sábado, 29 de março de 2014

Capítulo 17

Dan se sentia como uma caveira das Catacumbas: oco por dentro.
Ele decidira não demonstrar isso. Já estava envergonhado por ter chorado na plataforma do metrô. Mas ainda sentia o peso da mochila que não estava mais lá. Não conseguia parar de pensar na foto dos pais, varrida para longe e perdida nos túneis do metrô. Talvez tivesse sido rasgada em pedacinhos, ou talvez seus pais ficariam sorrindo no escuro para sempre, tendo apenas os ratos como companhia. A única coisa que ele queria era deixá-los orgulhosos. Agora não sabia se seus pais o perdoariam.
A chuva ainda caía. Trovões ribombavam no céu. A cada poucos minutos um relâmpago iluminava a noite de Paris.
Se Dan estivesse com o humor um pouquinho melhor, ia querer explorar Montmartre. Parecia um bairro legal. A área inteira era um grande morro e no topo havia uma enorme igreja de cúpula branca que brilhava na chuva.
— É pra lá que estamos indo? — perguntou Dan.
Amy fez que não com a cabeça.
— Essa é a basílica de Sacré-Coeur. A igreja menor, Saint-Pierre, fica bem abaixo. Não dá para ver daqui.
— Duas igrejas juntas?
— Pois é.
— Por que Franklin não escolheria a igreja grande e chique?
Amy deu de ombros.
— Não era o estilo dele. Ele gostava de arquitetura simples. Teria achado divertido escolher uma igreja pequena e comum que ficava à sombra de uma grande e luxuosa.
Aquilo não fazia muito sentido para Dan, mas ele estava molhado e cansado demais para discutir. Eles subiram as ruas estreitas, passando por casas noturnas com música altíssima e placas de neon que refletiam seu brilho na calçada molhada.
— Eu costumava ter uma vida noturna — Nellie deu um suspiro.
Enquanto eles subiam para o topo do morro, Amy contou o que sabia sobre o bairro, que ali moraram artistas famosos como Picasso, Vincent van Gogh e Salvador Dali.
Nellie estreitou sua capa de chuva.
— Minha mãe me contou outra história, de por que se chama Montmartre, o “Monte do mártir”. Ela disse que São Denis foi decapitado no topo do morro, bem no lugar aonde estamos indo.
Aquilo não parecia um bom presságio. Dan se perguntou se a cabeça ainda ficaria guardada na igreja e se as cabeças dos santos realmente tinham auréolas.
Alguns minutos depois, eles estavam num cemitério lamacento, olhando a silhueta escura de Saint-Pierre de Montmartre. A igreja devia ser mais alta do que aparentava, mas, por causa da basílica branca atrás dela, parecia pequena. Era feita de placas de pedra cinza. Uma única torre quadrada se erguia do lado esquerdo, coroada com um para-raios e uma cruz. Dan achou que o prédio parecia bravo e rancoroso. Se as igrejas fossem capazes de fazer cara feia, aquela estava fazendo uma.
— Como vamos saber onde procurar? — ele perguntou.
— Que tal dentro da igreja? — Nellie perguntou esperançosa. — Pelo menos íamos sair da chuva.
CABRUUM! Um trovão ecoou pelos telhados. Com o clarão do relâmpago, Dan viu alguma coisa.
— Ali — ele disse. — Aquele túmulo.
— Dan — reclamou Amy —, não é hora de pensar na sua coleção!
Mas ele correu até uma lápide de mármore. Se não fosse um admirador de túmulos, nunca teria percebido. Não havia datas. Não havia nome. A princípio, Dan achou que a figura entalhada no topo fosse um anjo, mas não era esse formato. O desenho estava gasto pelo tempo, porém ainda assim ele conseguiu ver...
— Serpentes entrelaçadas — exclamou Amy. — O brasão dos Lucian. E ali...
Ela se ajoelhou e seguiu com o dedo uma seta gravada na base da lápide – uma seta apontando para baixo, para o chão.
Amy e Dan se entreolharam e concordaram com a cabeça.
— Ah, vocês estão de brincadeira — disse Nellie. — Vocês não vão realmente...
— Escavar um túmulo — disse Dan.

***

Eles acharam um depósito de ferramentas do outro lado da igreja. Pegaram emprestadas uma pá grande, duas pás menores de jardinagem e uma lanterna que realmente funcionava. Em pouco tempo estavam de volta ao túmulo, cavando a lama. A chuva dificultava bastante. Eles logo ficaram imundos. Isso lembrou Dan dos bons e velhos tempos em que Amy e ele eram novos, quando costumavam fazer guerras de lama: a au pair dava gritos de horror e fazia os dois passarem a noite numa banheira de espuma, limpando-se.
Dan duvidava que Nellie fosse preparar um banho de espuma para eles aquela noite.
Aos poucos, a cova foi ficando mais funda. O buraco estava enchendo de água, mas finalmente a pá de Dan bateu numa pedra. Ele tirou a lama de cima e achou uma placa de mármore de 1,5 metro de comprimento por 1 metro de largura.
— Isso é muito pequeno para ser um caixão — ponderou Amy.
— A não ser que seja de uma criança. Eu caberia aí dentro.
— Não fale isso!
Dan tentou limpar a lama do rosto, o que só o deixou ainda mais sujo.
— Só tem um jeito de descobrir. — Ele cavou nas bordas da placa até encontrar uma fresta, então começou a usar a pá como alavanca para abrir. — Preciso de ajuda.
Amy foi para junto dele. Nellie segurou a pá na fresta e juntos eles conseguiram deslocar a placa para o lado. Embaixo havia um buraco quadrado, porém não era um túmulo. Era uma escada que conduzia diretamente à escuridão das Catacumbas.
Assim que chegaram ao fim da escada, Dan iluminou a sala com a lanterna. Era uma câmara quadrada de calcário, com um túnel com saída para a esquerda e para a direita. Não havia pilhas de ossos, mas as paredes estavam pintadas com murais desbotados. No meio havia um pedestal de pedra com entalhes decorativos, com cerca de 1 metro de altura. No topo tinha um vaso de porcelana.
— Não encoste nisso! — disse Amy. — Pode ser uma armadilha.
Dan se aproximou do vaso.
— É enfeitado com pequenos Franklins.
Ele conseguiu ver Ben empinando uma pipa numa tempestade, Ben usando um gorro de pele, Ben mexendo uma bengala sobre o mar, como se estivesse fazendo algum truque de mágica.
— É um vaso comemorativo — disse Amy. — Do tipo que eles faziam no século XVIII para comemorar a chegada de Franklin a Paris.
— Aposto 20 dólares que tem alguma coisa aí dentro — ofereceu Dan.
— Não aceito — disse Amy.
— Olhem — disse Nellie. — Vejam isto.
Ela estava parada junto à parede de trás. Dan foi até ela e iluminou o mural. As cores estavam apagadas, mas o menino conseguiu distinguir quatro figuras: dois homens e duas mulheres vestindo roupas antigas, ainda mais antigas que as da época de Franklin, tipo da Idade Média ou do Renascimento, ou algo assim.
Cada figura estava pintada em tamanho maior que o natural. Na extrema esquerda havia um homem magro, de aspecto cruel e cabelo escuro. Ele tinha uma adaga quase escondida na manga. Letras pretas desbotadas aos seus pés o identificavam como “L. CAHILL”. Do lado dele havia uma moça de cabelo loiro curto e olhos inteligentes. Ela tinha na mão um mecanismo antigo com engrenagens de bronze – como um instrumento de navegação ou um relógio. A inscrição sob a barra de seu vestido marrom era “K. CAHILL”. À sua direita estava um sujeito enorme de pescoço grosso e sobrancelhas peludas. Ele tinha uma espada ao seu lado. O homem cerrava os maxilares e os punhos, como se estivesse se preparando para bater com a cabeça num muro de tijolos. A inscrição dizia “T. CAHILL”. Por fim, na extrema direita, havia uma mulher de vestido dourado. Seu cabelo ruivo estava preso numa trança que caía por cima do ombro. Ela segurava uma pequena harpa, como uma daquelas harpas irlandesas que Dan tinha visto no desfile do Dia de São Patrício, lá em Boston. Em sua inscrição se lia “J. CAHILL”.
Dan teve a estranha sensação de que os quatro o observavam. Eles pareciam bravos, como se ele tivesse acabado de interrompê-los no meio de uma briga... Mas era bobagem. Como ele podia saber isso só de olhar uma pintura na parede?
— Quem são eles? — perguntou Nellie.
Amy encostou na figura de L. Cahill, o homem com a faca.
— L... de Lucian?
— É — disse Dan. Ele não entendia como, mas soube imediatamente que Amy tinha razão. Era como se conseguisse ler as expressões das figuras pintadas, assim como às vezes fazia com Amy. — O clã Lucian. Esse cara foi o primeiro.
— E K. Cahill... — Amy avançou até a moça com o dispositivo mecânico. — Talvez K seja de Katrina ou Katherine? O clã Ekaterina?
— Talvez. — Dan olhou para o homem com a espada. — Então T é de Tomas? Ei, ele parece com os Holt.
A imagem de T. Cahill parecia olhar feio para eles. Dan conseguia imaginá-lo muito bem de agasalho esportivo roxo. Então voltou a atenção para a última imagem, a moça com a harpa.
— E... J de Janus. Você acha que ela se chamava Jane?
Amy concordou com a cabeça.
— Pode ser. A primeira do clã Janus. Veja, ela tem...
— Os olhos de Jonah Wizard — observou Dan.
A semelhança era perturbadora.
— Estes quatro — disse Amy — parecem.
— Irmãos e irmãs — Dan concluiu.
Não eram apenas os traços parecidos. Eram as posturas, a expressão no rosto. Dan brigara o suficiente com Amy para reconhecer aquele olhar: eram irmãos que passaram anos azucrinando uns aos outros. Era a postura deles, como se se conhecessem intimamente, mas também estivessem fazendo muito esforço para não se estrangularem.
— Alguma coisa deve ter acontecido entre eles — comentou Amy. — Alguma coisa...
Ela arregalou os olhos. Avançou até o centro do mural e afastou algumas teias de aranha entre K. e T. Cahill. Ali, pequena porém visível no horizonte da pintura, havia uma casa em chamas e uma silhueta escura fugindo dela, alguém vestindo um casaco preto.
— Um incêndio — Amy segurou o colar de jade. — Como a mansão de Grace. Como o que aconteceu com nossos pais. Nós não mudamos nada em todos estes séculos. Os Cahill ainda estão tentando destruir uns aos outros.
Dan passou os dedos pelo mural. Não fazia sentido eles tentarem descobrir quem eram aquelas pessoas, mas ele não tinha dúvida de que Amy estava certa. Era uma certeza profunda, inexplicável. Ele estava vendo quatro irmãos – os que originaram os clãs dos Cahill. Dan estudou o rosto deles, como costumava fazer com a foto de seus pais, perguntando-se com quem ele mais parecia.
— Mas o que aconteceu? — disse Nellie. — Quem estava naquela casa?
Dan olhou para o pedestal de pedra.
— Não sei, mas estou achando que é hora de abrir este vaso.
Dan se ofereceu como voluntário. Amy e Nellie se afastaram enquanto ele levantava devagar o vaso do pedestal. Não voou nenhuma flecha envenenada. Nenhum espeto disparou do teto e nenhum poço de cobras se abriu, o que ele achou um tanto decepcionante.
Ele estava prestes a abrir a tampa quando Amy interrompeu:
— Espere.
Ela apontou para a base do pedestal. Dan notara os entalhes, mas não tinha percebido exatamente o que eram.
— Isto não é uma... partitura de música? — ele perguntou.
Amy confirmou com a cabeça.
Havia notas, pautas e estrofes gravadas na pedra, uma música complicada. Aquilo trouxe a Dan más lembranças da sua professora de piano, a senhora Harsh, que parara de lhe dar aulas no ano passado depois de ele ter pintado as teclas pretas do instrumento com cola colorida.
— O que isso significa? — ele perguntou.
— Não sei — disse Amy. — Franklin de fato gostava de música...
— Deve ser só enfeite... — Dan estava impaciente.
Tinha alguma coisa chacoalhando dentro do vaso, e ele estava morrendo de vontade de abrir. Então colocou a mão na tampa.
— Dan, não! — disse Amy.
Mas ele abriu. Nada de ruim aconteceu. Dan colocou a mão dentro do vaso e tirou um cilindro de vidro tampado com uma rolha, embrulhado num papel.
— Que é isso? — perguntou Amy.
— Um líquido — respondeu Dan. — Um frasco de alguma coisa.
Ele desenrolou o papel e o jogou de lado.
— Ei! — alertou Amy. — Isso pode ser importante.
— É só um embrulho.
Ela apanhou o papel e o desdobrou. Passou os olhos pelo seu conteúdo e o enfiou depressa no bolso da camisa. Dan não se importou com aquilo. Estava tentando decifrar as palavras gravadas no frasco de vidro. Dentro havia um líquido verde espesso, como a lama com que ele brincava de jogar nos amigos. A inscrição dizia:


— Que é isso? — disse Nellie.
— Alemão? — Amy perguntou.
— Hã-hã — disse Nellie. — Não é nenhuma língua que eu já tenha visto.
De repente, Dan sentiu cócegas no corpo inteiro. As letras começaram a se reorganizar na cabeça dele.
— É um daqueles quebra-cabeças com palavras — ele anunciou. — Onde eles embaralham as letras.
— Um anagrama? — disse Amy. — Como você sabe?
Dan não conseguia explicar. Apenas fazia sentido para ele, assim como os números, as fechaduras, as estatísticas num card de beisebol.
— Me arranjem um papel e uma caneta.
Amy fuçou na mochila. O único papel que encontrou foi um pedaço de cartão cor de creme – a pista original sobre Richard S____. – Mas Dan não se importou. Ele entregou o frasco a Amy e pegou o papel. Virou o cartão e escreveu no verso, desembaralhando o anagrama palavra por palavra:


Nellie deu um assobio.
— Ok, estou impressionada.
— É a segunda pista — disse Dan. — A segunda pista grande. Tem que ser.
Amy franziu a testa, duvidando.
— Talvez. Mas o que significa: Se carregas isto?
De repente, a luz inundou a sala.
— Mandaram bem, meus primos! — Ao pé da escada, encharcado, mas parecendo muito contente, estava Jonah Wizard. Seu pai estava parado atrás dele com uma câmera de vídeo. — Cara, isso vai ficar lindo na tevê. — Jonah deu um sorriso malvado. — Esta é a parte onde eu apareço, dou uma surra nos amadores e descolo a pista pra mim!

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