeira de rodas melhor agora, uma sem alças na parte de trás, para que ela possa manobrá-la com mais facilidade.
Matthew está na plataforma com os pés sobre a borda.
— Oi — digo, apoiando uma mão sobre o ombro de Shauna.
Christina sorri para mim e Zeke me bate no ombro.
Uriah morreu poucos dias depois de Tris, mas Zeke e Hana fizeram suas despedidas apenas algumas semanas depois, espalhando suas cinzas no abismo, em meio ao barulho de todos os seus amigos e familiares. Nós gritamos o nome dele no eco da câmara. Ainda assim, sei que Zeke está se lembrando dele hoje, assim como o resto de nós, mesmo que este último ato de bravura da Audácia seja para Tris.
— Tenho uma coisa para lhe mostrar — diz Shauna, e ela joga o cobertor para o lado, revelando hastes metálicas complicadas nas pernas. Elas percorrem todo o caminho até seus quadris e enrolam em torno de sua barriga, como uma gaiola. Ela sorri para mim, e com um som de raspagem de engrenagens, coloca os pés no chão na frente da cadeira, e aos trancos e barrancos, ela fica de pé.
Apesar da ocasião séria, eu sorrio.
— Bem, olhe para isso — digo. — Eu tinha esquecido quão alta você é.
— Os companheiros de laboratório de Caleb fizeram para mim — ela conta. — Ainda estou pegando o jeito, mas eles dizem que eu poderia ser capaz de andar algum dia.
— Bom. Onde ele está, afinal?
— Ele e Amar vão nos encontrar no fim da linha — ela responde. — Alguém tem que estar lá para pegar a primeira pessoa.
— Ele ainda é uma espécie de maricas — Zeke diz. — Mas estou começando a me acostumar com ele.
— Hm — eu digo, não me comprometendo.
A verdade é, eu fiz as pazes com Caleb, mas ainda não consigo ficar perto dele por muito tempo. Seus gestos, suas inflexões, sua maneira, são os dela. Eles o fazem apenas um sussurro dela, e isso não é o suficiente, mas também é demais.
Eu diria mais, mas o trem está chegando. Ele vem em nossa direção nos trilhos polidos, então chia enquanto para em frente à plataforma. Uma cabeça se inclina para fora da janela do primeiro vagão, onde os controles ficam – é Cara, seu cabelo em uma trança apertada.
— Vamos! — Ela diz.
Shauna se senta na cadeira de novo e empurra-se através da porta. Matthew, Christina e Zeke a seguem. Eu fico por último, oferecendo a urna para Shauna segurar, e fico na porta, minha mão segurando a alça.
O trem começa a andar de novo, a velocidade aumentando a cada segundo, e o ouço assobiando ao longo dos trilhos, sinto o poder dele subindo dentro de mim. O ar chicoteia todo o meu rosto e pressiona a roupa em meu corpo. Posso ver a cidade expandindo em minha frente, os prédios iluminados pelo sol.
Não é o mesmo que costumava ser, mas superei isso há muito tempo. Todos nós já encontramos novos lugares. Cara e Caleb trabalham nos laboratórios do complexo, que agora é um pequeno segmento do Departamento de Agricultura, que trabalha para tornar a agricultura mais eficiente, capaz de alimentar mais pessoas. Matthew trabalha com pesquisa psiquiátrica em algum lugar na cidade – da última vez que perguntei a ele, ele estava estudando algo sobre memória. Christina trabalha em um escritório que ajuda as pessoas da fronteira que querem se mudar para a cidade. Zeke e Amar são policiais, e George treina a força policial – policiais da Audácia, eu os chamo. E eu sou assistente de um dos representantes da nossa cidade no governo: Johanna Reyes.
Estico meu braço para agarrar a outra alça e inclino-me para fora do trem, quase pendurado sobre a rua dois andares abaixo de mim. Sinto um arrepio no estômago, o medo – emoção que é o verdadeiro amor da Audácia.
— Ei — diz Christina, de pé ao meu lado. — Como está sua mãe?
— Bem. Vamos ver, eu acho.
— Vai atirar pela tirolesa?
Eu observo a pista na nossa frente, todo o caminho até o nível da rua.
— Sim — respondo. — Acho que Tris iria querer que eu experimentasse pelo menos uma vez.
Dizer o nome dela ainda me dá uma pontada de dor, uma pontada que me permite saber que a sua memória ainda é valiosa para mim.
Christina observa os trilhos à nossa frente e se inclina para o meu ombro, só por alguns segundos.
— Acho que você está certo.
Minhas memórias de Tris são algumas das memórias mais poderosas que tenho, já entorpecidas pelo tempo, como memórias ficam, e elas já não machucam tanto quanto costumavam machucar. Às vezes eu realmente gosto de ir até elas em minha mente, mas não com frequência. Às vezes falo delas com Christina, e ela escuta melhor do que eu esperava, sendo tão franca quanto é.
Cara faz o trem parar, e subo para a plataforma. No topo das escadas, Shauna sai da cadeira e faz o seu caminho para baixo com o aparelho, um passo de cada vez. Matthew e eu levamos a cadeira vazia atrás dela, que é incomoda e pesada, mas não impossível de carregar.
— Alguma notícia de Peter? — Pergunto a Matthew quando chegamos ao final das escadas.
Depois que Peter saiu da neblina do soro da memória, alguns dos aspectos mais nítidos e mais duros de sua personalidade voltaram, mas não todos. Perdi contato com ele depois disso. Eu não o odeio mais, mas isso não significa que eu tenha que gostar dele.
— Ele está em Milwaukee — Matthew responde. — Não sei o que ele está fazendo, apesar de tudo.
— Ele está trabalhando em um escritório em algum lugar — Cara responde do final da escada. Ela tem a urna embalada nos braços, tirada do colo de Shauna no caminho do trem. — Acho que é bom para ele.
— Sempre achei que ele iria se juntar aos rebeldes GD na fronteira — diz Zeke. — Mostra que eu não o conheço.
— Ele está diferente agora — Cara fala com um encolher de ombros.
Ainda há rebeldes na fronteira que acreditam que outra guerra é a única maneira de obter a mudança que queremos. Acredito mais em trabalhar na mudança sem violência. Eu tive violência o suficiente por uma vida inteira, e eu a carrego, ainda assim, não em cicatrizes em minha pele, mas nas memórias que surgem em minha mente quando menos quero – o punho do meu pai colidindo com meu queixo, minha arma apontada para Eric, os corpos da Abnegação esparramados pelas ruas da minha antiga casa.
Andamos pelas ruas até a tirolesa. As facções se foram, mas essa parte da cidade tem mais Audaciosos do que qualquer outra, ainda reconhecível por seus piercings no rosto e peles tatuadas, embora não mais pelas cores – as roupas que usam são, por vezes, extravagantes. Alguns vagam pelas calçadas conosco, mas a maioria está no trabalho – todos em Chicago são obrigados a trabalhar, se forem capazes.
Diante de mim vejo o edifício Hancock apontando para o céu, sua base mais larga que o topo. As vigas negras perseguem umas as outras até o telhado, cruzando, apertando, se expandindo. Eu não estive tão perto daqui a um longo tempo.
Entramos no saguão, com seus reluzentes pisos polidos e suas paredes manchadas com grafites brilhantes da Audácia, deixados aqui por residentes do edifício como uma espécie de relíquia. Este é um lugar da Audácia, porque foram eles que o adotaram, por sua altura e, uma parte de mim também suspeita, sua solidão. A Audácia gostava de preencher espaços vazios com o seu ruído. É algo que sempre gostei sobre eles.
Zeke pressiona o botão do elevador com o dedo indicador. Nós nos juntamos, e Cara pressiona o número 99.
Fecho meus olhos quando o elevador sobe. Quase posso ver a abertura do espaço sob meus pés, um poço de escuridão, e apenas um palmo de terra firme entre mim e a queda, eu afundando, caindo, despencando. O elevador estremece e para, e me agarro à parede para me equilibrar quando as portas se abrem.
Zeke toca meu ombro.
— Não se preocupe, cara. Nós fazíamos isso o tempo todo, lembra?
Concordo com a cabeça. Ar corre através da abertura no teto, e acima de mim está o céu, azul e brilhante. Me misturo com os outros em direção à escada, entorpecido demais com o medo de fazer meus pés se moverem mais rápido. Acho a escada com a ponta dos dedos e me concentro em um degrau de cada vez. Acima de mim, Shauna sobre desajeitadamente as escadas, usando principalmente a força de seus braços.
Perguntei a Tori uma vez, enquanto estava tatuando os símbolos nas minhas costas, se ela achava que éramos as últimas pessoas que restaram no mundo. Talvez, foi tudo o que ela disse. Não acho que ela gostava de pensar nisso. Mas aqui em cima, no telhado, é possível acreditar que somos as últimas pessoas que restam em qualquer lugar.
Fico olhando para os prédios ao longo do pântano e meu peito aperta como se estivesse prestes a entrar em colapso. Zeke atravessa o telhado até a tirolesa e prende alças que suportam um homem ao cabo de aço. Ele a bloqueia para que não deslize para baixo e olha para o grupo com expectativa.
— Christina — ele diz. — É toda sua.
Christina está perto da alça, batendo um dedo no queixo.
— O que você acha? De barriga pra cima ou ao contrário?
— Ao contrário — Matthew responde. — Eu queria ir de barriga pra cima para não molhar minhas calças, e não quero você me copiando.
— Ir de barriga pra cima só fará mais provável que isso aconteça, sabe — Christina observa. — Então vá em frente e faça para que eu possa começar a te chamar de calças-molhadas.
Christina se prende nas alças, os pés primeiro, barriga para baixo, de modo que ela vai ver o prédio ficar menor enquanto viaja. Eu tremo. Não posso ver. Fecho os olhos enquanto Christina viaja cada vez mais longe, e até quando Matthew e em seguida Shauna fazem o mesmo. Posso ouvir seus gritos de alegria, como canto de passarinhos no vento.
— Sua vez, Quatro — diz Zeke.
Eu balanço a cabeça.
— Vamos lá — diz Cara. — É melhor acabar logo com isso, certo?
— Não — respondo. — Vai você. Por favor.
Ela me oferece a urna, e em seguida respira fundo. Prendo a urna contra o meu estômago. O metal está quente devido ao toque de muitas pessoas.
Cara sobe no suporte, instavelmente, e Zeke a prende ali. Ela cruza os braços sobre o peito e ele a empurra para fora, ao longo do Lago Shore Drive, sobre a cidade. Eu não ouço nada dela, nem sequer um suspiro.
E então só restamos eu e Zeke, olhando um para o outro.
— Não acho que posso fazer isso — digo, e embora minha voz seja firme, meu corpo está tremendo.
— Claro que pode — ele diz. — Você é o Quatro, a lenda da Audácia! Pode enfrentar qualquer coisa.
Cruzo meus braços e ando alguns centímetros para mais perto da borda do telhado. Mesmo que eu esteja a vários metros de distancia, sinto meu corpo caindo ao longo da borda, e balanço a cabeça de novo, de novo e de novo.
— Ei — Zeke coloca as mãos em meus ombros. — Isso não é sobre você, lembra? É sobre ela. Fazer algo que ela teria gostado de fazer, algo que ela teria ficado orgulhosa de você fazer. Certo?
É isso aí. Não posso evitar isso, não posso voltar atrás agora, não quando eu ainda me lembro de seu sorriso enquanto ela subia a roda-gigante comigo, ou sua mandíbula apertada enquanto enfrentava seu medo nas simulações.
— Como é que ela entrou?
— Cabeça primeiro — diz Zeke.
— Tudo bem — eu lhe entrego a urna. — Coloque isso atrás de mim, ok? E abra a tampa.
Subo para o suporte, minhas mãos tremendo tanto que mal posso apertar as correias. Zeke aperta as correias nas minhas costas e pernas, então prende a urna atrás de mim, virada para fora, para que as cinzas se espalhem. Olho para o Lago Shore Drive, engolindo a bile, e começo a deslizar.
De repente, quero levá-la de volta, mas é tarde demais, já estou mergulhando em direção ao chão. Estou gritando tão alto que quero cobrir meus próprios ouvidos. Sinto o grito vivo dentro de mim, enchendo meu peito, garganta e cabeça.
O vento pica meus olhos, mas eu os forço a ficarem abertos, e no meu momento de pânico cego eu entendo porque ela fez isso desta forma – cabeça primeiro – porque a fazia sentir como se estivesse voando, como se fosse um pássaro.
Ainda posso sentir o vazio debaixo de mim, e é como o vazio dentro de mim, como uma boca prestes a me engolir.
Percebo, então, que parei de me mover. Os últimos flocos de cinzas flutuam no vento como de neve cinzenta, e em seguida desaparecem.
O chão está a apenas alguns metros abaixo de mim, perto o suficiente para saltar. Os outros se reuniram lá em um círculo, seus braços entrelaçados para formar uma rede de ossos e músculos para me pegar.
Pressiono meu rosto no suporte e rio. Lanço a urna vazia para eles, então torço os meus braços atrás das costas para soltar as tiras que me seguram e caio nos braços de meus amigos como uma pedra. Eles me pegam, seus ossos beliscam minhas costas e pernas e me colocam no chão.
Há um silêncio constrangedor enquanto olho para o edifício Hancock, maravilhado, e ninguém sabe o que dizer. Caleb sorri para mim, cauteloso.
Christina pisca as lágrimas de seus olhos e diz:
— Oh! Zeke está vindo.
Zeke se arremessa em nossa direção no suporte preto. A princípio parece um ponto, em seguida, uma bolha, e depois uma pessoa envolta em preto. Ele grita de alegria quando para e chego do outro lado para pegar o antebraço de Amar. No meu outro lado, agarro um braço pálido que pertence a Cara. Ela sorri para mim, e há certa tristeza em seu sorriso.
O ombro de Zeke atinge os nossos braços com força e ele sorri loucamente enquanto nos deixa segurá-lo como um berço.
— Isso foi bom. Quer ir de novo, Quatro?
Não hesito antes de responder.
— Absolutamente não.

+ + +

Caminhamos de volta para o trem em um grupo relaxado. Shauna anda com seus aparelhos, Zeke empurra a cadeira de rodas vazia e conversa com Amar. Matthew, Cara e Caleb caminham juntos, conversando sobre algo que os deixa contentes. Christina anda ao meu lado e coloca uma mão no meu ombro.
— Feliz Dia da Escolha — diz ela. — Eu vou te perguntar como realmente está. E você vai me dar uma resposta honesta.
Falamos assim, às vezes, dando ordens um ao outro. De alguma forma, ela tornou-se um dos melhores amigos que tenho, apesar de nossas brigas frequentes.
— Eu estou bem — digo. — É difícil. E sempre será.
— Eu sei.
Andamos na parte de trás do grupo, além dos edifícios ainda abandonados com suas janelas escuras, sobre a ponte que atravessa o rio pantanoso.
— É, às vezes a vida é realmente péssima — ela fala. — Mas você sabe o que eu estou esperando?
Eu levanto minhas sobrancelhas.
Ela levanta as dela, me imitando.
— Os momentos que não são péssimos — ela diz. — O truque é notá-los quando eles vêm por aí.
Então ela sorri, e eu sorrio de volta, e subimos as escadas da plataforma do trem lado a lado.

+ + +

Desde que eu era jovem, eu sempre soube o seguinte: a vida nos danifica, cada um de nós. Não podemos escapar do dano.
Mas agora, também estou aprendendo isso: nós podemos ser reparados. Reparamo-nos uns aos outros.

Capítulo cinquenta e seis

No dia seguinte, levo um caminhão do composto. As pessoas de lá ainda estão se recuperando de sua perda de memória, ninguém vai tentar me parar. Dirijo ao longo dos trilhos de trem em direção à cidade, meus olhos vagando sobre o horizonte, mas não enxergando realmente.
Quando chego aos campos que separam a cidade do mundo exterior, piso com força no acelerador. O caminhão esmaga a grama e a neve abaixo dos pneus, e logo o terreno volta para o pavimento no setor Abnegação, e mal sinto a passagem do tempo. As ruas são todas iguais, mas minhas mãos e pés sabem para onde ir, mesmo que minha mente não se preocupe em orientá-los. Eu paro na casa perto do semáforo, com a calçada da frente rachada.
A minha casa.
Passo pela porta da frente e subo as escadas, ainda com aquela sensação abafada em meus ouvidos, como se eu estivesse flutuando longe do mundo. As pessoas falam sobre a dor do luto, mas eu não sei o que elas querem dizer.
Para mim, o luto é um entorpecimento devastador, cada sentimento adormecido.
Pressiono a palma da mão no painel que cobre o espelho e o empurro para o lado. Embora a luz laranja do pôr do sol passe pelo chão e ilumine o meu rosto por baixo, eu nunca pareci tão pálido – os círculos sob meus olhos nunca foram mais pronunciados.
Passei os últimos dias em algum lugar entre o sono e a vigília, não totalmente capaz de permanecer em qualquer um dos extremos. Ligo a máquina de cortar cabelona tomada perto do espelho. A lâmina já está no lugar certo, de modo que tudo o que tenho que fazer é passar a máquina em meu cabelo, puxando as orelhas para baixopara protegê-las da lâmina, virando a cabeça para checar a parte de trás do meu pescoço e ver se esqueci algum lugar.
O cabelo cortado cai sobre meus pés e ombros, pinicando a pele nua. Passo a mão sobre a minha cabeça para ter certeza de que está nivelada, mas não preciso verificar, não de verdade. Eu aprendi a fazer isso quando era jovem.
Gasto muito tempo tirando os cabelos dos meus ombros e pés, em seguida, varro-os com uma pá de lixo. Quando termino, fico na frente do espelho de novo, e posso ver as bordas da minha tatuagem, a chama da Audácia.
Pego o frasco do soro da memória em meu bolso. Sei que um frasco irá apagar a maior parte da minha vida, mas se centrará em memórias, não em fatos. Eu ainda vou saber escrever, falar, montar um computador, porque os dados foram armazenados em diferentes partes do meu cérebro. Mas não vou me lembrar de mais nada.
O experimento acabou. Johanna negociou com sucesso com o governo – os superiores de David – para permitir que os ex-membros das facções fiquem na cidade, desde que sejam autossuficientes, submetam-se à autoridade do governo e permitam que a pessoas de fora possam vir e se juntar a eles, tornando Chicago apenas outra área metropolitana, como Milwaukee.
O Centro, uma vez no comando do experimento, será agora responsável por manter a ordem nos limites da cidade de Chicago. Vai ser a única área metropolitana do país governado por pessoas que não acreditam em deficiências genéticas. Uma espécie de paraíso.
Matthew me disse que espera que as pessoas da fronteira preencham todos os espaços vazios e encontrem lá uma vida mais próspera do que a que eles deixaram.
Tudo o que quero é me tornar alguém novo. Neste caso, Tobias Johnson, filho de Evelyn Johnson. Tobias Johnson pode ter vivido uma vida monótona e vazia, mas ele é, pelo menos, uma pessoa inteira, e não este fragmento de pessoa que eu sou, muito danificado pela dor para poder me tornar algo útil.
— Matthew me disse que você roubou um pouco do soro da memória e um caminhão — diz uma voz no final do corredor. Christina. — Tenho que te dizer, eu realmente não acreditei nele.
Não devo tê-la ouvido entrar na casa por conta do abafamento em meus ouvidos. Mesmo sua voz soa como se estivesse viajando através da água para chegar até mim, o que me faz levar alguns segundos para entender o que ela diz. Quando entendo, olho para ela e digo:
— Então por que você veio se não acredita nele?
— Só em caso de dúvidas — diz ela, vindo em minha direção. — Além disso, eu queria ver a cidade mais uma vez antes que tudo mude. Me dê esse frasco, Tobias.
— Não — cruzo os dedos sobre ele para protegê-lo dela. — Esta é a minha decisão, não a sua.
Seus olhos escuros se alargam, e seu rosto está radiante com a luz solar. A luz faz cada mecha do seu cabelo grosso e escuro brilhar como se estivesse em chamas.
— Esta não é a sua decisão — diz ela. — Esta é a decisão de um covarde, e você é muita coisa, Quatro, mas não um covarde. Nunca.
— Talvez eu seja agora — respondo de forma passiva. — As coisas mudaram. Eu estou bem com isso.
— Não, você não está.
Me sinto tão esgotado que tudo o que eu posso fazer é revirar os olhos.
— Você não pode se tornar uma pessoa que ela iria odiar — Christina fala, calmamente dessa vez. — E ela teria odiado isso.
Tumultos raivosos chegam até mim, quentes e animados, e o sentimento abafado em torno de meus ouvidos some, fazendo com que até mesmo esta pacata rua da Abnegação seja barulhenta. Tremo só com a força do barulho.
— Cale a boca! — Eu grito. — Cale a boca! Você não sabe o que ela iria odiar, você não sabe, você...
— Eu sei o suficiente. Sei que ela não iria querer que você a apague de sua memória como se ela nem sequer importasse para você!
Eu invisto em direção a ela, prendendo seu ombro na parede, e inclinando-me mais perto de seu rosto.
— Se você ousar dizer isso novamente, eu vou...
— Vai o quê? — Christina me empurra para trás, com força. — Me bater? Sabe, há uma palavra para homens grandes e fortes que atacam mulheres, e essa palavra é covarde.
Eu me lembro dos gritos de meu pai enchendo a casa, e sua mão ao redor da garganta da minha mãe, batendo-a em paredes e portas. Lembro de assistir da minha porta, minha mão ao redor da moldura. E me lembro de ouvir soluços silenciosos através da porta de seu quarto, já que ela se trancava, assim eu não poderia entrar. Dou um passo para trás e caio contra a parede, deixando meu corpo escorregar.
— Sinto muito — eu digo.
— Eu sei.
Nós ainda ficamos ali por alguns segundos, apenas olhando um para o outro. Lembro-me de odiá-la na primeira vez que a conheci, porque ela era da Franqueza, porque as palavras simplesmente saíam de sua boca sem controle, sem cuidado. Mas com o tempo ela me mostrou quem ela realmente era, uma amiga indulgente, fiel à verdade, corajosa o suficiente para tomar uma atitude. Não posso impedir que ela me agrade agora, não posso deixar de ver o que Tris viu nela.
— Eu sei como se sente ao querer esquecer tudo — diz ela. — Eu também sei como é alguém que você ama ser morto sem qualquer razão, e querer trocar todas as suas memórias pela paz apenas por um momento.
Ela envolve a mão ao redor da minha, que está enrolada em torno do frasco.
— Eu não conhecia Will há muito tempo — ela fala — mas ele mudou a minha vida. Ele me mudou. E eu sei que Tris te mudou ainda mais.
A expressão dura que ela usava há pouco se derrete, e ela toca meus ombros levemente.
— A pessoa em que você se transformou com ela é uma que vale a pena ser. Se tomar o soro, nunca será capaz de encontrar o caminho de volta para ela.
As lágrimas vêm novamente, como quando vi o corpo de Tris, e desta vez, a dor vem com elas, quente e afiada em meu peito. Aperto o frasco no meu punho, desesperado pelo o alívio que oferece, a proteção contra a dor de cada memória arranhando dentro de mim como um animal.
Christina coloca os braços em volta dos meus ombros, e seu abraço só piora a dor, porque me lembra de todas as vezes que os braços finos de Tris escorregaram em torno de mim, inseguros no começo, mas em seguida mais fortes, mais confiantes, mais segura de si mesma e de mim. Faz-me lembrar que nenhum abraço nunca vai ser o mesmo outra vez, porque ninguém nunca vai ser como ela de novo, porque ela se foi. Ela se foi, e chorando eu me sinto tão inútil, tão estúpido, mas é tudo o que posso fazer. Christina me mantém de pé e não diz uma palavra por um longo tempo.
Eventualmente eu me afasto, mas as suas mãos permanecem sobre os meus ombros, quentes e ásperas com calos. Talvez da mesma maneira em que a pele cresce mais forte num calo depois de uma dor contínua, uma pessoa também faça o mesmo. Mas não quero me tornar um homem calejado.
Existem outros tipos de pessoas neste mundo. Não como Tris, que depois de sofrimento e traição, ainda pode encontrar amor suficiente para dar sua vida em vez de seu irmão. Ou como Cara, que ainda poderia perdoar a pessoa que atirou na cabeça de seu irmão. Ou Christina, que perdeu amigo após amigo, mais ainda decidiu continuar aberta para fazer novos. Aparecer na minha frente é outra escolha, mais brilhante e mais forte do que as que eu me dei.
Abrindo os olhos, ofereço o frasco para ela. Ela pega e o coloca no bolso.
— Eu sei que Zeke ainda continua estranho com você — ela diz, jogando um braço sobre os meus ombros. — Mas posso ser sua amiga enquanto isso. Podemos até trocar pulseiras se você quiser, como as meninas da Amizade costumavam fazer.
— Não acho que isso será necessário.
Nós descemos as escadas e saímos juntos para a rua. O sol sumiu atrás dos edifícios de Chicago, e ao longe ouço um trem correndo sobre os trilhos, mas estamos caminhando para longe deste lugar e tudo o que ele significou para nós, o que está tudo bem.

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Há tantas maneiras de ser corajoso neste mundo. Às vezes, a bravura implica em entregar sua vida por algo maior do que si mesmo, ou por outra pessoa. Às vezes implica abrir mão de tudo o que você já conhecia ou todos que já amou, por causa de algo maior.
Mas às vezes isso não acontece.
Às vezes não é nada mais do que ranger os dentes com a dor, e o trabalho de cada dia, a lenta caminhada em direção a uma vida melhor.
Esse é o tipo de coragem que devo ter agora.